O sincretismo religioso brasileiro retratado no olhar dos cariocas e santamarenses, a história do candomblé e do catolicismo de mãos dadas sob as mechas brancas de Maria Bethânia. A fé de dentro da voz da intérprete baiana, a família e as procissões marianas no mesmo Fevereiro em que a mangueira homenageava a cantora lavando de beleza e água de cheiro a Sapucaí, no Rio de Janeiro. O documentário “Fevereiros”, dirigido com tanto esmero por Marcio Debellian, cria como se fosse uma avenida em que é possível atravessar Santo Amaro da Purificação, na Bahia, ao Rio de Janeiro. Nesta obra, o samba e a fé são um unguento no povo brasileiro.
Nascida em Santo Amaro da Purificação, filha de dona Canô e José Veloso, e irmã de Caetano Veloso, Maria Bethânia é o alimento que dá o sentido ao recente documentário. Na primeira metade, o desfile da Mangueira, agremiação carioca, que homenageou Bethânia em 2016 nos desfiles das escolas de samba, fica em segundo plano. Enquanto as comemorações à Nossa Senhora da Purificação, padroeira da cidade no recôncavo baiano, ganham planos detalhes. As ervas, a comida, o povo e suas marcas vão passando pela lente, enquanto o som daquela terra ecoa nos microfones e a fé exalta nos alto-falantes da antiga cidade. A igreja, que ainda sustenta a história nordestina por entre os rebocos que restam nas paredes é tomada pelas baianas e a água de folhas masseradas que banha o candomblé por suas escadarias. O encontro das religiões e a fé que nomeia o mesmo santo de Nossa Senhora, para Oxum. De Iansã, para Santa Bárbara!
O filme é cristalino ao mostrar a importância da construção de um carnaval e da marcação histórica de um desfile. Do quanto um desfile conta trechos de histórias, de culturas, povos e biografias em sua apresentação. E sobre o quanto as religiões retratam e imprimem a movimentação da cultura brasileira e das influências afro no contexto da música e da arte num todo, simpatizantes ou não das religiões, somos, de alguma forma, resvalados por ela. O vai e vem dos cortes e imagens entre Santo Amaro da Purificação e o Rio de Janeiro, dão a impressão da mesma extensão, de estarmos assistindo um olhar sob o mesmo lugar.
Caetano Veloso e Chico Buarque, que compartilham do mesmo comportamento ao não seguirem religiosamente uma crença, falam da fé que enxergam em Bethânia. Caetano, sobre os seus passos dentro da religião e a vivência familiar totalmente imersa entre o candomblé e o catolicismo. O irmão, mestre do barco, conduz uma parte do documentário de forma emocionante. Canções também marcam o roteiro do filme, que passa do Rio para Santo Amaro em cortes cronológicos. A mescla entre as festas reservadas por Bethânia, do carnaval e de Nossa Senhora da Purifiação unem o samba dos atabaques, a palavras dos ogãs, aos tambores rufados e o canto dos sambistas cariocas. Da terra de dona Edith do Prato e do olhar astuto de Mãe Menininha do Gantois, para o calor escaldante do Rio de Janeiro que passa pelo meio das agulhas que alinhavam os adereços de alegorias e fantasias. Das colagens, pinturas e o sentido do samba dentro dos barracões.
A festa dos morros, das comunidades, a vez de serem notados e de sua cultura brilhando na avenida. O dia em que as comunidades brilham e são o show. Maria Bethânia encabeça, junto a toda a Mangueira, a escola na Praça da Apoteose. Mangueira é campeã em 2016 com o enredo “A Menina dos Olhos de Oyá”.
Em Santo Amaro, carregando a santa, ornamentando sua charola e de cabeça feita para o candomblé e os pés fincados na casa da mãe e de Jesus Cristo. “Fevereiros” é uma vela acesa para todos os santos, em todos os altares e congás, de qualquer religião. Perfeito para um tempo de intolerância e desapego familiar. É a mamada no seio de uma mãe e de mãos dadas ao irmão. De olhos atentos à devoção e emprestando o corpo como som de tambor! “Fevereiros” tem cheiro, de alfazema, de vela queimando, e voz de gente entrando em casa, de porta ruindo no vento. Tem clima de gente sentada na porta, de sol queimando na escadaria, de chuva levando água e correnteza para o rio.
Estive em Santo Amaro, numa festa linda na casa de Dona Canô. Quando de portas abertas iam entrando e saindo pessoas, que cantavam, cumprimentavam e presenteavam a ilustre filha desse recôncavo. Em suas mãos ficou um buquê de rosas que entreguei e pelas calçadas espalhavam-se pessoas para cumprimentar Canô. Nessa Santo Amaro é que voltei assistindo emocionado “Fevereiros”.
Não há Dona Canô, aliás, arrisco dizer ser este o primeiro documentário em que Bethânia empresta sua história na ausência da mãe. Mas, há toda a junção de Canô na participação dos filhos, na doçura de Mabel Veloso, de Irene Veloso, de Rodrigo… do povo santamarense.
Fiquei mesmo emocionado com “Fevereiros”, mesmo com todo o samba, há lágrima dentro da espalmada no atabaque e na puxada do sino que anuncia o tempo da igreja. É de um contentamento que só assistindo é possível entender. O documentário, que conta sobre essas religiões e sobre os preparativos para o carnaval da Mangueira, que homenageou Maria Bethânia, está em cartaz nos cinemas pelo Brasil.
Assista ao trailer do filme:
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