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Artigo – Vigilância em massa: monitoramento de dados e indivíduos pela Abin

Como comentamos na última semana, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) confirmou ter utilizado sistema capaz de monitorar a localização de indivíduos por intermédio de seus celulares.

De acordo com as apurações realizadas, entre 2018 e 2022, a Abin assinou contratos sigilosos que somaram R$ 31 milhões, que incluíam a contratação de ferramenta desenvolvida para acompanhar a localização de 10 mil proprietários de celulares ao ano, sem qualquer protocolo oficial prévio.

O Ministério Público Federal, a Polícia Federal, o Tribunal de Contas da União, a Controladoria Geral da União e a Anatel informaram terem sido instaurados procedimentos para investigar o uso do sistema “First Mile” – fornecido pela empresa Cognyte -, as justificativas utilizadas para alegada dispensa de licitação e as operações de inteligência realizadas.

Segundo fontes, esse tipo de rastreamento “SS7” é feito a partir de dados transferidos do celular para torres de telecomunicações instaladas em diferentes regiões, as chamadas Estação Rádio Base (ERB). Ao obter essas informações, que deveriam ser de acesso exclusivo das operadoras, o programa oferecia aos agentes da Abin opções para que um alvo fosse monitorado em tempo real, com informações sobre seus deslocamentos, ou por área, que permitia a criação de alertas quando entrasse ou saísse de uma zona pré-definida pelo operador da Abin.

O serviço de inteligência exercido pela Abin deve, impreterivelmente, ser orientado pelo interesse público e às questões de soberania nacional, e jamais subvertido à serviço de interesses pessoais, políticos ou ideológicos.

Cabe relembrar que, apesar do que afirmou o ex-presidente Jair Bolsonaro quando solicitado a se manifestar sobre a reunião ministerial de 22 de abril de 2020, o serviço de inteligência exercido pela Abin deve, impreterivelmente, ser orientado pelo interesse público e às questões de soberania nacional, e jamais subvertido à serviço de interesses pessoais, políticos ou ideológicos.

A vigilância em massa é um tema que deve ser abordado com muita atenção e cuidado. O monitoramento não autorizado de cidadãos brasileiros pela Abin ou por qualquer outra agência de inteligência é uma violação grave dos direitos fundamentais e pode ter efeitos negativos na democracia, na economia e nos sistemas de inovação.

Não é demais lembrar que a Constituição Federal brasileira, em seu artigo 5º, garante a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, assegurando o direito à privacidade e à proteção de dados pessoais. Além disso, há normas expressas que estabelecem a utilização de recursos tecnológicos por operadoras de telefonia para assegurar a inviolabilidade do sigilo das comunicações, as condições para a interceptação de comunicações telefônicas e a garantia da privacidade dos dados do cidadão, de forma a garantir o respeito aos direitos fundamentais instituídos.

Ainda que se argumente sobre possíveis lacunas na legislação, que permitiriam interpretações amplas e subjetivas, é preciso que as autoridades respeitem os limites estabelecidos pela Constituição Federal e pelas leis vigentes e atuem com responsabilidade em relação às atividades de inteligência no país, o que inclui a definição clara de regras para o uso de tecnologias de vigilância, a realização de auditorias independentes e o estabelecimento de canais efetivos de supervisão e controle.

A falta de transparência e o uso de agências de inteligência para fins políticos podem ter consequências graves para a democracia e para os direitos dos cidadãos e resultar em abusos e violações de direitos.

Na palavra da ex-desembargadora Cecília Melo, “a ilegalidade está aí. Não está na aquisição do sistema, está no mau uso. A fundamentação do uso tem que existir e tem que ser crível. Porque, na verdade, o que se pensa hoje é que provavelmente todo esse sistema foi utilizado por razões ideológicas, de amizades e inimizades. Por questões privadas e pessoais. E isso não cabe. Por outro lado, se tivesse monitorando um atentado, caberia. A questão não é ter ou não o sistema. É o uso que você faz. (…) tem que ter um controle absoluto desse sistema. Tem que ser auditável, não pode ser obscuro. Tem que existir uma dinâmica de verificação”.

