Deixa de Truque propõe uma releitura de enredo em seu desfile no Carnaval Virtual

Trazendo uma releitura do enredo “A verdade vos fará livre” da Estação Primeira de Mangueira no carnaval 2020, a Deixa de Truque prepara seu desfile para a Edição Especial do Carnaval Virtual que acontecerá em Fevereiro deste ano com o enredo intitulado: “As faces de Jesus no país do BBB” de autoria do carnavalesco e presidente da agremiação Tiago Herculano.

A escola optou pela participação para aproveitar a liberdade de criação que edição permite às escolas informou o carnavalesco da escola, “A escolha da direção da Escola de Samba Virtual Deixa de Truque em participar desta Edição Especial é pelo fato de encontrar maior liberdade artística na proposta da edição. Como se trata de uma edição de especial, houve uma liberação maior nas exigências artísticas por parte do formato do Carnaval Virtual que facilitou no processo artístico da agremiação em comunhão com a pesquisa acadêmica do carnavalesco. O enredo surge da atual perquirição do carnavalesco na universidade da UDESC e, algumas propostas artísticas para o desfile, talvez não funcionariam numa edição normal do Carnaval Virtual, tendo em vista o fato do enredo ser uma releitura das imagens de um Carnaval Real.

A participação da escola na Edição Especial do Carnaval Virtual ocorrerá com o enredo intitulado “As faces de Jesus no país do BBB”, pelo qual, faremos uma releitura do enredo “A verdade vos fará livre” da Estação Primeira de Mangueira no carnaval 2020. Nosso ponto de partida será a imagem do Jesus negro no carro 4, O Calvário, por ela refletiremos como essa imagem aponta para o corpo negro marginalizado no nosso atual sistema sociopolítico, assim abordaremos a imagem de Jesus por outras referências visuais com intuito de falar das parcelas sociais dos oprimidos e suas lutas conta à atual conjuntura sociopolítica do Brasil. Desta forma, as faces de Jesus que traremos neste desfile serão, não apenas um Jesus negro e mulher como apresentados pela Mangueira, mas também um Jesus nordestino, trans e indígena.

O país do BBB – bíblia, bala e o boi – resume esse atual momento político brasileiro, pelo qual, os representantes no poder possuem ideologias cristãs, a bíblia como símbolo, que legitimam o discurso de controle e punição das corporeidades subjugando os cidadãos ao sistema. Enquanto a bala nos remete as milícias desse governo e todo um sistema que torna os corpos das minorias como corpo matáveis – corpos que não servem ao sistema – estimulando, desta forma, a violência e a morte dos corpos que são percebidos como transgressores ao sistema. Por fim, o boi que aponta para a nossa flora, florestas e campos que, em vez de serem preservados, estão sendo queimados para que os grandes agricultores e criadores de gado sejam beneficiados. Além do fato do governo culpar os indígenas pela devastação e negar dados científicos perante as queimadas e desmatamentos.”

Para a edição especial a escola informa que “Infelizmente a escola encontra-se com uma equipe reduzida desde o carnaval de 2020 e não encontrou meios de fazer diferente para essa edição. Basicamente o carnavalesco e também presidente da Deixa de Truque, Tiago Herculano, fará todo o trabalho desta edição. Como não haverá julgamento, a escola não ver nesse fator da equipe nenhum entrave artístico. Por fim, a escola não irá reaproveitar nenhum material dos antigos carnavais devido o enredo ser inédito e ter como base a pesquisa do carnavalesco.”

Confira o samba inédito que a escola apresentará em seu desfile:

 

Confira também a sinopse do enredo!

As faces de Jesus no país do BBB

Autor: Tiago Herculano

Justificativa:

A referência principal para este desfile é o carnaval da Estação Primeira de Mangueira 2020, A verdade vos fará livre, do carnavalesco Leandro Vieira, contudo não estamos reeditando-o. Nosso ponto de partida é a imagem do Jesus negro no carro 4, O Calvário. Refletindo como essa imagem aponta para o corpo negro marginalizado no nosso atual sistema sociopolítico, abordaremos a imagem de Jesus por outras referências visuais com intuito de falar das parcelas sociais dos oprimidos e suas lutas conta a atual conjuntura sociopolítica do Brasil. Assim, as faces de Jesus que traremos neste desfile serão, não apenas um Jesus negro e mulher, como presentado pela Mangueira, mas um Jesus nordestino, trans e indígena.

O país do BBB – bíblia, boi e bala – resume esse atual momento político brasileiro, pelo qual, os representantes no poder possuem ideologias cristãs, a bíblia como símbolo, que legitimam o discurso de controle e punição das corporeidades subjugando os cidadãos ao sistema. Enquanto o boi aponta para os seguidores do atual presidente que aceitam e apoiam suas barbaridades, como animais guiados por ele para não o questionarem. O boi, aponta também para a nossa flora, florestas e campos, em vez de serem preservados estão sendo queimadas para que os grandes agricultores e criadores de gado sejam beneficiados. Por fim, a bala nos remete as milícias desse governo. Refere-se as violências nas ruas, na mídia e dentro de casa. Todo um sistema que torna os corpos das minorias como corpo matáveis – corpos que não servem ao sistema – estimulando, dessa forma, a morte dos corpos que são percebidos como transgressores ao sistema.

