Roteirista premiado, Doc Comparato relembra momentos de sua carreira na TV

Na década de 80, Aguinaldo Silva e Doc Comparato formaram uma dupla imbatível. Juntos, escreveram a primeira minissérie produzida pela TV Globo, “Lampião e Maria Bonita”, que, entre outros, mereceu o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Artes (APCA) e a medalha de ouro do Festival Internacional de Nova Iorque. Ao longo dos anos, os dois reeditaram a parceria nas minisséries “Bandidos da Falange” e “Padre Cícero”, nos seriados “Plantão de Polícia” e “A Justiceira” e até em uma peça de teatro, “As Tias”.  “A certa altura, o Aguinaldo perguntou: ‘E aí, Doc, vamos escrever uma novela?’. Foi quando eu respondi: ‘Ih, Aguinaldo, sinto muito…’. Na vida, você tem que fazer o que gosta e trabalhar no que acredita. E eu nunca vi novela na vida. Não sou noveleiro”, justifica.

Quase 30 anos depois de “Lampião e Maria Bonita”, Aguinaldo Silva continua a escrever para a TV Globo. Atualmente, está no ar com “Lara com Z” e já se prepara para estrear, no segundo semestre, “Fina Estampa”. Mas, e Doc? Por onde está esse carioca de 52 anos que, nos anos 80, trocou definitivamente a profissão de médico pela de roteirista? “Eu me sinto praticamente um aposentado. Curiosamente, o meu trabalho é mais reconhecido e valorizado no exterior do que no meu próprio país. No Brasil, virei apenas o pai da Bianca Comparato”, lamenta Doc, autor de “Da Criação ao Roteiro”, relançado pela Editora Summus, um dos mais completos manuais de roteiro do mercado. “Não é todo mundo que tem aptidão para escrever para a TV. Por melhor que seja o professor, ele não consegue dar jeito em um aluno sem talento”, avisa.

André Bernardo – O seu nome de batismo é Luiz Felipe Loureiro Comparato. Como e quando surgiu o Doc Comparato?

Doc Comparato – O meu nome artístico surgiu na Inglaterra. Ganhei uma bolsa da British Council e fui estudar em Londres. Lá, me chamavam de Doc, que é uma abreviatura de Doctor. Quando comecei a escrever meus primeiros contos, assinava Doc Felipe Comparato. Anos depois, já no Brasil, o Ziembinski (diretor de TV) pediu que eu retirasse o Felipe e deixasse só Doc Comparato. Ainda hoje, o pessoal de casa me chama de Luiz Felipe. Volta e meia, um engraçadinho também me chama de Luiz Felipe para se passar por íntimo (risos) Antigamente, eu ficava zangado. Hoje em dia, não. Podem me chamar do que quiserem.  (risos)

AB – Você é roteirista por vocação, mas médico por formação. Se arrepende por ter largado a Medicina?

DC – Sim, muito. Durante algum tempo, deu para conciliar as duas profissões. Depois, não deu mais. A profissão de roteirista cresceu muito naquela época. Comecei a fazer teatro, TV, cinema. E ainda tinha que dar plantão. Na medicina, você tem que estudar. Na dramaturgia, também. Tudo na vida você tem que estudar. Se não fizer bem feito, tá perdido. Voltei da Inglaterra em 1978 e exerci a Medicina até 1982. Se pudesse voltar atrás, não teria largado a Cardiologia. A minha vida é feita de culpas e arrependimentos… 

AB – Nos anos 80, você escreveu três minisséries em parceria com Aguinaldo Silva. Por que nunca escreveram uma novela juntos?

DC – Novela? Não! Você tem que fazer aquilo que gosta e, principalmente, fazer aquilo em que acredita. Nunca vi novela na vida. Nunca fui fã de novela. A certa altura, o Aguinaldo perguntou: “E aí, Doc, vamos escrever novela?”. “Ih, Aguinaldo, sinto muito”, respondi. Você tem que acreditar no que faz. Hoje em dia, dependendo da equipe, talvez até aceitasse um convite, não sei.

AB – O seu último trabalho na TV Globo foi a série “Mulher”, em 1998. Por que, desde então, não trabalhou mais na emissora?

