‘Porta-Bandeiras: as Yalodês do samba’ é o enredo da Arte Yorubá

Logo oficial da agremiação.

A azul celeste e branco de Maria da Graça, bairro da zona norte carioca, apresentará em 2021 o enredo Porta Bandeiras: as Yalodês do samba. A escola presidida por Luyz André no ano passado ficou na décima colocação do Grupo de Acesso 1 do Carnaval Virtual, e para 2021, buscará o título do mesmo grupo. Para isso, a escola aposta na contratação de seu carnavalesco, Lorran Carvalho.

Confira abaixo a sinopse da agremiação:

Logo oficial completo da agremiação.

O matriarcado africano é um sistema social de colaboração e desenvolvimento harmonioso entre homens e mulheres, onde as mulheres têm a liderança (DIOP, 2012). Nesse sistema não uma disputa de poder baseada no gênero, mas sim uma divisão, de acordo com as competências de cada um.

Nas sociedades yorubás, por exemplo, as mulheres eram as responsáveis pelo desenvolvimento da agricultura e pelo equilíbrio do meio ambiente. Elas faziam o ritual chamado de Efé-gèlédè em louvor a Eléeye, a grande mãe, para garantir uma colheita farta, para manter o equilíbrio entre homem, natureza e as Iyámí, o poder feminino da criação. Para os yorubás, a força feminina é o que forma, dá a vida e faz a vida evoluir no Universo. Eles acreditam que a continuidade da humanidade depende das mulheres, por isso é que eles as chamam de Ìyá Nlá, grandes mães, ou Ìyààmi, nossas mães, mesmo as que não são mães.

Além de geradoras da vida, as mulheres também são o centro da vida econômica e social de sociedades tradicionais africanas. Elas eram responsáveis pelo desenvolvimento e a manutenção das atividades agrícolas, selecionando sementes, preparando o solo, plantando, colhendo e vendendo os produtos no mercado.

O matriarcado africano se manteve de pé mesmo depois da invasão e colonização do continente africano pelos europeus. Aqui no Brasil, as mulheres africanas que chegaram escravizadas, na diáspora forçada, tiveram papel fundamental para a reorganização sociocultural dos povos negros. Elas, principalmente as “escravas de ganho”, tinham maior acesso às ruas, porque na visão do colonizador o homem negro era mais agressivo. Assim, enquanto vendiam seus quitutes, lavavam roupas, costuravam, elas guardavam parte do dinheiro e articulavam fugas, levantes e organizavam quilombos. Dentre tantas, podemos destacar Luiza Mahin, Maria Conga e Dandara dos Palmares.

Elas também foram as responsáveis pela manutenção de tradições religiosas dos povos negros. As mulheres negras reorganizaram o culto aos ancestres, levantando terreiros, espaços sagrados, mas também de reestabelecimento de laços sociais. E foi das batucadas dos terreiros que o samba e as escolas de samba nasceram. Quase todas as escolas de samba do Rio de Janeiro possuem uma mulher envolvida na sua fundação. Por exemplo, a Deixa Falar nasceu sob as bençãos de Dona Mariana; a Portela por D. Neném e D. Martinha. Já a Mangueira, nasceu nos terreiros das Tias Fé e Tomásia; o Império Serrano nasceu de Tia Eulália, e a Mocidade teve as bençãos de Tia Chica.

Quando as primeiras escolas de samba nasceram, as mulheres ganharam papel de destaque, de acordo com os princípios das tradições africanas. Elas eram, baianas, as mães do samba, cozinheiras, como as mulheres yorubás, costuravam e faziam trabalhos manuais, como as mulheres bantus. Dona Ivone Lara, apesar de se tornar madrinha da ala dos compositores, desfilou por muito tempo na ala das baianas, que para ela era uma honraria.

O pavilhão das escolas de samba, símbolo da ancestralidade, a identidade da escola, era carregado por homens, porque as disputas entre as agremiações carnavalescas eram agressivas e, geralmente, eram os homens que lutavam capoeira. Então tinha a figura do porta-estandarte e dos balizas. Maria Adamastor foi uma das raras mulheres a carregar um estandarte de uma agremiação carnavalesca, isso porque ela foi fundadora de alguns blocos e ranchos.

O tempo passou, as disputas se tornaram menos agressivas e as mulheres passaram a ocupar o posto de porta-estandarte. Mas elas passam a ser as portadoras de forma oficial e obrigatória (por regulamento), quando os pavilhões passam da forma de estandarte para bandeira, através da influência de Heitor dos Prazeres que tirou o pano da costa de uma roupa de baiana e mostrou que era melhor e mais bonito para a evolução que o pavilhão tivesse forma de bandeira.

Acontece que os povos tradicionais africanos, como os bantus se identificavam através de bandeiras. Eles pintavam e bordavam pedaços de pano e as mulheres os carregavam em mastros de madeira, as apresentando para representar o seu povo em festividades, rituais de passagens, funerais, por exemplo. Durante a diáspora, as bandeiras serviam para os escravizados se identificaram e sinalizarem uns para os outros de onde eles vinham, na tentativa de remontarem laços afetivos e encontrarem alguma conexão com a terra-mãe. É daí que vem as nações do maracatu. Quando surgiram os primeiros terreiros, as bandeiras serviam para sinalizar que o local era um território negro e axé. As manifestações culturais negras que foram surgindo tinham uma bandeira como símbolo do sagrado e da identidade daquele povo.

Então, Heitor dos Prazeres ao mudar a forma do pavilhão, resgata as raízes africanas e fortalece o matriarcado no samba. As mulheres, que para a tradição africanas, são as grandes mães, passam a portar e a proteger a sua comunidade através do pavilhão. A dança da porta-bandeira, também é um sinal do matriarcado africano. Na tradição africana, o princípio da circularidade é o que movimenta a vida e faz a energia fluir em todo o Universo. A Terra gira em torno de si e em torno do Sol para captar energia térmica e luminosa para os seres vivos e para equilibrar os ciclos naturais. O girar é uma forma de acessar e espalhar a energia vital. Como são as mulheres as Ìyá nlá, grandes mães, princípio da vida, as porta-bandeiras giram acessando a ancestralidade e espalhando a o axé (energia vital) para toda a comunidade. É, portanto, ela quem cuida da manutenção da história, da ancestralidade do axé contidos no pavilhão; é, como diz Helena Theodoro, a dança da reza. A porta-bandeira quando empunha o seu pavilhão, se torna a grande líder da comunidade. É ela quem aponta o caminho a ser seguido, ela carrega a história, é o ponto que une passado (ancestralidade), presente (ela mesma, sendo o corpo que representa a comunidade) e futuro (para onde a comunidade seguirá). Uma comunidade só tem continuidade quando ela conhece seu passado e o preserva no seu presente. Citando mais uma vez Helena Theodoro, elas são o útero que contém e é contido pela comunidade. A porta-bandeira é, assim, a grande mãe de uma escola de samba, a Iyalodê. Aquela que lidera as mulheres, a dona da força, o poder feminino de uma escola de samba.

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