As parcelas sociais que representam as minorias da população brasileira – negros, mulheres, índios e homossexuais, por exemplo – estão, a cada dia, mais a mercê da perca de seus direitos devido essa violência e da marginalização de seus corpos. Enquanto o movimento de esquerda sofre fragmentações, o de direita legitima seu discurso excludente subjugando as outas parcelas sociais. Para isso, a direita usa de diferentes formas de legitimar seu discurso opressor. Uma das possíveis formas é pela religião cristã ao usar a figura de um Jesus branco com olhos claros afastando de sua imagem e semelhança àqueles que estão à margem da sociedade e aproximando, dessa forma, a figura de Jesus a todos que detém o poder sociopolítico do país.

Com intuito de abordar as lutas dessas parcelas sociais e romper com essa imagem de semelhança do homem branco aplicada a figura de Jesus pelos detentores do poder cristão e daqueles que usam sua imagem para legitimar seus discursos de ódio e opressão, a Deixa de Truque apresenta o enredo As faces de Jesus no país do BBB. A proposta é denunciar e questionar as barbaridades desse sistema político, para isso, cada uma dessas parcelas sociais – negros, mulheres, índios e trans, por exemplo – será representada por uma face de Jesus que enfrenta, cada um à sua maneira, os entraves sociais e políticos encontrados nesse país do BBB. Serão quatro Jesus apresentados, um para cada setor da escola, simbolizando todas faces e corpos negros, femininos, trans e indígenas. Nesse desfile, as faces de Jesus são a imagem e semelhança dessas parcelas sociais brasileiras que se encontram à margem e tentam questionar um sistema opressor ao lutarem pelos seus direitos.

 

Sinopse:

Logo oficial do enredo.

Hoje recebo de volta um dos meus filhos: Jesus. Ele nasceu retinto, de pele negra. Nasceu na pobreza do sertão nordestino, no solo rachado e de casa feita de barro. Nasceu no povo que clama por água, no povo do verde do xique-xique, mas que não esqueceu de viver sua identidade popular e festiva. Aprendeu a conviver com o solo seco, rachado, empoeirado e barrento. Trabalhou na roça sobre o sol quente e brincou ao cair da noite nas festas populares, nelas, ora era coroado na congada como nobre africano e ora coberto por um manto brilhante bordado de lantejoulas do seu querido maracatu. Prendeu a ler pelos cordéis dos mestres de sua terra e conheceu suas devoções. No terreiro de solo batido dançou com os orixás de sua casa. Sentiu o solo entre seus dedos. Sua pele negra contava histórias de seus ancestrais e seu corpo dançava de mãos dadas com sua mãe. Mas a seca o obrigou a caminhar, como fizera com tantos outros. Flores ao mar; ele se despediu de sua terra. Eu, Exu, o abracei tentando lhe confortar: “É preciso ir meu filho!”, e como um rei mago guiado por uma estrela, sempre estive lá para guiá-lo em sua jornada. Foi uma diáspora nordestina; foi mais um na cidade grande. Qual cidade? São tantas que nomear uma seria esquecer as demais. Era mais um retirante em sua jornada do sertão para a cidade. Saído de sua terra por falta de investimento. Não era a falta de água; o nordestino já tinha aprendido a conviver com sua ausência, era falta de investimento. Faltava um mundo que olhasse para ele sem desprezo. Olhou para trás e pensou “Quando o verde dos teus olhos se espalhar na plantação, eu te asseguro não chore não, viu, que eu voltarei” para o meu sertão. Ele nunca voltou. Foi chamado de bandido devido a cor de sua pele; foi chamado de Paraíba devido sua origem. Ele semeou o verde da esperança por onde passou nessa terra de concreto e, em seu coração, o desejo que todos olhassem com carinho para o seu sertão.

