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Copa da Rússia: E o que resta da festa?

Maracanã. Foto: Claudio Nogueira.

Maracanã. Foto: Claudio Nogueira.

Para além do impacto econômico e da injeção de milhões de dólares numa cidade, região ou país, megaeventos como a Copa do Mundo, os Jogos Olímpicos ou outras relevantes competições podem provocar mudanças na sociedade, rasgando alguns tecidos envelhecidos, a serem substituídos, possibilitando novas costuras ou até mesmo a troca de roupas ou de colorido desses trajes sociais. Quando a Rússia foi escolhida como sede do ultimo Mundial, duas interrogações surgiram na mente de desportistas e de quem acompanha o noticiário internacional: Como eles irão lidar com o racismo frequentemente manifestado contra atletas negros no próprio Campeonato Russo? E como as autoridades irão atuar caso haja manifestações homoafetivas em meio aos torcedores procedentes de outras nações, já que tais comportamentos são proibidos por uma rigorosa legislação russa?

No que diz respeito a ofensas de cunho racial, a escolha da Rússia como sede do Mundial acionou o sinal de alerta entre as entidades que militam contra os casos de preconceito no esporte, como a Football Against Racism in Europe (FARE, entidade parceira da UEFA no combate a discriminação) e o Observatório da Discriminação Racial no Futebol. De acordo com Marcelo Carvalho, presidente do Observatório, tais entidades haviam alertado a FIFA de que não apenas os casos de racismo eram comuns no país e que pouco era realizado pelo governo e pela federação de futebol local para combatê-los.

“Ao longo dos últimos dois anos os olhos do mundo estiveram atentos para o que acontecia na Rússia e a FARE monitorou e apontou 19 casos de preconceito na temporada 2017/2018. A mesma entidade conseguiu convencer a FIFA da necessidade dos jogos serem monitorados temendo casos de racismo nos estádios, por este motivo um grupo de observadores monitorou os jogos eliminatórias da Copa 2018, em todo o mundo, uma parceria FIFA e FARE”, comentou Carvalho. “O Observatório, que monitora ocorrências de racismo no futebol brasileiro e com atletas brasileiros no exterior, detectou diversas ofensas ao brasileiro Hulk nos últimos quatro anos e com outros atletas em 2017, mas o que mais nos chamou a atenção foi o caso envolvendo o goleiro Guilherme, brasileiro naturalizado russo que chegou a jogar pela Rússia e ouviu cânticos racistas no estádios por parte de torcedores que não o queriam naquela seleção. No caso brasileiros do Spartak Moscou, um assessor postou um vídeo racista no Instagram oficial do clube.

As manifestações no Brasil nos alertaram para o fato de que o futebol está se distanciando da sociedade, e em última análise, dos seus verdadeiros donos: os torcedores.

Carvalho lembrou que três meses antes da Copa, na arena de São Petersburgo, em amistoso da seleção russa contra a França, gritos racistas (imitando macacos) eram ouvidos quando atletas negros franceses tocavam na bola. Isso levou a FIFA a punir a Federação Russa.

“A federação e o governo russos se preocuparam apenas em manter um clima amistoso para os turistas, mas não investiram em campanhas contra a discriminação, tampouco admitiram que isso é um problema no país o que praticamente inviabiliza o pensar ações contra o racismo para o futuro. O racismo vai continuar sendo praticado nos estádios russo e pouco ficará do esforço da FIFA e demais entidades no combate à discriminação”, disse o dirigente do Observatório.

Obviamente, a Copa e outros grandes eventos já tiveram implicações com o momento social e político dos locais em que foram realizados. Voltando no tempo quase um século, é fácil lembrar de líderes políticos que usaram o esporte como forma de promoção de suas ideologias, como Benito Mussolini, na Copa da Itália, em 1934, quando teria enviado aos jogadores da Azzurra antes da final o bilhete “Vitória ou Morte”; Adolf Hitler, nos Jogos Olímpicos de Berlim-1936, apresentados como uma manifestação do poderio nazista; ou o brasileiro Getúlio Vargas, que fazia grandes comícios para estudantes e trabalhadores no Estádio do Vasco, durante o Estado Novo, nos anos 40. Nessa mesma década, devido à Segunda Guerra Mundial, o planeta ficou privado dos Jogos Olímpicos de 1940 e 44, e das Copas de futebol de 1942 e 1946. Já o regime militar brasileiro que usou a camisa canarinho no ano do tricampeonato mundial em 1970, como símbolo de seu suposto sucesso. Na virada dos 70 para os 80, a história olímpica foi manchada por dois boicotes. Em Moscou-1980, estiveram ausentes os Estados Unidos e outras nações sob sua liderança, e em Los Angeles-1984, foi a vez do boicote do bloco liderado pela extinta União Soviética. Era a Guerra Fria no esporte.