A falta de transparência e o uso de agências de inteligência para fins políticos podem ter consequências graves para a democracia e para os direitos dos cidadãos e resultar em abusos e violações de direitos.

O assunto, contudo, não é recente.

Em 2019, foi notícia o suposto monitoramento de grupos de oposição ao governo Bolsonaro pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Segundo reportagens divulgadas pela imprensa brasileira, a Abin estaria monitorando ativistas políticos e grupos que se opunham ao governo, sem uma base legal clara para tanto. As reportagens também levantaram preocupações sobre o uso de tecnologias de vigilância, como o software israelense Pegasus, que pode ser usado para monitorar telefones celulares sem o conhecimento ou consentimento dos usuários. O monitoramento ilegal de cidadãos foi criticado por organizações de direitos humanos e juristas, que alegaram violações à privacidade e à liberdade de expressão dos cidadãos. As denúncias levaram a pedidos de investigação e esclarecimentos por parte das autoridades brasileiras e de organizações internacionais de direitos humanos.

Ainda, em julho de 2020, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) emitiu uma resolução que determinava que as operadoras de telefonia móvel disponibilizassem à Abin informações de geolocalização de usuários em tempo real, alegando necessidade para a segurança nacional. Essa medida gerou críticas e questionamentos sobre a legalidade e a proteção à privacidade dos cidadãos brasileiros, especialmente em um contexto em que o governo já havia sido acusado de tentar limitar a liberdade de imprensa e de expressão. O tema foi bastante debatido na imprensa e entre especialistas em direitos digitais e privacidade.

É importante ressaltar que essa não é uma questão exclusiva do Brasil. Em outros países, também há relatos de vigilância em massa por parte de agências de inteligência, o que tem gerado preocupação em diversas escalas.

A ampliação do debate sobre a vigilância em massa é essencial para que sejam adotadas medidas efetivas.

Por exemplo, nos Estados Unidos, foi revelado em 2013 que a Agência de Segurança Nacional (NSA) estava coletando dados de comunicação de milhões de cidadãos americanos, incluindo ligações telefônicas e mensagens de texto. Essa prática gerou um intenso debate sobre a privacidade e a segurança dos dados, além de questionamentos sobre a legalidade e a eficácia da vigilância em massa.
Na Europa, a União Europeia (UE) tem adotado medidas para garantir a proteção da privacidade e dos dados pessoais dos cidadãos. Em 2018, entrou em vigor o Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD), que estabelece regras claras sobre o uso de dados pessoais e impõe multas pesadas para empresas que não cumpram as normas.

No Brasil, após dois anos da promulgação da Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD, a Agência Nacional de Proteção de Dados (ANPD) iniciou as atividades e, desde então, vem praticando diversas ações voltadas à regulamentação e fiscalização da referida lei.

É preciso que o leitor tenha conhecimento de que a proteção dos seus dados é seu direito fundamental – assim como sua privacidade -, ambas igualmente importantes para a manutenção da democracia e do Estado de Direito, e que nos cabe cobrar das autoridades públicas a adoção de medidas para proteger a privacidade e a segurança, como, por exemplo, a utilização de criptografia para proteger as comunicações, e a implementação de políticas de transparência e responsabilidade.

A ampliação do debate sobre a vigilância em massa é essencial para que sejam adotadas medidas efetivas a garantir a que não sejam violadas a privacidade, a segurança, sua intimidade e a liberdade de expressão, valores essenciais em qualquer democracia.

 

Bruna Fernanda Reis. Foto: Fábio Torres

 

*Bruna Fernanda Reis – Advogada e Consultora. Sócia em Fernanda Reis Advogados. Pós-graduada em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas. Especialista Market Surveillance pelo Insper, em Criptoeconomia pela Blockchain Academy e em Análise de dados pela Tera. fernandareisadvogados.com

Bruna Fernanda Reis*

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