O relato franco de uma brasileira que vive em Portugal

Cláudia Rolim. Foto: Arquivo Pessoal

Há dois anos eu mudei, radicalmente, a minha vida. Em dezembro de 2017 eu fiz 50 anos e no início de fevereiro do ano seguinte estava chegando a Portugal. O que parecia ser uma nova vida transformou-se num desafio diário.

Ainda no Brasil, durante alguns meses, surgiu uma oportunidade de trabalho fora do Brasil numa Quinta(uma propriedade rural de grandes dimensões) que produz vinhos e queijos. A Quinta tem estrutura para receber hóspedes e uma loja que vende os produtos feitos ali mesmo, e como eu sempre trabalhei com artistas/eventos a ideia era trabalhar recepcionando os hóspedes e movimentando a loja e intermediando iniciativas culturais.

Parecia um sonho. Eu ia morar numa casinha e, lógico, eu teria um salário. Mas, ao desembarcar no aeroporto e chegar à Quinta descobri que o sócio que estava negociando comigo havia saído da sociedade e eu fiquei literalmente com a mala na mão. O meu “anfitrião” nada me disse antecipadamente sobre o rompimento.

Eu desfiz a minha vida inteira no meu país, vendi praticamente tudo, embarquei num avião e, de repente, tudo que eu tinha era uma mala de 23kgs na mão num país que, logo eu descobri, era apenas parecido com o meu.

Cláudia Rolim. Foto: Arquivo Pessoal

Eu sou brasileira, divorciada, com meio século de vida, mulher, jornalista (essa informação eu passei a omitir na hora de enviar o currículo para possíveis empregos) e querendo morar fora do eixo Porto-Lisboa.

Ao perceber que só me restava a mala, durante três dias dormi num típico “hotel” à beira da estrada. Num sábado à tarde, usando o wi-fi de um café consegui um quarto numa aldeia e lá permaneci durante 3 meses. Era um quarto com um banheiro onde eu tomava banho e também lavava minhas roupas e utensílios domésticos…Mas era a minha “casa”.

No Brasil todos achavam que tudo estava correndo dentro do previsto, e eu não era louca de dizer para os meus pais de 82 anos que tudo estava mal, que, de repente, eu fiquei sentada a beira do caminho sem eira e nem beira. O sonho de morar na Europa estava quase virando um pesadelo. O dinheiro que tinha levado era pouco,afinal, eu tinha ido para Portugal para trabalhar e não pra fazer turismo.

Assim começou a minha vida em Portugal. Sem nenhum glamour e com muitas dúvidas do que iria acontecer dali em diante.

Os trabalhos

No Brasil, eu era jornalista/assessora de imprensa, mas, em Portugal eu fazia (e faço) qualquer atividade que me garanta algum rendimento para viver. O menor salário mínimo da União Européia é o de Portugal (atualmente 635€) e isso faz com que os portugueses optem por viver e trabalhar no “estrangeiro” (Espanha, França, Alemanha, Suíça…), enquanto os brasileiros “invadem” Portugal.

O primeiro trabalho que consegui foi numa pastelaria (tipo a Bela Paulista em SP ou a Colombo no RJ). Um desafio para alguém que como eu não tem muita intimidade com a cozinha da própria casa!

Tirar café, decorar os nomes dos doces e dos pães, fazer contas (jornalistas costumam ser bons com palavras e não com números!) e depois do expediente limpar e arrumar tudo. Logo de cara descobri que nós (os brasileiros) não falamos e escrevemos em português. Nós falamos e escrevemos em “brasileiro”, segundo eles. Além de aprender a fazer as coisas tinha que aprender rapidamente a falar em português com as características locais.

Depois da experiência da pastelaria também exerci a função de camareira de hotel – não arrumava só os quartos, limpava a esplanada(terreno), as áreas externas, as escadas, a recepção. Chegamos a fazer 40 quartos/banheiros em um único dia. Como lembrança desse período tenho uma dor localizada nas costas infinita e diária. O banheiro é limpo não com vassoura e sim, passando um pano ajoelhada no chão. Ah, mas isso não é pra humilhar o brasileiro. É a política do hotel, ou seja, eu e os meus colegas portugueses tínhamos que limpar dessa forma.
Também fiz limpeza numa academia das 6h às 9h da manhã, o que significava que eu acordava às 5h da madrugada e às 5h30 já estava na rua, em pleno inverno. Sabe o que significa 5h30 da manhã num inverno europeu?

Durante alguns meses estive mais próxima da minha profissão. Foi quando divulguei um hotel na mídia brasileira.

Também trabalhei num Call Center e confesso que gostei porque falava em “brasileiro” e as pessoas do outro lado da linha eram simpáticas Além disso, trabalhei no porta a porta ou seja, batia nas portas das pessoas para “oferecer” um determinado serviço debaixo de chuva, com frio ou com sol. Esse tipo de trabalho ainda tem muito em Portugal, pelo menos, no Norte.

