Veredito Desconfortável: A França vai às urnas em meio à crise da União Europeia

Eleições na França. Foto: Reprodução de TV

Eleições na França. Foto: Reprodução de TV

Nas vésperas do primeiro turno da eleição presidencial de 2017 (23 de abril), um novo atentado terrorista sacudiu a França. Um atirador matou um policial na avenida Champs-Élysées, um dos cartões-postais de Paris, dois meses após o atentado com uma faca nas imediações do Museu do Louvre. Ainda estavam vivas as memórias dos atentados em Nice (julho de 2016) e na própria Cidade-Luz (novembro de 2015) que vitimaram mais de 200 pessoas.

O impopular François Hollande fracassou no seu intento de combinar retórica agressiva “contra o terrorismo”, uma política externa intervencionista (na África e no Oriente Médio) e tentativas de reanimar a economia francesa pós-2008. A sequência de atentados colocou seu governo nas cordas, prejudicando seu ex-ministro e candidato do Partido Socialista, Benoît Hamon.

As quatro principais candidaturas não transmitem à França os pontos cardeais no primeiro turno. Concordaram num único ponto: mantiveram distância máxima do atual presidente da República.

O fascismo do Front National colheu os frutos da comunicação transmídia de Marine Le Pen. A ausência de canais de comunicação direta em tempo real trazendo mensagens simplificadas ao eleitorado abreviou as aspirações do líder histórico do partido, Jean-Marie Le Pen. Segunda colocada no primeiro turno em 23 de abril, Le Pen chegou ao segundo turno superando o governo socialista e a direita gaullista, tradicionais ocupantes do Palácio do Eliseu. Os mesmos meios de comunicação que a impulsionaram, porém, facilitam a aglutinação antifascista no segundo turno a se realizar em 7 de maio. Foi esse o roteiro da vitória esmagadora do gaullista Jacques Chirac contra Le Pen, quinze anos atrás.

Outro ex-ministro de Hollande, Emmanuel Macron, foi o mais votado no primeiro turno e se tornou a grande surpresa da eleição. Macron se desapegou de seu antigo apoiador com um discurso similar ao de Justin Trudeau, primeiro-ministro do Canadá e se beneficiou do fastio do eleitorado francês com governos socialistas e gaullistas. O líder do movimento “Em Macha” buscou se promover como alternativa personalista à “velha política” francesa. Macron combina a defesa dos direitos das minorias e uma postura internacionalista favorável à ampliação da integração europeia com um receituário econômico liberal. Favorito à vitória no segundo turno, seria Macron um Jean Monnet da Terceira Via para a era da pós-verdade?

O ex-primeiro ministro gaullista François Fillon caiu nas pesquisas com acusações de nepotismo e ficou fora do segundo turno. Era o candidato mais comprometido com o receituário neoliberal e com a redução dos gastos públicos (tem como modelo a ex-primeira ministra britânica Margaret Thatcher). Seu ceticismo quanto ao ritmo da integração e o apreço pela austeridade fiscal o aproximou de lideranças como as primeiras-ministras Theresa May (Reino Unido) e Angela Merkel (Alemanha). Entretanto, sofreu restrições do eleitorado, em comparações (desfavoráveis) com os antecessores Chirac e Alain Juppé (derrotado nas primárias). Fillon simbolizaria a diluição do ideário nacionalista do General Charles de Gaulle. Derrotado, anunciou apoio a Macron.

Por fim, o trotskista Jean-Luc Mélenchon foi o grande beneficiário do esvaziamento eleitoral dos socialistas. Se tornou a grande liderança da esquerda francesa com propostas abertamente críticas da integração europeia, da precarização do trabalho e dos movimentos xenófobos e islamófobos. Terceiro colocado no primeiro turno, Mélenchon se uniu às ondas de transformação trazidas por Bernie Sanders nos Estados Unidos e Jeremy Corbyn no Reino Unido: liderança da sociedade civil, no esteio da mobilização popular pós-2008, se tornou um candidato competitivo com críticas profundas ao sistema vigente. Sintomaticamente, não anunciou seu apoio no segundo turno.

Após a vitória do Brexit e a eleição de Donald Trump, poucos analistas arriscaram um prognóstico sobre as eleições francesas – cujos impactos chegarão até Bruxelas. Separados por poucos votos no primeiro turno, Macron e Le Pen lutaram contra a apatia do eleitorado. Algumas linhas de força se insinuam no segundo turno (Eurocéticos X Integracionistas). O liberalismo parece ter se tornado uma nova língua franca. Após as urnas, contradições de difícil trato aguardam o vencedor.

Após a Segunda Guerra Mundial, a economia francesa articulou de forma singular nacionalismo e internacionalismo. A manutenção de relações favoráveis com as ex-colônias (que motivou a criação de uma “moeda comum”, o Franco CFA) deu sobrevida ao fornecimento de commodities e mão de obra baratas, prolongando relações assimétricas. A expansão do processo de integração europeia também contribuiu com a oferta de mão de obra, através do influxo de trabalhadores comunitários, que assumiram as tarefas menos nobres numa economia cada vez mais aristocratizada. Após o Tratado de Nice, a maioria deles foi oriunda do Leste Europeu.

