Artigo: A Argentina contempla o abismo com o Mercosul em ruínas

Bandeira da Argentina. Foto: Pikist

Bandeira da Argentina. Foto: Pikist

Novo presidente da Argentina, Javier Milei comparou sua chegada à Casa Rosada à queda do Muro de Berlim. Este símbolo da Guerra Fria e da divisão do mundo em civilizações rivais parece distante das ambições do novo mandatário argentino, e algo também distante da atual ordem internacional. Aquele muro protegia uma disputa por corações, mentes, sistemas econômicos e mísseis nucleares.

Em 2023, variedades do capitalismo disputam as atenções da comunidade internacional, com maior ou menor participação da iniciativa privada (Milei se inclina decisivamente em favor desta) e variados papéis reservados aos estados, democráticos ou pero no mucho. Completos 40 anos de redemocratização, a Argentina se prepara para uma redução na participação econômica do estado, após três décadas de crises econômicas globalizadas que levaram 40% da população à pobreza.

No curso da pandemia, a vitória de Milei não surpreende. Nos epicentros da enfermidade global, governantes entre 2019 e 2022 sofreram, via de regra, nas urnas. Alberto Fernández se juntou a Angela Merkel, Donald Trump, Giuseppe Conte, Jair Bolsonaro, dentre as vítimas políticas da Covid.

A derrota do peronismo após Sérgio Massa liderar o primeiro turno também não surpreende. Desde a reforma eleitoral de 1995, candidatos peronistas foram derrotados em todos os pleitos em que obtiveram menos de 40% dos votos no primeiro turno. O ex-ministro da economia Massa, assim, se juntou a Eduardo Duhalde (1999) e Daniel Scioli (2015) no rol dos candidatos de situação derrotados.

Quarto presidente na Argentina democrática oposto ao legado do general Juan Domingo Perón, Milei acolheu pequeno número de mandatários em sua investidura. Do MERCOSUL, Luis Lacalle Pou (Uruguai) e Santiago Peña (presidente eleito do Paraguai) se fizeram presentes. O chileno Gabriel Boric completou a lista sulamericana. Do resto do mundo, o rei da Espanha, o primeiro-ministro da Hungria e os presidentes da Armênia e Ucrânia (Volodymyr Zelensky) prestigiaram a cerimônia.

A ausência do presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva e outros mandatários da América Latina chamou a atenção, logo após o MERCOSUL tentar, em vão, assinar um acordo de livre comércio com a União Europeia. O desinteresse europeu aumentou ao longo de 2023, com restrições ambientais à cooperação com os sulamericanos desempenhando papel fundamental. O impasse referente aos combustíveis fósseis na COP-28 alimentou a declaração do presidente francês Emmanuel Macron, que considerou anacrônico um acordo com o MERCOSUL baseado em objetivos de 30 anos atrás.

Os sinais de fraqueza no Cone Sul não foram compensados pela (tardia) adesão da Bolívia ou pelo anúncio de um acordo de livre comércio com Cingapura, importante parceiro econômico do Brasil.

No século 21, em apenas quatro ocasiões os países do MERCOSUL viram suas economias, a balança comercial e o volume de investimentos intrabloco crescerem simultaneamente, enquanto estados extrabloco (caso da China ou integrantes da União Europeia) aumentaram ainda mais sua influência.

Se o desenvolvimento sustentável é um calcanhar de Aquiles e se na performance econômica o bloco patina, o MERCOSUL enfrenta ainda a diminuição do seu perfil político. Diante da crise política na Venezuela (que se arrasta desde a morte do coronel Hugo Chávez), o bloco se limitou a suspender o país do bloco. Ao mobilizar eleitoralmente as riquezas minerais da vizinha região guianense de Essequibo, a ditadura venezuelana pôs no mapa continental o risco de uma guerra de agressão. O MERCOSUL se limitou a declarações conciliatórias (seguidas por declarações similares do governo brasileiro), ao passo que a diplomacia ficou a cargo da CELAC e do CARICOM.

As canhoneiras, por seu turno, se encaminhavam para Washington e Moscou, com exercícios militares do Comando Sul dos Estados Unidos na Guiana e uma visita de estado de Nicolás Maduro a Vladimir Putin para breve.

Após tours globais por Oriente Médio e Europa, a ausência de Lula em Buenos Aires não passou despercebida. O distanciamento dos gigantes sulamericanos é visível, talvez em seu grau mais agudo após a queda do Muro de Berlim. Esse distanciamento, ironicamente, ocorre após três décadas do aumento da interdependência entre as sociedades brasileira e argentina. A despeito de fraquezas institucionais, a integração regional se aprofundou e se tornou elemento chave de políticas públicas.

Somente levando em conta o ano de 2023 o Brasil pavimentou a entrada da Argentina nos BRICS e viabilizou um empréstimo bilionário do Novo Banco de Desenvolvimento ao governo Fernández. Em contrasta, Milei cortejou o papel de mediador na guerra da Rússia contra a Ucrânia (abandonado por Lula), com as bênçãos de Zelensky. O presidente argentino visitou Israel no auge dos bombardeios das forças de segurança israelenses a Gaza, que vitimaram mais de 15000 palestinos – enquanto o Brasil penava para retirar seus nacionais da região, após o malogro de uma proposta de cessar-fogo no Conselho de Segurança da ONU. Mesmo assim – e mantendo
promessa de não-adesão ao bloco emergente – Milei recuou de declarações bombásticas de campanha e cortejou a presença de Lula em sua posse. A ausência do Brasil é um recado agudo, de proximidade incômoda.

Às voltas com hiperinflação, convivendo com uma moeda desvalorizada frente aos vizinhos e com a economia mergulhada em estagnação (o PIB argentino de 2022 equivale ao de 2012), a Argentina de Milei assumiu juras de um duro ajuste que, no curto prazo, tornará ainda mais dramática a situação socioeconômica da outrora quinta maior economia do planeta. Enquanto a Argentina contempla o abismo, o MERCOSUL não esconde suas fraquezas. À medida que o Brasil oscila, mas sem modificar seu status, a América do Sul segue dividida com o espectro da guerra batendo à porta.

* Artigo de autoria de Carlos Frederico Pereira da Silva Gama – professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Tocantins

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