Depois desses trabalhos passei a valorizar muito as pessoas que estão atuando nessas áreas porque não é uma tarefa fácil. Nesse período também tive a oportunidade de conhecer várias aldeias (vilarejos), andava por caminhos floridos, conheci muitas frutas no pé, tive como companheiros de jornadas queridos animais (cães, gatos, ovelhas, cavalos) e pude conhecer um pouco mais do dia a dia do povo português, do homem da terra, não só da cidade.

Trabalhei como assistente de loja e estoque numa Quinta e lá conheci pessoas maravilhosas. Eu fazia parte de uma equipe de 4 meninas (lá chamamos normalmente de meninas apesar de termos 20, 30 e no meu caso mais de 50 anos), tinha as estagiárias e a equipe da loja e uma diretora muito, muito fixe (espetacular!!) Ainda lembro das mais de 400 caixas que empalhamos num único dia.

O povo

Cláudia Rolim e amigos. Foto: Arquivo Pessoal

Os portugueses são queridos, mas não são “dados” como o povo brasileiro. Há quem os ache até “grosseiros” no modo de falar, mas, quando convivemos com eles descobrimos o quanto eles são generosos, acolhedores e podem ser, até, verdadeiros anjos da guarda. E acreditem, não tenho um milhão de amigos em Portugal, mas todos que tenho considero meus anjos da guarda.
Homens e mulheres que me ajudaram desde o início e que se não fossem eles não teria conseguido chegar até aqui. Raramente vou na casa deles e eles na minha, mas todas as vezes que precisei eles me estenderam a mão, seja me ajudando a alugar meu apartamento, me dando objetos pro meu apê; roupas de frio; me dando caronas; indo para o hospital comigo; e até me dando comida pra levar pra casa mesmo sem terem certeza se eu estava precisando de comida ou não. Não há churrasco de domingo na casa dos amigos, mas há muito cafezinhos nas pastelarias, com certeza.

O idioma

Se você acha que vai pra Portugal porque lá se fala português, esqueça. Lá nós falamos brasileiro e isso muitas vezes dificulta ao invés de ajudar e além disso, a maioria dos portugueses fala inglês ou espanhol e se você não é expert em outros idiomas, acredite, você já está perdendo muitas possibilidades de trabalho.



O tempo

Eu costumo dizer que no norte de Portugal faz nove meses de inverno e três de verão, ou seja, se você não gosta de frio, morar em Portugal, apesar de nevar somente em determinados pontos e não ser um dos lugares mais congelantes da Europa, mesmo assim, o inverno maltrata, cansa e por vezes, chega mesmo a ser sacrificante.

Legalidade

Depois de ter enviado minha documentação para o SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras) eu demorei cinco meses para receber o OK deles dizendo que eu podia agendar a minha entrevista e depois aguardei 11 meses para finalmente ter a entrevista no SEF.

Do tempo entre ‘conseguir a documentação necessária para apresentar no SEF e ter finalmente, a entrevista’ vai se um “nervoso silencioso” porque apesar de termos um documento que prova que estamos agendados no SEF se formos “pegos” pela Guarda Nacional Republicana /Polícia há sempre explicações a dar porque querendo ou não estamos “ilegais”.

Aliás, muitos empregadores e as grandes empresas não nos empregam se não tivermos o visto de residência e para obter este documento só depois de passarmos pelo SEF.
Há quem tenha cidadania portuguesa, dupla nacionalidade, visto gold, quem compre casa ou abra um negócio em Portugal, mas, se for como eu fui com a cara e a coragem aí, de fato, ficamos a margem da ilegalidade, a mercê de trabalhos em empresas menores e do agendamento do SEF.

Cláudia Rolim. Foto: Arquivo Pessoal

A Mulher

Todos nós sabemos a fama que as mulheres brasileiras tem fora do Brasil, e em Portugal, não é diferente. Para piorar, há muitos anos algumas mulheres foram fazer a vida numa cidade chamada Bragança e de lá pra cá as mulheres brasileiras são olhadas como se todas fossem “as mulheres de Bragança” e isso, confesso, me cansa. Sinto que, em muitos casos, para o homem português ir para a cama com uma brasileira é como ostentar um troféu, um misto de Gabriela Cravo e Canela e as funkeiras atuais.

Jeitinho Brasileiro

Se você pensa que vai chegar em Portugal e vai dar solução pra tudo aqui ou ali, o tal jeitinho brasileiro, o jeitinho carioca, então, nem arrume sua mala. Em Portugal é preto no branco. Não existe jeitinho e nem tão pouco cotas.

