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Triunfo da Diplomacia Chinesa: Donald Trump e Kim Jong-un se encontram em Cingapura

Durante a surpreendente campanha eleitoral de 2016, Donald Trump prometeu repassar para os aliados dos Estados Unidos a tarefa de se defender de “ameaças”. O argumento econômico (poupar recursos “apropriados” pelos aliados para investir no setor produtivo e “tornar a América grande de novo”) se provou palatável para grande parte do eleitorado e levou Trump à Casa Branca – mas se tornou piada entre especialistas em segurança nacional, além de semear o temor entre os aliados.

A ideia de que a superpotência trocaria o fornecimento de um bem público (segurança para aliados, o que Charles Kindleberger definiu como “estabilidade hegemônica”) por ganhos unilaterais de comércio é frontalmente contrária à maioria das teorias sobre a ordem internacional consolidadas após as guerras mundiais. O argumento de Trump retoma a postura isolacionista dos EUA pré-1917.

Em 2018, já presidente eleito, o magnata do setor imobiliário cumpriu a promessa de modo amplo. Trump impôs tarifas seletivas a empresas concorrentes da Europa, Ásia e América do Norte, o que o tornou persona non grata na tensa reunião do G8 no Canadá. Em 12 de Junho, em Cingapura, Trump se encontrou com o líder da Coréia do Norte Kim Jong-un – situação inédita para os países.

O bombástico aperto de mão entre líderes forneceu o argumento decisivo para a redução de custos.

A normalização das relações com a Coréia do Norte promete economizar centenas de milhões de dólares anuais, em troca das vagas concessões que Trump arregimentou junto a Kim, por intermédio do ex-chefe da CIA e novo Secretário de Estado, Mike Pompeo e contando com a colaboração de dois dos poucos aliados que Trump possui: o filipino Rodrigo Duterte e o sul-coreano Moon Jae-In.

A interrupção de testes nucleares na Península Coreana e uma eventual desnuclearização do regime norte-coreano interessam diretamente a dois aliados de primeira grandeza: Japão e Coréia do Sul. Mesmo que as chances de concretização permaneçam remotas mesmo após o encontro histórico, nenhum desses países está em condições de recusar a abertura de canais de comunicação com Kim.

Governado pelo nacionalista Shinzo Abe, o Japão busca há décadas uma oportunidade para reaver o direito à promoção da própria segurança em âmbito internacional (algo vedado pelas potências vencedoras da Segunda Guerra Mundial, via cláusula pétrea da constituição vigente desde 1952). A retirada de recursos e tropas dos EUA favorece o ânimo nacionalista de Abe, além de contribuir com o esforço de Trump de redividir as responsabilidades militares com aliados no Atlântico e Pacífico.

Beneficiário da instabilidade política que culminou no impeachment da presidenta Park Geun-hye, Moon encontrou uma janela de oportunidade para estender a mão à contraparte norte-coreana. Kim, por sua vez, aproveitou a fragilidade política do rico vizinho para acelerar seus testes nucleares. Ao ameaçar território norte-americano com seus mísseis potencialmente atômicos (Guam e Hawaii) o líder norte-coreano forçou Trump a exercer seus propalados dotes de negociador internacional.

Favorecido pela dinâmica de atrito da administração Trump, que vitimou seus principais assessores (incluindo o ocupante anterior da Secretaria de Estado Rex Tillerson, que deu início à aproximação), o governo norte-coreano articulou junto a seu principal aliado, a China de Xi Jinping, um encontro de alto nível entre os mandatários da Coréias (ocorrido em Abril, na zona desmilitarizada entre elas).

A promessa de Kim de lograr a completa desnuclearização satisfazia as expectativas dos vizinhos, mas era necessário o concurso simultâneo de China e EUA para dar conferir credibilidade e solidez às palavras do mandatário. Jinping deu seu aval em Abril e Trump acaba de completar o processo.

O papel reservado a potências regionais parece incômodo para uma China em franco crescimento. Herdeiro de uma revolução vitoriosa, as políticas de Xi Jinping buscam criar tênue equilíbrio entre pressões domésticas da economia pujante e o ambiente internacional favorável à ascensão chinesa.

