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O Redesenho Moral do Samba

Arte/internet

O Carnaval 2017 parece ter sido um divisor de águas para algumas coisas que, até então, já vinham sendo corriqueiras, mas parecem, enfim, alcançar maiores proporções. Paralelamente a um momento semelhante ao todo deste país.

Estamos vivendo uma fase de redesenho moral. Você pode entender o que eu estou falando apenas com essa frase? Acredito que sim, mas pretendo ser ainda mais didático e elucidativo. E tento fazê-lo bem a meu feitio, porque gosto de elaborar textos com palavras arrumadas e reflexões profundas, mas que sejam entendidos e provoquem alguma inquietação em quem não vive só de ziriguidum, confete e feijoada.

Tenho defendido uma crença de que estamos vivendo uma fase de redesenho moral nas escolas de samba. Não sei se de todo lugar, mas posso falar claramente do Carnaval carioca por minha vasta bagagem de trânsito e circularidade em todas as suas esferas de ambiência. O redesenho moral a que me refiro não é uma boa notícia. Quer dizer, talvez seja para muitos. A meu ver, é uma marcha crucial. Ou seja, naquela lógica de Umberto Eco, meu discurso estaria muito mais para o “apocalíptico” (os que condenam a massificação) do que para os integrados (os que aderiram e defenderão tudo).

Há muitos anos que as escolas de samba padecem de três males aflitivos: 1) desprezo às tradições; 2) lógica comercial desenfreada e 3) desconhecimento midiático/cultural.

Há muitos anos que as escolas de samba padecem de três males aflitivos: 1) desprezo às tradições; 2) lógica comercial desenfreada e 3) desconhecimento midiático/cultural. As duas primeiras dizem respeito à sua ordenação interna. Os “valores” e a “pureza” da “raiz” vão sendo cada vez mais desprezados e substituídos por ideias “conceituais” que privilegiam egos de indivíduos contra tradições de instituições. O dinheiro vai norteando cada vez mais todas as etapas de todos os processos: escolha de enredo, modelo de disputa de samba, escolha dos sambas, produção de roupas para os eventos e desfiles, programações nas quadras, contratação de “profissionais” e muitos outros filões de exploração financeira possível. O terceiro item, externo, fala de um descaso da mídia tradicional, cada vez mais caricaturando personagens e transmitindo mal os desfiles oficiais. Esse quadro já vinha se repetindo há mais de 30 anos, com poucas alternativas e forçando o samba verdadeiro a um status de “sobrevivente”.

Agora vejo um cenário mais duro. Lamentavelmente, surge uma nova estratégia: derrubar os muros da resistência e sacrificar todas as tradições na busca do sucesso particular. Um raciocínio meritocrático onde moral e ética não valem praticamente mais nada! E teremos um silêncio sepulcral nas bancadas críticas, porque os críticos “precisam vender a festa”, preferindo se encaixar no esquema (por interesse ou vista grossa) do que se “expor” e arriscar privilégios.

O redesenho moral do samba prevê uma era onde as pessoas e os valores são inferiores aos modelos e aos “projetos”. Cada vez mais teremos menos gente assinando trabalhos e veremos mais “comissões”. Menos “solos” e mais “alas”. Maior trânsito de profissionais de arraigado saber em seus territórios fazendo escalas em outras freguesias. A rotatividade, até então, era de pessoas. Agora nos sugere ser uma “rotatividade de saberes”: compram-se equipes inteiras, como quem monta “times”. A nova ideia não é contratar apenas talentos individuais, mas captar ou abduzir conhecimentos inteiros.

Tomemos por exemplo o samba-enredo. Já conhecíamos a lógica dos “sambas de condomínio”, com nomes fortes fazendo sambas “invisíveis” ou em parcerias coletivas para disputas em várias quadras. A lógica de comercialização dos sambas, requerendo investimentos absurdos dos compositores em gravações profissionais, intérpretes contratados, adereços desnecessários e torcidas fakes pouco a pouco virou pressão para compra compulsória de ingressos nas noites de disputa. Disputar um samba virou uma coisa tão insana e administrativa que, aos poucos, tornou-se tarefa para “empreendedores”. Um desafio para “empresários”.

Disputar um samba virou uma coisa tão insana e administrativa que, aos poucos, tornou-se tarefa para “empreendedores”. Um desafio para “empresários”.

Isso aconteceu em vários outros departamentos das escolas de samba. Quadros funcionais, assessorias de imprensa, parte artística. Não há mais “história”, há “histeria”!

É aí que entra o que eu chamo de “redesenho moral”. Diante dessa nova lógica, que constrange muitos defensores fiéis às raízes, ocorreram desistências. O óbice disso foi que, com essas desistências, o samba ficou mais e mais escancarado para os “neoliberais do samba”, que, “em nome da modernidade”, ganharam mais espaço para fortalecer e expandir esse projeto. Inclusive “convertendo” alguns mais tradicionais ao novo modelo. Como resultado disso, a moral e a ética predominantes foram redesenhadas. As pessoas não pensam nem agem mais da mesma forma. A mentalidade dos “produtivos” é desumana e agressiva. A ancestralidade é substituída pela arrogância, pela presunção. Numa lógica nada darwiniana de “sobrevivência das espécies”, a questão não é “adaptar-se”: é eliminar a concorrência. Um “paredão de BBB” potencializado por posts hedonistas em redes sociais e intrigas de bastidores; maxivalorização pessoal e depreciação dos outros. Ninguém mais respeita uma bandeira quando precisa defender opiniões próprias ou afirmar seus valores. Motivados pela necessidade de sucesso, todos romperão as barreiras da cordialidade construídas pelos antepassados: sai a diplomacia ancestral e entra o capitalismo selvagem!

Os eventos de premiação mal conseguem esconder o excesso de vaidade e a fúria irascível em busca dos prêmios: obviamente num cenário de necessidade de valorização constante, “atropelar” o outro é questão de sobrevivência. Já que fica feio declarar isso, age-se na contramão da sinceridade. Aos poucos, as relações tornam-se mais maquiadas e mais ferinas; o respeito às tradições vai sendo refutado. É preciso “pensar diferente”, “agir diferente”.

Nós, como críticos mas também pesquisadores, percebemos claramente como os “novos legados” vão sendo construídos à força, na marra, sem respeito.

O Carnaval 2017 deixou-nos duras lições. Acidentes gravíssimos, uma morte dolorosa, retóricas de todos os tipos para justificar tragédias, dois resultados oficiais, reafirmação da decadência do sistema de julgamento (jurados) e debilidade jurídico-administrativa do samba.

Não se espantem com tudo isso que já viram: vem mais por aí!

Eu sei que, pra muita gente (de repente, até, uma maioria), tudo isso pode parecer alucinógeno ou pessimista. “Meras palavras de um colunista excêntrico”.

Aqui está meu registro. Não quero me furtar a meu ofício. São as palavras de alguém que sobreviveu a um acidente onde viu morrer uma companheira de trabalho. E que está de olhos bem abertos (e palavras bem vivas) diante de um quadro claro onde, pouco a pouco, a lógica comercial vai fazendo algo pior do que comprar as pessoas: vai alterando e redesenhando valores e princípios morais de um espaço onde as relações pessoais foram a origem de tudo.

Um mundo que nunca foi perfeito, é fato. Mas que, ao contrário de agora, nunca caminhou com tanto empenho e esforço em direção a uma lógica ambiciosa e faminta de lucro e de imperfeição.

Não se turbem. É só o começo…

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