Carnavalesco da Vai-Vai quebra o silêncio ao falar sobre rebaixamento: ‘escola de samba virou negócio’

Hernane Siqueira. Foto: Acervo Pessoal/Hernane Siqueira

Hernane Siqueira. Foto: Acervo Pessoal/Hernane Siqueira

A apuração do Grupo Especial do Carnaval de São Paulo em 2019 foi marcada por ineditismos. Enquanto a Mancha Verde sagrou-se campeã pela primeira vez na história, a Vai-Vai, maior detentora de títulos da folia paulistana, foi rebaixada para o Grupo de Acesso 1.

Fundada em 1930 como bloco de cordão e com uma histórico de sambas e desfiles marcantes, a agremiação do Bixiga levou ao Anhembi este ano o enredo “O quilombo do futuro”, onde exaltou a luta do negro na sociedade.

Prestes a completar 90 anos de fundação, a escola vive um momento financeiro delicado e um racha interno que opõe a atual direção e representantes de diferentes segmentos. Desde 2014 grupo autoproclamado “Resistência” faz oposição e exige a renúncia do presidente Neguitão.

Passados 30 dias do Carnaval, o carnavalesco Hernane Siqueira, que ao lado de Roberto Monteiro foi o responsável pelo desenvolvimento artístico do desfile, quebrou o silêncio e abriu o coração para falar sobre a queda da “Escola do Povo” para a segunda divisão do samba paulistano.

Hernane Siqueira. Foto: Acervo Pessoal/Hernane Siqueira
Hernane Siqueira. Foto: Acervo Pessoal/Hernane Siqueira

“Sobre o rebaixamento da Vai-Vai, posso dizer a mesma coisa de quando houve a queda da Nenê de Vila Matilde, Camisa Verde e Unidos do Peruche. A gente sente que tradição de resistência cultural, histórica e sambística está indo embora”, disse o artista que contabiliza inúmeros trabalhos ligados ao Carnaval e passagens pelas escolas Acadêmicos do Tucuruvi Camisa Verde e Branco, Império de Casa Verde, Unidos de São Lucas, Unidos de Vila Maria, Leandro de Itaquera, Acadêmicos do Tatuapé, entre outras.

Dono de um atelier, Hernane, que também já desenvolveu projetos no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, fez um comparativo entre as culturas dos desfiles de São Paulo e Rio, criticou o regulamento e afirmou que escola de samba virou negócio.

“A Mangueira passou por várias crises. Chegou a ficar em 10º, 11º, até em 12º lugar, mas não caiu. A Portela teve fases ruins. Império Serrano, umas das grandes Rio de Janeiro, caiu. Tantas outras também. Você vê a diferença da resistência de uma escola de samba do Rio com as de São Paulo. Nós temos uma cultura burocrática, administrativa, por ser praticamente a capital de negócios do mundo. Escola de samba virou um negócio. Pouco importa o que ela vai representar culturalmente. Vejo que isso é culpa também do regulamento. Engessaram o desfile a criação e tudo. A criatividade foi para o ralo” desabafou o profissional ressaltando que o Carnaval está perdendo sua essência.

“A questão é mais ampla. A escola de samba está ‘sambando’. Dinheiro é bom e contribui para a grandiosidade do espetáculo, mas está se tornando a parte principal, o que pode causar a falência da cultura sambística”, completou.

Ao ser questionado se o resultado da apuração foi justo, Hernane foi direto ao analisar as notas de alguns quesitos:

“Não foi um desfile para pra ser derrotado”.

“O trabalho foi árduo. Nossa harmonia foi nota 40. Tentamos tirar o foco das notas baixas do Carnaval 2018, principalmente em evolução, e conseguimos reverter isso. No quesito comissão de frente a perda de pontos foi pertinente, só que com diferenças. No ano passado, tivemos realmente erros apontados de forma clara. Este ano acho que tivemos a intenção negativa já de início. Eu acredito que a escola não foi julgada pelo mérito e o peso do seu enredo, que a meu ver foi primoroso. Trouxemos um legado esquecido pelo seu povo e dentro desse legado que é o próprio samba. E quando você briga pelo racismo estrutural, você se coloca nele. Não foi um desfile para pra ser derrotado. Não digo para disputa de campeonato, mas brigava para ficar entre as cinco primeiras”, afirmou.

Hernane Siqueira. Foto: Acervo Pessoal/Hernane Siqueira

Ressaltando que nunca havia vivido a experiência de descenso em seus 26 anos de carreira, Hernane Siqueira também demonstrou surpresa com a colocação de algumas coirmãs: “É incrível como uma Mocidade Alegre com um desfile tão primoroso ficar em oitavo lugar. Junto com ela uma Acadêmicos do Tatuapé que passou maravilhosamente bem, no sétimo lugar. Sem contar uma Tom Maior que brigou com a Acadêmicos do Tucuruvi para não cair, sendo que as três ficaram empatadas em primeiro lugar no ano passado”.

Os meses que antecederam o desfile não foram fáceis para a Vai-Vai. Segundo o carnavalesco, construir um espetáculo em uma temporada repleta de situações adversas não atrapalhou o desenvolvimento do projeto apresentado na Avenida.

“Tem duas maneiras de se trabalhar uma escola gigante como a Vai-Vai. Ou você atua como um profissional que não se envolve, tipo aquele carnavalesco que vende projeto e se ausenta, ou você vai à luta. Quando digo ir à luta, é no sentido de fazer certo a partir do momento que você tem que trazer as pessoas para o projeto. Então a fórmula que eu achei pra driblar todo o ano conturbado foi trazer a comunidade para dentro. Inseri desde todos dentro de tudo. Visitação de barracão, forças tarefas para ajudar em fantasias e participação das pessoas na construção das ideias. Foi um momento novo, porque a Vai-Vai era muito fechada em relação a isso. Posso dizer que conheci cada componente da escola”, contou.

Sobre o futuro, Hernane Siqueira não fez rodeios ao falar de sua situação com a diretoria executiva da Saracura.

“Estou aguardando o pronunciamento da diretoria, mas por mim não existe tristeza, existe trabalho. 2020 está ai. Vamos superar as diferenças e fazer uma grande Carnaval rumo aos 90 anos da Escola do Povo”.

Hernane Siqueira. Foto: Kleber Santos /Comunicação Vai-Vai

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