Cheryl Berno. Foto: Acervo pessoal

Cheryl Berno

Advogada, Consultora, Palestrante e Professora. Especialista em direito empresarial, tributário, compliance e Sistema S. Sócia da Berno Sociedade de Advocacia. Mestre em Direito Econômico e Social pela PUCPR, Pós-Graduada em Direito Tributário e Processual Tributário e em Direito Comunitário e do Mercosul, Professora de Pós-Graduação em Direito e Negócios da FGV e da A Vez do Mestre Cândido Mendes. Conselheira da Associação Comercial do Estado do Rio de Janeiro.

Mais que uma dupla cidadania, uma história pra contar

Era apenas uma busca por dupla cidadania, era só achar algumas certidões e pronto. Mas, logo no início descobri muito mais, um mundo novo, que eu não conhecia, até parentes “novos”. Sempre ouvi falar que a minha bisavó era italiana, que trazia os costumes daquele país. Comi muita polenta, mas, nunca entramos em detalhes com os mais velhos, o que sinto muito hoje, quanta coisa perdemos. Quando a busca começou, descobri que não seria tão fácil como imaginava e que muitos segredos eu jamais descobriria. Na verdade, quem veio da Itália foram os meus tataravós, e daí por diante tem sido uma descoberta a cada dia. A história deles se confunde com a da Europa, do Brasil e de muitas histórias, talvez com a sua.

Tudo começou em 1878, quando no dia 2 de fevereiro, o meu tataravô, Giuseppe, com 11 anos, saiu do Porto de Havre, na França, vindo da Itália, com a mãe, Rosa, viúva, de 51 anos, e com o irmão, Giovanni, com 22 anos, 2 meses depois da morte da irmã, Giovanna, de 7 anos (não fazemos ideia ainda de muita coisa que aconteceu). Sabemos que eles pegavam os navios na França porque tinham médicos e enfermeiros a bordo. Eram vapores e a viagem era longa e perigosa. Não comiam bem a bordo, havia doenças e muitos chegavam mortos (era comum no final das listas de chegada dos navios, a relação dos mortos no percurso).

A família do meu tataravô chegou no Brasil no dia 28 de fevereiro daquele ano de 1878, no Porto do Rio de Janeiro e como todos os imigrantes, ficou em hospedarias no centro do Rio de Janeiro – pequenos edifícios que ainda estão lá (o centro do Rio tem uma cultura rica e inexplorada). Daqui do Rio de Janeiro, ou do Porto de São Paulo, eram encaminhados para as colônias de imigrantes em todo o Brasil, em especial no sul do Brasil. A família dos meus tataravós foi encaminhada para a Colônia Nova Itália, em Morretes, próximo ao Porto de Paranaguá, no Estado do Paraná, que na época pertencia a São Paulo, mais uma descoberta.

A minha tataravó, Giroloma, chegou no mesmo porto, em dezembro do ano seguinte, o que nos leva a crer que ela e o meu tataravô se conheceram no Brasil (pergunta do meu filho que levei semanas de pesquisa para responder). A família dela veio em um navio a vapor alemão, bem maior, mas também da Itália. Ela tinha apenas 8 anos de idade e veio com uma família bem maior, que tinha um pai, o que fazia muita diferença (mais ainda naquela época). Fez o mesmo percurso que o meu tataravô e também foi para a Colônia Nova Itália, no Paraná, mas em um núcleo diferente do meu tataravÔ.

A situação na Europa naquela época era complicada, com a Revolução Industrial muitos empregos tinham sido perdidos e os salários tinham sido reduzidos. Muitos vinham fugindo das perseguições políticas, em busca do sonho das terras próprias, para plantar e enriquecer. O Governo do Brasil fez um contrato com o da Itália para que eles viessem custeados. No Brasil a escravidão estava sendo extinta com a lei que determinou que as crianças negras nasceriam livres e o governo, que era português, queria substituir a mão de obra escrava e “branquear” a população. Os índios, que eram os donos naturais das terras, não tinham os mesmos costumes e sequer tinham a propriedade, como nós brancos a conhecemos, registrada nestes cartórios (ah, os cartórios, são um capítulo à parte).