Devido ao preconceito e à separação étnica estabelecidos por lei, de 1948 e 1994, o Apartheid, a África do Sul se viu alheia das maiores competições do mundo, organizadas, por exemplo, pela FIFA e pelo Comitê Olímpico Internacional, o COI. Em 1995, no entanto, já sob o governo do líder negro Nelson Mandela (que assumira em 1994), o país foi a sede da Copa do Mundo de Rugby, um dos torneios esportivos mais importantes do planeta. Na ocasião, num país ainda cheio de profundas divisões e feridas não saradas, Mandela fez história. Conseguiu unir negros e brancos na torcida pela seleção, embora o rugby fosse visto entre os sul-africanos como um esporte “branco” e houvesse apenas um negro na equipe nacional, Chester Williams. Os Springboks (como a seleção sul-africana da modalidade é conhecida) derrotaram a Nova Zelândia na decisão e ganharam o primeiro título mundial de rugby, motivando a produção do filme “Invictus”.

O ano de 2006 acabou ocasionando à Alemanha uma oportunidade semelhante, a de promover sua união por meio de um evento esportivo a Copa do Mundo de futebol. Verdade que os alemães já haviam organizado o Mundial de 1974 (sendo campeões). Mas a nação germânica estava dividida entre Ocidental, pró-capitalista (a que havia sediado o megaevento) e Oriental, pró-comunista. A Copa de 2006 seria diferente porque com a reunificação, a 3 de outubro de 1990, era a vez de a Alemanha organizar o campeonato.

Estádio Maracnã. Foto: Divulgação
Estádio Maracanã. Foto: Divulgação

“A Copa do Mundo de 2006 foi a primeira vez em que nós vimos o potencial do futebol de causar um impacto social na consciência do público, o que se concretizou na forma de um festival global de futebol em Berlim.”, analisou, em artigo no Huffington Post, em 2013, o alemão Jurgen Griesbeck, fundador e presidente da StreetFootballWorld, organização que utiliza esse esporte como um instrumento de transformação social.

Na Alemanha, há 12 anos, o Mundial do esporte da bola no pé acabou por fazer com que o povo dividido até 1990 passasse a se reconhecer como uma única comunidade nacional. E de dentro para fora esse mesmo povo, visto pelo restante do mundo como fechado e talvez um tanto antipático, foi receptivo aos turistas e fez festa todo o tempo, embora a campeã tivesse sido a Itália.

Em 2010, na África do Sul de Mandela (presidente entre 1994 e 1999), a organização da Copa foi vista como uma conquista de todo o continente. E, de acordo com a análise do ítalo-americano Peter Alegi, estudioso do futebol daquele país, a modalidade cimentou a pouco provável união nacional.

“Mandela e o governo da unidade nacional se voltou para o esporte para construir um novo e inclusivo senso de ‘sul-africanidade’ numa nação apaixonada por esportes com 11 línguas nacionais e profundas divisões raciais e econômicas”, escreveu Alegi.

No caso brasileiro, os períodos das Copas das Confederações e do Mundo, em 2013 e 2014 (fotos da final de 2014, no Maracanã), respectivamente, testemunharam centenas de enormes manifestações populares de protesto, algumas claramente violentas, devido aos Black Blocs. Estudiosos de sociologia e de marketing no esporte atestaram que os protestos promovidos pelos brasileiros nessas ocasiões tiveram uma força rara na própria história do país, além de terem sido a primeira vez na história das copas em que a população de um país-sede utilizou o próprio evento com plataforma de protestos.

“Pela primeira vez vimos uma reação de tal magnitude, na qual um país anfitrião se manifestou com tanta paixão e usou o futebol para chamar a atenção para alguns de suas preocupações sociais mais prementes”, escreveu Griesbeck. “As manifestações no Brasil nos alertaram para o fato de que o futebol está se distanciando da sociedade, e em última análise, dos seus verdadeiros donos: os torcedores, que moram em favelas e cidades lotadas e outras comunidades com desafios reais que permanecem após o término dos jogos. Os manifestantes nos forçaram a repensar o papel dos megaeventos esportivos e a reconsiderar o seu ‘legado social’”.

Agora, boa parte da população do planeta está com a cabeça voltada para a imprevisível dança das bolas que cruzam os gramados de 12 estádios em 11 cidades russas. Criador do Núcleo de Sociologia do Futebol da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), o professor Maurício Murad espera que o Mundial na terra de Vladimir Putin acarrete um impacto cultural mais ou menos consistente. Em seu entender, um mundial de futebol causa fortíssima interação entre diferentes pessoas, etnias, comportamentos, valores, manifestações individuais e coletivas. “Parece que o belo e extremamente politizado país de Dostoiévski e Maiakovski não será exceção. O futuro dirá”, resumiu Murad.

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