DC – Não sei responder a essa pergunta. Depois de um tempo, tentei uma reaproximação com algumas emissoras. Mas não houve interesse pelo meu trabalho. Não quis tentar muito. Hoje em dia, virei o pai da Bianca Comparato e ponto final. Eu praticamente me sinto esquecido e aposentado. Recentemente, operei o coração, tenho problemas de coluna. Não tenho mais vontade nem disposição para trabalhar na TV. O estresse é grande. Se continuasse trabalhando como cardiologista, talvez estivesse na ativa até hoje. Como escritor, me sinto desprotegido. Não há um órgão do governo brasileiro que fiscalize a venda dos livros. O repasse da verba dos meus livros é bastante questionável. A pirataria é uma coisa terrível neste país. Qualquer um pode fazer download do meu livro sem pagar um tostão.

AB – Manuais de roteiro, como os de Flávio de Campos e Syd Field, existem muitos. Qual é o diferencial do seu?

DC – O Syd Field nunca escreveu nada. Ele é apenas consultor de roteiro. Diria que, dos três, sou o único que ensina o que faz. Os outros só ensinam. Essa é a diferença.

AB – Qual é a maior virtude que um bom roteirista precisa ter para seguir carreira na TV?

DC – Ah, talento é fundamental! Sem talento, ninguém chega a lugar nenhum. Por melhor que seja o professor, ele não consegue dar jeito em um aluno sem talento. Não é todo mundo que tem aptidão para escrever para a TV. Um Manoel Carlos, por exemplo, já nasce feito. Dos que estão aí, gosto muito do Gilberto Braga, da Glória Perez…

AB – E do Aguinaldo Silva?

DC – Do Aguinaldo, também. Todos eles são bons. Mas são poucos. O problema é esse: são poucos. E amanhã, quem virá? No Brasil, em vez de crescer, o mercado está diminuindo. E esses autores estão todos acima de 60 anos. Não sei o que será da teledramaturgia brasileira.

AB – Em 2004, você foi convidado pelo SBT para fazer a adaptação de “Os Ricos Também Choram”. Que avaliação faz de sua passagem pela emissora?

DC – A minha passagem pelo SBT foi ruim, muito ruim. Não quero falar muito disso para não causar problema. Durante muito tempo, o SBT não teve departamento de teledramaturgia. Comprava tudo pronto do México. Tentei mudar isso, mas não consegui. Foi uma lástima!

AB – E como foi a experiência de integrar a equipe de colaboradores de Tiago Santiago na Record?

DC – Eu estava num momento muito difícil da minha carreira, quando o Tiago me convidou para ser colaborador dele na Record.  Trabalhamos juntos por 2 anos. Sou muito agradecido a ele por ter se lembrado de mim. Só não sei se o Tiago conseguirá dar jeito no SBT. Torço por ele.

AB – Você foi um dos fundadores da Casa de Criação de Janete Clair. Como avalia a nova geração de roteiristas na TV?

DC – Todos os que saíram de lá estão aí até hoje: Ana Maria Moretzsohn, Ricardo Linhares… Quando comecei, havia mais espaço para roteiristas no Brasil do que hoje em dia. Atualmente, o mercado é muito fechado. São sempre os mesmos autores escrevendo as mesmas novelas.  Não há renovação. O Tiago Santiago, por exemplo, tem cara de menino, mas já tem quase 50 anos. Ainda dizem que a teledramaturgia brasileira é a melhor do mundo… Isso é ufanismo bobo! O cinema brasileiro é muito mais importante do que a TV.

AB – Qual é a lembrança mais forte que você guarda da convivência com o Gabriel Garcia Marquez?

DC – Trabalhar com o Gabbo foi ótimo! Ele é um sujeito muito brincalhão, divertido. Parece uma criança. Ele não escreve bem roteiros. É a prova viva de que você pode ser um ótimo literário e um péssimo roteirista. E vice-versa. O Gabbo tem uma coisa que não tenho mais, que é alegria de viver. Segundo ele, o roteirista é o escritor do terceiro milênio.

AB – Você diria que é um roteirista mais valorizado no exterior do que no Brasil? Por quê?

DC – Vivi muito tempo fora. Talvez seja isso. Eu me sinto exilado na minha própria terra. É como se eu fosse um estrangeiro dentro do meu próprio país. Não sei se o problema é meu. Ou se é do Brasil. Outro dia, me perguntaram: “Mas você não estava morando em Portugal?” Respondi: “Estava, mas eu deixei de morar em Portugal há dez anos…”. Morei em vários outros lugares, como Argentina, México, Alemanha, mas já estou de volta ao Brasil. As pessoas continuam achando que Doc Comparato mora em algum lugar no exterior. Já estou de volta!

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