Nesta história da imigração, só mesmo quem sabia a verdade de um lado e de outro do oceano eram os atravessadores dos imigrantes, que ganhavam dinheiro por pessoa que traziam da Europa. Os imigrantes, ao chegarem no Brasil descobriam que não era bem a terra prometida. As condições eram precárias, as terras eram em banhados e as casas cobertas de palha. E não eram dadas de graça não, os títulos eram cobrados e os impostos altos (nisto não mudamos muito, a diferença é que agora o dinheiro fica no Brasil, na maioria das vezes).

Era tudo diferente para os europeus. Enquanto lá nevava, nas colônias era um calor tropical, havia mosquitos, doenças e não tinha médicos. A comida era literalmente de outro mundo e escassa. Conta-se, que ao chegarem nas hospedarias achavam que iriam fazer a primeira refeição decente depois de um mês e atacavam a mesa, mas o pote que achavam ser parmesão na verdade era farinha de mandioca, que cuspiam simplesmente por não conhecer aquele alimento. Depois foram obrigados a se acostumar com tudo, ou quase tudo.

Começavam uma vida muito sofrida em um país novo, exótico para os europeus. Como eles tinham mais poder que os escravos, muitos formaram grupos para reivindicar mais direitos (os primeiros sindicatos surgiam) e foram transferidos para colônias melhores, alguns ganharam máquinas e começaram a produzir de tudo no Brasil: erva-mate, sal, café, frutas, legumes, verduras, arroz, feijão, etc. Plantavam e cuidavam dos animais para comer e comiam o que cultivavam. Até as crianças em idade mais tenra, trabalhavam e morriam das mais diversas doenças.

Sei que meus tataravós ficaram ainda muitos anos na região do litoral do Paraná, aonde se conheceram e se casaram. Em 1890 nasceu o meu bisavô, Luiz (os nomes se repetem nas gerações). Ele era artista, mas não me pergunte do que, porque no Brasil nós guardamos muito mal a nossa história. Sei que depois que ele morreu a minha tataravó foi com as crianças no lombo de um burro para Curitiba, tentar uma vida um pouco melhor. Sei disto porque consegui, com muitas semanas de buscas, a certidão de nascimento e de casamento dele. Esta parte dos cartórios é uma via sacra. Você acha que o governo sempre cobrou e por isto ou documentos podem ser obtidos a qualquer momento, mas não é assim não, é tudo uma bagunça e muita coisa ficou perdida. Até os registros do meu bisavô e da minha tataravó no Cemitério Municipal de Curitiba estavam perdidos. Tivemos que contar com a ajuda das senhoras guardiãs destas memórias religiosas para localizar e arrumar os dados, para que eles pudessem, enfim, descansar em paz no túmulo da família (obrigada Joyce e Tatiana). Já meu tataravô ainda não descansa em paz porque no Cemitério de Paranaguá sumiram com os livros!

Ainda não descobri quando o meu tataravô conheceu a minha tataravó, mas o que sei é que se casaram e tiveram 4 filhos, dentre os quais o meu bisavô, que teve 7 filhas e 2 filhos, entre eles o meu avó, que teve 4 filhos. Este meu bisavô, casou como artista e morreu como operário, aos 44 anos de idade (dizem que comeu um chouriço e começou a passar mal – no atestado diz que morreu do coração, como a maioria das famílias naquele tempo – quando o coração para a pessoa morre mesmo). Meu bisavô deixou os 9 filhos para a minha bisavó criar, com a ajuda da minha tataravó, que teve que comprar o túmulo para enterrá-lo (a expressão não ter aonde cair morto tem a sua origem nestes tempos).

A vida em Curitiba naquela época para duas mulheres criarem sozinhas tantas crianças não era fácil não, e duas tias-avós foram parar em um orfanato, onde tinham que trabalhar muito (o estudo vinha de uma freira com tuberculose que se dispunha a ensina-las a lerem e escreverem depois do trabalho duro, das crianças). Uma dessas meninas, então com 5 anos, hoje tem 90 anos e é quem está me ajudando a contar esta história e para quem prometi registrar, para que as futuras gerações conheçam de onde vieram e tenham orgulho deste passado, que já me impulsiona ainda mais. É ela, a tia Kety, que conta que a tataravó, apesar de ser uma mulher forte em todos os sentidos (chegou a ser estivadora no Porto de Paranaguá), era uma mulher linda, assim como todas as filhas e netas, e era uma pessoa boa e alegre, cujo exemplo foi passando de geração em geração. Sou fã póstuma dela!