Num emprego a chance de um ‘estrangeiro’ perder a vaga para um português é quase 100%. Por conta desse tal “jeitinho brasileiro” existe hoje em Portugal dois tipos de conceito: há quem diga que os brasileiros são maravilhosos porque trabalham de verdade, são dedicados. E há os que falam mal por conta de brasileiros que lá chegaram e com alguns dias de trabalho já queriam folgas, vales e por aí em diante. Muitos brasileiros, já estão voltando de Portugal.
Carta de Condução

Eu optei por não morar no eixo Porto-Lisboa. Saí de São Paulo pra morar numa cidade pequena, numa aldeia, num conselho e lá permaneço. Mas, pra morar numa aldeia é preciso ter carta de condução. Nessas localidades, 95% da população tem carro. Basta fazer 18 anos e pronto: carta de condução na mão e carro. Vários empregos não te aceitam se você não tiver carta de condução e eu perdi vários trabalhos por conta disso.

Aluguéis

Com a enorme quantidade de brasileiros e outros povos indo para Portugal os aluguéis tiveram um boom….há quem pague 400£, 500€ num quarto em Lisboa, 700€ em um apartamento de um quarto em Cascais e 300£ em cidades menos conhecidas. Existem muitos brasileiros morando em cidades como Braga, Porto, Lisboa, Coimbra, Guimarães

Os dois primeiros anos

Os primeiros 700 dias num país que não seja o seu, seja ele qual for, são sempre desafiadores. É uma outra língua, são outros costumes, outras comidas, outra cultura e muitas novidades. Boas e ruins. É o tempo de adaptação. Tempo da saudade, das dúvidas, das ansiedades, das descobertas, das decepções, dos desafios. Como eu digo sempre : você morre no seu país pra nascer de novo em um outro e começar (no meu caso do zero ou do “abaixo do zero”) e isso, acredite, não é fácil.

Cláudia Rolim. Foto: Arquivo Pessoal

Começar uma nova fase da vida aos 20 anos é muito mais tranqüilo em qualquer lugar. Querendo ou não os “enta” pesam e fazem diferença, pois, muitos lugares não quiseram me contratar porque eu já não tenho o frescor dos 20 anos. Lembro que muitas vezes eu disse que não corria o risco de engravidar, que não tinha filhos por isso não ia faltar ao trabalho por conta de reunião de escola ou doença de filho, que eu ia me dedicar ao trabalho porque não tinha papai e mamãe pra me sustentar (muitos jovens ficam um mês no emprego e depois saem porque não se sujeitam a horários puxados, trabalhos no final de semana,mas, eles têm os pais que os sustentam…), mas, mesmo assim eu ouvi muitos “nãos”.

Bem, no Brasil eu tinha uma profissão “conceituada” e talvez você esteja se perguntando porque me sujeitei a todo tipo de trabalho e eu respondo: Porque eu cansei do Brasil, cansei de ser assaltada (3 vezes no Rio de Janeiro e 4 em São Paulo). Eu cansei da minha profissão (na minha opinião está tão vulgarizada), porque eu não desisto fácil dos meus sonhos mesmo que , em muitos momentos, eles tenham parecido “pesadelos” e porque eu não queria voltar com o gosto de “fracassada”.

Afinal, pra mim era isso que ia parecer diante dos primeiros obstáculos. Eu deveria desistir diante do primeiro “fracasso”? Nunca! Por tudo isso eu fui ficando e continuo porque acredito que o pior já passou.

Os dois primeiros anos estão muito longe de ser um mar de rosas, um conto de fadas, um glamour, mas, se tiver muita força, resistência, perseverança, determinação, fé, coragem, garra e paciência é possível obter bons resultados.

Agora já tenho meu visto de residência, minha carta de condução já está na mão, tenho amigos, um novo ano inteirinho pra fazer diferente, pra fazer acontecer, pra fazer ser melhor e um país inteiro pra, finalmente, conhecer !

Cláudia Rolim
Moradora de Penafiel, a 30 kms do Porto (norte de Portugal), um concelho muito fixe pra se viver! Nós costumamos dizer que PENAFIEL está a meia hora de qualquer lugar. Da porta da minha casa tem ônibus para Espanha, Bélgica, França, Porto, Lisboa e mais uma dezena de cidades. Uma localidade cheia de atrativos culturais, literários, esportivos, agrícolas e que é governada pelo presidente da Câmara Antonino de Sousa e sua equipe de excelência e tem como ex-presidente de Câmara o advogado e escritor de vários Best Sellers, Alberto Santos.
Visite PENAFIEL e se encante pela cidade que me acolheu e que está no meu coração.
http://www.cm-penafiel.pt

*As experiências e vivências desses dois anos vividos do outro lado do Atlântico estão “rascunhadas”, e quem sabe essas minhas “mal traçadas linhas” se tornem um livro cheio de risos, lágrimas e algumas valiosas dicas.

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– Portugal: trabalho, vida e o acolhimento do povo
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