Rio Belo apresentará ‘Buda Nagô’ cantando Dorival Caymmi e Gilberto Gil

Logo oficial da agremiação.

Atual quinta colocada do Grupo Especial do Carnaval Virtual, a Império do Rio Belo homenageará Dorival Caymmi e Gilberto Gil através do enredo Buda Nagô de autoria de Felipe Tinoco e Lucas Abelha. O enredo possui o mesmo nome de uma canção de Gil inspirada na vida e obra de Dorival Caymmi. O leão prateado de Belo Horizonte buscará com seu enredo o título de campeã do Grupo Especial.

Confira abaixo o texto da sinopse da escola:

Logo oficial completo da agremiação.

Um enredo dedicado à Bahia de São Salvador, ao Rio de Janeiro e aos nossos Budas Nagôs: Dorival Caymmi e Gilberto Gil.

Dorival é um Buda Nagô
Filho da casa real da inspiração
Buda Nagô, canção de Gilberto Gil do álbum Parabolicamará

QUADRO 1

Balaios se transformam em parabólicas; mundo deu volta, camará. Os tempos e os espaços se entrelaçam e confundem desavisados. Após vida difícil, desencantamento e hesitações, antenas captam um novo ambiente, de cruzos e alternativas forasteiras. Dentre as frestas acessíveis, pelas fechaduras é possível vislumbrar um ambiente destacado, nascedouro da fusão afro-oriental em plena latinidade brasileira.

Sinos e ajás balançam lado a lado. Fumaças saltam de incensos e defumadores. Entidades múltiplas surgem, em um encontro divinal de duas diferentes formas de fé, de dois distintos jeitos de se estar na vida. Ao horizonte, não se sabe dizer se os edificantes são templos, igrejas ou terreiros, diante da amálgama desse par de doutrinas. Se o que se vê é Salvador ou Nepal.

Na quebra de fronteiras, o batuque e o silêncio se sobrepõem, enquanto iaôs e monges apontam para a figueira do tempo, sob copas e folhas de inspiração. Dão-se os assentamentos. Tal como um rádio sintoniza músicas, as parabólicas apontam o novo fundamento, concebido no acúmulo do acúmulo de força vital e na combinação de realidades supostas. A dobra está formada. Imergimos no universo de Buda Nagô. O que é que ele tem?

O velho sentado na beira da praia
Com os olhos perdidos nas ondas do mar
Enxerga o mistério, escreve o destino
Espera o chamado, parece sonhar
Velho do Mar (Meu Pai), canção de Dori Caymmi do álbum Poesia Musicada

QUADRO 2

Enxergando o mistério, esperando o chamado, parecendo sonhar. Dorival, primeiramente, olhou o mar. Nas ondas das Canções Praieiras, o sábio que não sabia nadar vivenciou seu estado presente quando se deparava com a água, desde muito moço. Meditou sob o som da maré quebrando na areia, com o balançar de coqueiros e a observância dos operários da natureza. Ao passo em que o pescador tinha dois amor e o canoeiro lançava a rede ao ventre do mundo, o cancioneiro contou as jangadas em euforia poética, meditabundo acerca dos trabalhadores os quais nominalmente citou. Lavadeiras e os mistérios do Abaeté mergulhavam nas melodias. Ilustrando os cenários baianos, ficava culto de si e de sua gente. Transformava a mente em oceano. Embelezou as águas de Oxum e Yemanjá, cantou por Janaína, de quem nasceu. Na consciência de Buda, Dorival é mar. 

A iluminação de um homem comum e a desnecessidade da visão sacralizante de um espaço especialmente ungido para obtê-la. Esses os sentidos de Buda Nagô.
Gilberto Gil no livro Gilberto Gil: todas as letras, de Carlos Rennó

QUADRO 3

De forma pedestre, nas coisas civis da vida, ilumina-se. No itinerário atravessado por nosso Buda Nagô, são variadas as paisagens que constituíram sua aura principiante. Foi na beira do mar? Foi. Na praia da armação? Foi também…

Para chegar ao estado de nirvana, Dorival não precisou passar por templos ou casas santas, embora as tenha visitado. Foi nos cenários de sua Salvador, cantada e percorrida, onde iniciou seu itinerário de sabedoria. Sobre a areia e perante os sóis da Armação e do Jardim de Alah, cruzou compreensões e prudências da vida. Para além das capitais, cantou que Fez uma viagem interiorana pelos sertões, com um eu-lírico cheio de andanças. Na dor, provou-se um também retirante conhecedor da ancestralidade e da diáspora. 