A esses benefícios, a França adicionou uma política econômica explicitamente nacionalista, mas concretizada nas instituições internacionais. A manutenção de benesses aos agricultores franceses implicou o fechamento do mercado agrícola da União Europeia a competidores das Américas e Oceania (criando um problema perene para a Organização Mundial do Comércio). O nacionalismo se estendeu a outras áreas temáticas, associado com investimentos estratégicos em tecnologias aeroespaciais e de comunicações. A França manteve suas armas nucleares fora da estrutura militar da OTAN (de Gaulle, assim, manteve a autonomia do país durante a Guerra Fria) e foi o primeiro país a construir uma rede própria de computadores pessoais na década de 1980 (Minitel).

Dois ciclos de crises do capitalismo liberal nos últimos 25 anos traçaram os limites da estratégia de crescimento francês. A primeira delas (1994-2001) vitimou as economias emergentes e desacelerou as economias do G-7. A criação de uma moeda única foi considerada um porto seguro da integração em meio à crise. O argumento motivou 19 países a aposentar as moedas nacionais, em prol do Euro.

O primeiro grande abalo na integração pós-Euro veio pouco após a assinatura do Tratado de Nice. Em referendos, os eleitorados de Holanda e França rejeitaram o embrião de uma Constituição Europeia (que daria maiores poderes aos órgãos comunitários e consolidaria os direitos dos cidadãos europeus). A dupla rejeição foi considerada uma vitória dos movimentos nacionalistas e fortaleceu os argumentos eurocéticos. A seguir, uma nova crise faria estancar a abundância de mão de obra barata e restringiria dramaticamente o investimento comunitário.

Após 2008, os compromissos de austeridade assumidos com a criação da moeda única vitimaram Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha (os PIIGS). A redução de investimentos em escala global após a desabada das ações imobiliárias nos EUA foi visível em todo o espectro da União, mas afetou especialmente os membros mais endividados e os recém-admitidos do Leste Europeu – estados grandemente beneficiados pelos investimentos do fundo comunitário desde o fim da Guerra Fria.

Os demais reiteraram seu compromisso com a austeridade. A Alemanha de Merkel tomou a frente e propôs punições, caso os recalcitrantes não atingissem as metas dos programas de reestruturação negociados por Eurogrupo e Troika (formada por Comissão Europeia, Banco Central Europeu, Fundo Monetário Internacional). Enquanto a maioria do bloco mergulhava em duradouras recessões, uma clivagem normativa separava o bloco entre os que negociavam “bailouts” e os que ditavam as normas de reestruturação. Concretizado no decorrer da crise, o Tratado de Lisboa avançou em áreas como segurança e controle de fronteiras, mas não incluiu em seu escopo as medidas emergenciais referentes à economia. A ausência dos mecanismos rejeitados nas urnas holandesas e francesas tornou evidentes as assimetrias internas na tomada de decisão comunitária em situações de crise. Movimentos nacionalistas e eurocéticos fizeram dessa fraqueza política e institucional sua bandeira.

A austeridade implicou um abrupto corte de investimentos e precarização das relações trabalhistas. Trabalhadores comunitários e imigrantes se tornaram bodes expiatórios da crise que os vitimou. Discursos xenófobos passaram a ser mais tolerados na sociedade civil europeia. Na década seguinte, estados membros propuseram a flexibilização de um dos “pilares” da integração (a livre mobilidade de pessoas), com o aumento do influxo de refugiados do Oriente Médio após a Primavera Árabe, a invasão da Líbia e a guerra civil na Síria (as duas últimas, com participação decisiva da União). Nesse momento, a xenofobia, a islamofobia e o “fim” da União se fundiam nos slogans nacionalistas.

Atos terroristas nas véspera das eleições colocam o eleitorado contra a parede. Governos com muito ou pouco respaldo popular (de Merkel a Hollande) são tentados a empreender atos de força capazes de reassegurar a confiança. Tais atos (como a decretação do estado de emergência, em vigor na França) afetam a percepção pública sobre as propostas em disputa. As chances do “estado islâmico” evitar seu declínio na Síria aterrorizando capitais europeias são mínimas (similares aos efeitos dos atentados do grupo Abu Nidal na Europa, há três décadas). O impacto mais claro aparece nas urnas: o discurso xenófobo e islamófobo da extrema-direita ganha impulso extra. Marine Le Pen agradece.

A produção das fronteiras comunitárias se tornou um elemento crucial das eleições nacionais. Em controvérsias referentes ao acolhimento de refugiados sírios, precarização do trabalho de migrantes e limitações de direitos para “combater” o terrorismo, crises dão vazão a diferentes desconfortos. Além do escopo e profundidade da integração, impasses na governança comunitária vêm à tona. O relacionamento entre diferentes níveis de autoridade política produz mais incertezas que virtudes. Outro desconforto não é exclusividade da Europa: o status da cidadania num mundo de fronteiras.

Ansiedades políticas marcam o calendário eleitoral na França e também na Alemanha e Reino Unido (Merkel busca uma difícil reeleição, ao passo que May, impulsionada pelo Brexit, antecipou as eleições). Os três países foram vítimas de atentados terroristas nos últimos meses, em suas respectivas capitais. No entanto, andam em descompasso. Desconfortos da União Europeia com as eleições nacionais trazem à tona os limites da integração que uniu 28 estados entre o Oceano Atlântico e os Montes Urais. Diferentes respostas ao terrorismo transnacional são um dos motivos para a viabilidade da Europa como comunidade de destino estar na berlinda ao longo de 2017.

*professor de Relações Internacionais e Diretor de Assuntos Internacionais da Universidade Federal do Tocantins (UFT)

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