Não muito tarde abracei minha filha que retornava a mim: Jesus. Não demorou para que ela encontrasse seu caminho na dura vida na cidade. A marginalização e a pobreza das favelas lhe afetavam de forma dolorosa. Seu corpo nunca foi tão feminino; sua luta nunca foi tão difícil. Se provar a cada dia digno de respeito; ao direito de usar a roupa que quer e de fazer as escolhas perante seu corpo. Era um mundo estranho, era o mundo do fetiche masculino à exploração da mídia. Vigiavam seu corpo para que não caísse no etarismo e nem fosse gordo, se fosse, seria punida. Seu corpo era alvo, seu corpo era aprisionado. Percebeu que a visão que tinham dela naquele mundo era de homem de pele clara e olhos azuis. O cabelo liso não correspondia a imagem crespa que sua face carregava. Encontrou outras iguais a ela, nas mulheres de luta, lutas de 8M, sua imagem e semelhança, assim, a imagem que escolheu seguir foi a de Jesus combatente oposta a imagem do bom pastor. Com seu povo, nas ruas entre aquela floresta de concreto acinzentado, lutou de punho fechado por um mundo onde seu corpo de mulher não fosse “culposo”. Que seu corpo não fosse acorrentado e que não precisasse vestir rosa. Vi minha filha Jesus com corpo de mulher, roupas surradas e ponho erguido abrir caminho para outras ao se fazer “presente”. Ela se fez presente nas lutas. Se fez presente nas ruas, nunca nos templos. Muitos gritavam nos templos, mas não ouviam o coração. Diziam amar, mas não abraçavam o irmão. O amor incondicional era estranho naquele mundo. O que encantava a todos naquele lugar era a imagem divina no topo de uma goiabeira. Seus algozes, agora, lhe olhavam com ódio e revolta do topo dessa tal goiabeira, afinal, lá estava o salvador daqueles que detinham o poder. O messias deles usava vestes limpas, brancas e vermelhas, enquanto ela vestia palavras de ordem. Mas arrancaram sua roupa, violentaram seu corpo com ideais corrompidos pelo poder. Seu corpo se tornou culposo; foi vigiado; foi punido; foi acorrentado e obrigado a se vestir de rosa.

Minha outra filha, meu orgulho, sofreu tanto em sua jornada. Também estava nas ruas, também estava na luta; estava em todas as esquinas da vida noturna. Um mundo que percebia seu corpo com estranheza, como corpo abjeto. Por ser trans, não lhe davam oportunidade de trabalho devido sua imagem não corresponder ao seu nome. A imagem e semelhança nunca foi tão difícil de ser entendida. Estava a mercê da violência naqueles becos e nos matagais. Tinha seu corpo marginalizado tratado como fetiche. “Pai, eles não sabem segui o seu caminho de amor”. Um corpo que se entregou a arte para levar sua mensagem, mas foi perseguido e, mesmo pregando o amor do seu “evangelho, segundo a rainha do céu”, foi censurada e proibida. Surrada e maltrapilha, reencontrou seu povo nos cortejos, nos carnavais, nas paradas onde protestou contra sua imagem branca denunciando ideologias cristãs que legitimam e incentivam a morte de seu corpo trans. Em cima do trio ela foi crucificada, mas não entenderam seu recado. A mídia fez de sua imagem uma ridicularização e nas redes sociais seu corpo foi punido. Seu corpo foi cravejado pelas balas dos profetas de arma na mão. Aqueles que usam cis como arma. Aqueles que não dão oportunidade de formação e trabalho para esses corpos. São tantos profetas da intolerância nesse país, tantos que não ousamos nomear um e esquecer os demais. Todos eles pregaram seu corpo na cruz. “Pai, eles não sabem o que fazem”. Na arte, na parada, no carnaval, ela foi crucificada em tantos locais e ninguém entendeu o seu recado.

Três dias depois, meu filho ressuscitou em meio ao verde. Madalena olhava sua face no lado, preste a cair na água e se transformar em uma vitória-régia, quando viu em sua face a face de Jesus. Ele tinha voltado. Voltou, pois sua mensagem ainda precisava ser ouvida. Voltou naqueles que dançavam com o corpo pintado. Aqueles que escutavam os pássaros; escutavam as águas; escutavam a floresta, mas precisava que todos escutassem também. Voltou correndo em direção ao seu povo ao sentir o cheio de enxofre que denunciava uma queimada. O homem branco agora queimava o solo, expulsava todos eles dali, para criar seu gado. O gado era o animal símbolo daquele país que não questionava o modo como os governantes lidavam com a terra beneficiando os interesses dos grandes agricultores. Agro é top; agro é tudo! Mas Jesus não queria se deixar guiar, ele era guia, guiava pelas matas, guiava pelos caminhos e levou a mensagem por onde pisava. Subiu os degraus do Planalto levando sua mensagem, mas não foi ouvido. Foi novamente marginalizado e novamente morto. Morto por uma cultura que não valoriza sua ancestralidade indígena; morto por um sistema em que suas terras não são suas; morto por um governo que o culpa pelo fogo. Um círculo sem fim. Um Jesus após o outro. Eles tentaram e ainda tentam a cada dia ensinar que o amor incondicional e respeito não assustam. Mas havia chegado a sua hora, ele festejou naquele solo sentindo nos seus pés a sua ligação com a terra. Sentiu seus ancestrais. Os Jesus se encontraram naquele ritual ancestral de pajelança. Na pajelança, ela e ele, vários, todos voltaram aos céus, como voltou em cada manifestação que fez, voltou no congado, no maracatu, como voltou nos becos e nas vielas, voltou nas ruas, voltou nos estacionamentos dos shoppings, como voltou na parada, no carnaval, voltou de cima do trio. Mas não voltou da goiabeira. Foram tantos Jesus mortos, tantos corpos crucificados e silenciados. São tantos Jesus ainda por aí, pelo mundo, pelas florestas, pelo solo rachado, nas favelas, nas paradas, nas cruzes. Tantos retornam a cada dia, mas esse país ainda não entendeu o seu recado porque não consegue entender a sua jornada.

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