Pela alegria boêmia, seguiu seu caminho no solo carioca. Se outrora o sol soteropolitano dava o tom da jornada em busca da iluminação, o fim da tarde à beira-mar de Copacabana emendava-se no bar noturno à vista da lua cintilante. Nos sambas e domingos, o samba-canção e o samba ligeiro atuavam como mantras daqueles que acreditam na potência sacra dos encontros profanos. Azes, damas e reis passavam nos cassinos. Quando ele cantava, todo mundo bole. Iluminou-se, assim, na noite banhada pelo astro cheio, novo, crescente ou minguante.

Teve o mundo aos seus pés
Ele viu, nem ligou
Seguidores fiéis
E ele se adiantou
Só levou seus pincéis
A viola e uma flor
Buda Nagô, canção de Gilberto Gil do álbum Parabolicamará

QUADRO 4

Dorival se encantou – e encantou aos outros – antes de seu corpo físico ir. Ele se adiantou. Como Sidarta Gautama, abdicou da experiência da reputação absoluta e dos luxos possíveis na vida de uma estrela genial. Após a peregrinação de descobertas e iluminação, viu o sentido no seu afeto ao mundano. Concluiu que a elevação se dá pela economia. No seu respeito ao silêncio, nas telas em que pintava a si e as paisagens de sua canção – o que talvez represente uma única unidade. O resto, ele teve e passou.

Por Mãe Meninha, a estrela mais linda venerada em suas orações, Dorival foi considerado guiado por muitos orixás. Em suas obrigações, Xangô, Oxalá, Oxum e Yemanjá, doce inspiração praieira, tomavam o destino do cancioneiro. Da ialorixá Mãe Ondina, no Ilê Axé Opô Afonjá, em São Gonçalo da Bahia, recebeu a honraria de ser Obá de Xangô. À esquerda, foi um dos 12 defensores da cultura do Rei de Oió e da preservação da prática religiosa da beleza do mundo, no terreiro fundado por outra Mãe, a Aninha.

Referência de Brasil, teve em um dos seguidores fiéis seu discípulo de vida, dogma e religião. Gil viu em Dorival aquilo que ele conhece porque também é: Buda Nagô. Herdeiro de sapiência, é dele hoje o cargo de Obá Onikoyi, o mesmo que um dia foi do Mestre. Ministros desse país que balança mas não cai, trazem o Canto de Obá para apontar o caminho para nossa experiência artística-religiosa. Viramundo de festa, trabalho e pão. 2 de fevereiro, comunidade pescadora, acarajé. Dorival e Gil: tudo aquilo que estiver no tom.

Foram-se dissolvendo a dança e o canto na meia-luz do palco, as filhas-de-santo arrodilharam-se no improvisado terreiro, os alabés tocaram a saudação para o obá, o chefe da nação, o ministro mais importante, o bem-amado do povo e dos orixás. Êle vinha vindo do fundo da noite da Bahia, todo cercado dêsse céu e da vida das ruas, parecia um pescador de Itapoã, a pele côr do temporal e da espera, os cabelos brancos do muito saber, o sorrir mais doce e o falar macio. Atravessou por entre as iawôs arrodilhadas, suas filhas e suas irmãs. A platéia se levantou em aplausos, gritou seu nome, mais uma vez o reconheceu e o proclamou:

Caymmi! Dorival!
Jorge Amado
Buda Nagô.

Enredo e pesquisa: Felipe Tinoco e Lucas Abelha
Agradecimentos a Leonardo Antan, Juliana Joannou e Vítor Queiroz Teixeira

REFERÊNCIAS

Em primeiro lugar, além da canção Buda Nagô de Gilberto Gil, toda a discografia de Dorival Caymmi foi consultada, em especial investigação sobre seu primeiro álbum intitulado Canções Praieiras e as seguintes músicas: 365 Igrejas, Canto De Obá, Festa De Rua, Fiz Uma Viagem, Oração À Mãe Menininha, O Que É Que A Baiana Tem?, O Samba Da Minha Terra, Retirantes e Sábado Em Copacabana. Também deve-se destacar a música de seu filho, Dori Caymmi, chamada Velho Do Mar (Meu Pai), assim como as Parabolicamará e Viramundo, de Gilberto Gil.
CAYMMI, D. Cancioneiro da Bahia. Rio de Janeiro: Record, 1978. CULTURA BRASIL. Caymmi por ele mesmo, 2014. Disponível em: <http://culturabrasil.cmais.com.br/programas/caymmi-por-ele-mesmo/arquivo/lendas-e-crencas-de-um-oba-de-xango>.
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