Mostra de Cinema de São Paulo: ‘O Charlatão’

Selecionado para a seção Perspectiva Internacional da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, “O Charlatão” (Charlatan – 2020, República Tcheca) assume fórmula convencional de cinebiografia para contar a trajetória do herbalista Jan Mikolásek (Ivan Trojan), que conquistou fama e fortuna ao diagnosticar anônimos, famosos, pobres, ricos, oficiais nazistas e chefes de Estado por meio de amostras de urina, receitando compostos de fabricação própria.

Ambientado na antiga Tchecoslováquia, “O Charlatão” começa apresentando ao público o evento que mudou radicalmente a vida de Mikolásek: a morte do presidente Antonín Zápotocký, em 1957, que o protegia. Com isso, a queda do herbalista se tornou uma questão de tempo, pois ele começou a ser perseguido e vigiado de perto pelo governo, sendo acusado de charlatanismo e homicídio.

Dirigido por Agnieszka Holland, o longa usa a trajetória de Mikolásek para apresentar à plateia diferentes cenários políticos do país, inclusive durante as duas guerras mundiais. Neste contexto, o filme ainda encontra espaço para inserir a perseguição aos homossexuais, tratados como criminosos por meio da suposta relação homoafetiva entre o herbalista e seu assistente, Frantisek Palko (Juraj Loj).

Empregando a técnica com esmero, algo que pode ser observado na fotografia de Martin Strba, que trabalha luzes, sombras e cores de maneira a ambientar o espectador nas diferentes épocas/fases da vida de Mikosálek, e na montagem de Pavel Hrdlicka, que insere flashbacks com precisão para contar a história pregressa do herbalista, o longa tinha como maior desafio contar uma história complexa de maneira a permitir que o espectador tirasse suas próprias conclusões. Porém, a condução de Holland, alicerçada no roteiro de Marek Epstein, oferece uma visão pré-estabelecida que trata Mikosálek como um curandeiro de dons inquestionáveis.

Tratando Mikolásek como um santo na esfera medicinal, “O Charlatão” surpreende ao expor as diferentes camadas da personalidade do retratado, mostrando o homem por trás do mito, adepto a grosserias e, por que não dizer, dono de um lado sombrio que contém requintes de crueldade, em suas relações interpessoais desde a juventude. Isto pode ser resumido em duas sequências distintas: a da humilhação da própria irmã e a que sugere a Palko induzir o aborto da esposa com ervas.

No fim das contas, o real problema de “O Charlatão” consiste na construção de sua trama, que, apesar de expor o lado monstruoso de Mikosálek, em nenhum momento questiona se o herbalista era um charlatão, como muitos ao redor do globo, ou um homem com dons divinos. Sem colocar tais questões em discussão, “O Charlatão” trilha pela perseguição política, tendo como pilares as atuações de Loj e Trojan, que divide o personagem com o filho, Josef Trojan, responsável por dar vida ao protagonista na juventude. Em total sintonia, a dupla consegue explorar com cuidado as características de seus respectivos personagens, bem como suas angústias, sobretudo no que tange ao relacionamento amoroso à época proibido. São interpretações consistentes que agregam valor à produção que representa a República Tcheca na corrida por uma vaga dentre os indicados da categoria de melhor filme internacional do Oscar 2021.

*A Mostra de Cinema de São Paulo acontece até o dia 04 de novembro, reunindo 198 títulos de 71 nacionalidades, disponibilizados na plataforma Mostra Play ao custo de R$ 6. Além disso, 30 produções serão oferecidas gratuitamente nas plataformas digitais Spcine Play e Sesc Digital, assim como sessões no Belas Artes Drive-in (Memorial da América Latina) e Cinesesc Drive-in (unidade Sesc Parque Dom Pedro II). Clique aqui para conferir a programação completa dos filmes da Mostra.