Na década que se seguiu à crise de 2008, a China manteve taxas de crescimento mais próximas do auge da crise do que da bonança do novo século. O crescimento do PIB se estabilizou no platô de 7% após anos seguidos de crescimento de dois dígitos. A China se consolidou como motor do crescimento da economia global, em contraste com a esperança de que os BRICS trariam respostas à crise de 2008. A perda de fôlego da Rússia, Brasil e África do Sul aumenta o contraste entre esses emergentes e a China (o mesmo se aplica à Índia). O regime de Beijing logrou diminuir o abismo social, com quedas significativas no Índice de Gini desde a crise de 2008 – o que explica, em parte, a renovada popularidade da liderança, juntamente com o combate à corrupção. Em meados de Março, Jinping obteve novo mandado de cinco anos como Presidente da República Popular da China, no 13º Congresso Nacional do Povo. Uma reforma constitucional permitiu a reeleição do mandatário chinês, ocupante mais longevo do cargo desde o início da Revolução de 1949.

Na janela de oportunidade que se seguiu à retração do poder suave dos Estados Unidos sob Trump, Jinping se mostrou contundente na busca por uma China indispensável na regulação dos principais regimes globais – promovendo tanto o comércio mais livre quanto uma incipiente sustentabilidade. A busca por regulação articula as dimensões doméstica e externa, o que se aplica tanto à competição interna no Partido Comunista Chinês e à luta contra a corrupção na jovem classe empresarial quanto na integração logística da Ásia, através da iniciativa da Nova Rota da Seda (“um cinto, uma estrada”).

As cadeias produtivas na Ásia se integraram com base em um número restrito de princípios comuns, em contraste com a contundência e a abundância das normas produzidas pelos mecanismos de integração na Europa e Américas. O oferecimento de incentivos seletivos por parte das duas maiores economias da região (Japão e China) é feito em consonância com o respeito às soberanias nacionais. Essa lógica econômica centrada na soberania se traduz na construção de confiança entre lideranças, nem sempre formalizada através de mecanismos jurídicos. Jinping, Kim, Moon, Abe e Duterte agem com maior desenvoltura, podem fazer concessões maiores e mais rápidas do que as que seriam possíveis para a União Europeia, sem temer custos transacionais e amarras institucionais.

Essa dinâmica se provou adequada para a diplomacia do “ceteris paribus” promovida por Trump, também envolto em ativa contestação das instâncias políticas domésticas e alvo de seguidas investigações judiciais. O interesse simultâneo de China e EUA na economia da Coréia do Sul aliviou significativamente o custo político de investir em negociações uma Coréia do Norte já nuclearizada.  Sintomaticamente, o encontro ocorreu em Cingapura, importante entreposto comercial e hub da integração do Sul da Ásia, aliada de China e EUA que reconhece diplomaticamente ambas as Coréias.

Num sistema internacional em transformação, a busca por protagonismo implica a capacidade de articular parcerias de diferentes escalas, com diferentes atores. A euforia de um único mundo globalizado que se seguiria à queda do Muro de Berlim não se concretizou. 30 anos depois, um mundo com diferentes caminhos misturados se interpõe entre nossas certezas e expectativas.

Ao se tornar um parceiro indispensável para a grande maioria das nações contemporâneas, a China de Xi Jinping busca auferir o reconhecimento internacional de uma grande potência. A diplomacia em múltiplas frentes nas Coréias é uma prova da capacidade de articulação da liderança chinesa. Ao engajar Trump, a China evita atritos desnecessários com a superpotência em turbulência e diminui os custos de sua própria ascensão. O conceito chinês “duojihua” (diplomacia assimétrica) traduz um dos futuros possíveis, num mundo parcialmente globalizado, no qual o multilateralismo erodiu, as instituições se veem reféns entre controvérsias locais e globais e as democracias liberais se veem imersas numa prolongada crise de ação coletiva.

Trump e Kim acabam de oferecer a um mundo em crise um exemplo de diplomacia assimétrica com relevantes implicações para a ordem internacional do século 21. O aperto de mão promoveu a imagem de ambos como estadistas e promotores da paz global. Trump obtém um trunfo na política externa que alivia a pesada agenda doméstica e Kim, por seu turno, obtém a chancela internacional ambicionada pelos seus antecessores, com ganhos desproporcionais frente à pujante Coréia do Sul de Moon e ao Japão de Abe. O grande vencedor do dia, porém, estava ocupado em Beijing.

Carlos Frederico Pereira da Silva Gama

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Carlos Frederico Pereira da Silva Gama
Tags: ChinaDonald TrumpEstados Unidos

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