Até hoje, dada a precariedade dos arquivos públicos e dos cartórios, não conseguimos achar a data do óbito do meu tataravô, mas como em uma série americana, estamos bem ansiosos pelo próximo capítulo: será que ele a deixou ou morreu muito jovem? Aonde ele morreu? O que houve? São as dúvidas e a curiosidade que me impulsionam a procurar mais. Quando a tia Kety falou que o meu tararavô era ruim, passei uma semana pensando porque (viajei no tempo, tenho viajado muito, até em sonhos), depois descobri que era muito machista e queria mandar na minha tararavó, que já era uma mulher à frente do seu tempo.

Estou pensando até em pedir pensão, porque se o Estado, que deveria ter a guarda dos registros, não tem nem a certidão de óbito, quem sabe ele esteja vivo! Para se ter uma ideia, tem registros de arquivos públicos de nós brasileiros nos Estados Unidos, acessível para eles, mas não para nós. Para achar algum documento aqui dependemos da boa vontade das atendentes dos cartórios e dos arquivos públicos, que costumam ser gentis mas enfrentam dificuldades de pessoal e material. Uma busca leva mais de um mês e pode vir com um simples “não encontramos nada”. Parece que a pessoa chegou no Brasil e depois evaporou no tempo e ninguém tem nada com isto. Memória perdida.

Os livros de registros da época são dos cartórios e da igreja católica, à mão, muitos sem índices, muitos rasurados ou perdidos. A maioria encontrei no site www.familysearch.org da Igreja dos Mórmons, que microfilmou e organizou tudo na Internet. A inscrição é gratuita e a única surpresa é que certos arquivos só estão disponíveis em centros por eles indicados (ainda não tive tempo para tentar o acesso nestes Centros da Família que eles falam).

O BNDES, um banco público de valor bem maior que o econômico, financiou um projeto que ao menos catalogou os imigrantes que chegaram no Porto do Rio de Janeiro, e permite a consulta on line, no site do Arquivo Nacional. Em São Paulo tem um site do Museu da Imigração, que também traz milhares de arquivos para consulta on line, uma das muitas instituições do bem (uma ong). No Paraná, o arquivo estadual disponibiliza on line a lista dos imigrantes que chegaram no Paraná, mas o acesso aos arquivos dependem da pesquisa das servidoras públicas, que se esforçam para atender aos pedidos que aumentaram muito nos últimos meses. O cidadão não tem como pesquisar e acessar os documentos diretamente, o que é uma perda para o Brasil. O estuda da própria história ajuda a construir um futuro melhor, aproveitando as experiências, os erros e os acertos do passado. Vemos hoje um ciclo ao contrário, dos brasileiros querendo imigrar para a Europa em razão da crise de empregos aqui.

A minha busca começou assim, pela situação que o Brasil passa, mas se tornou algo muito maior, um desejo de conhecer as muitas histórias. Virou uma descoberta a cada dia, melhor que série americana, porque é uma história que se releva aos poucos e que aconteceu de fato, sem ficção, e é a nossa história. Eu me aproximei ainda mais da minha mãe com isto, ela virou minha parceira de buscas, junto com a tia Kety, viramos uma equipe que está escrevendo a história que aconteceu.

Meus filhos já estão tendo uma relação diferente com tudo isto. Um dia destes quando estava contando para eles sobre as dificuldades pelas quais a família passou, contei que a tataravó não tinha dinheiro para a condução, trabalhavam muito mas para pagar as terras e os impostos altos, andavam quilômetros para chegar na missa e não tinha dinheiro para comprar um pão, então ela comprava uma xícara de café e dividia no pires com as netas. Ele olhou o pão que havia deixado no prato e o comeu. Ali tive a certeza de que estou no caminho certo. Temos que conhecer e valorizar a nossa história, para construir um futuro melhor. Eu decidi então começar a contar está história, mas sei que temos milhões por aí, quem quiser que conte outra.

Sites de Buscas de Arquivos sobre imigrantes:

http://www.arquivopublico.pr.gov.br/

http://www.arquivonacional.gov.br/br/?option=com_content&view=article&id=17

https://www.familysearch.org/pt/

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