Artigo – Lula na China: ansiedades diplomáticas num mundo em convulsão

Lula com o presidente da China, Xi Jinping. Foto: Ricardo Stuckert

Há 20 anos – na época da primeira posse presidencial de Lula – o PIB do Brasil equivalia a um terço do PIB da China em valores absolutos (per capita, os brasileiros estavam bem à frente dos chineses). No começo do século 21, tanto Brasil quanto China eram vistos como países emergentes nas relações internacionais. À época, o economista da Goldman Sachs Jim O’Neill cunhou o termo “BRICS” para se referir a Brasil e China como parte de um grupo de mercados emergentes (incluindo a Rússia e a Índia).

Fenômeno marcante do início do milênio, a globalização tinha duas faces para o olhar público: o comércio e o terrorismo, no esteio dos ataques da rede Al Qaeda nos Estados Unidos em Setembro de 2001. A tônica dos primeiros anos do século era a cooperação entre os emergentes se institucionalizar, em contraste com as ações unilaterais dos Estados Unidos de George W. Bush – como o abandono do Protocolo de Quioto em 2001 e a invasão do Iraque em 2003, condenada pelo Conselho de Segurança da ONU. Brasil e China mantiveram distância cautelosa do campo de batalha no Golfo, no qual Bush colheria suas derrotas.

Os dantes emergentes não lograram construir instituições alternativas às septuagenárias criações do arcabouço internacional pós-Segunda Guerra Mundial.

O retorno de Lula ao centro da política brasileira coincidiu com sua viagem presidencial à China (após um adiamento em Março, motivado por uma pneumonia). Recepcionado pelo líder Xi Jinping e pela presidenta do Novo Banco de Desenvolvimento Dilma Rousseff, Lula voltava a representar uma economia emergente, agora equivalente à China de 2003 segundo dados do Banco Mundial. Nas últimas duas décadas, os BRICS se tornaram um grupo de caráter mais político que econômico. A entrada da África do Sul aumentou o escopo geopolítico da sigla. Os dantes emergentes não lograram construir instituições alternativas às septuagenárias criações do arcabouço internacional pós-Segunda Guerra Mundial, como o próprio Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional. Em seu discurso de chegada à China, Lula repetiu críticas aos organismos de Bretton Woods feitas há quase duas décadas: a assimetria no trato do “Sul Global” e a pouca eficiência diante de crises globais. Melancolicamente, a Argentina foi lembrada como caso cabal do fracasso das instituições financeiras internacionais em 2023 (como o fôra em 2001).

Distante de nostalgias, Xi Jinping entabulou 15 acordos com o mandatário brasileiro. A globalização de 2023 comporta caracteres contraditórios. A pandemia do novo coronavírus anunciada em Wuhan, província de Hebei, China em Novembro de 2019 contaminou mais de 10% da população mundial num par de anos. A despeito da produção em tempo recorde de uma cepa de vacinas eficazes contra a moléstia, boa parte da população mundial segue desprotegida – especialmente no “Sul Global”. Na pandemia, a China se fechou ao mundo exterior, adotando a política de “COVID-Zero” com confinamento compulsivo e testes sistemáticos de sua enorme população. O Brasil – sob o governo do capitão Jair Bolsonaro – se tornou um epicentro global da doença, com negacionismo e descoordenação nas políticas públicas. Um dos últimos países a iniciar a vacinação, o Brasil computava até o início de 2023 mais de 700 mil mortos.

Em contraste com o cenário brasileiro, parte do mundo viveu uma vigorosa recuperação econômica entre Dezembro de 2020 e Fevereiro de 2022, impulsionada pela vacinação em massa. O comércio global atingiu números recordes em fins de 2021, de acordo com a Organização Mundial do Comércio. Não obstante, a recuperação econômica associada com o “novo normal” veio atrelada ao endividamento público recorde, a uma preocupante escalada inflacionária e à diminuição global de investimentos. Duramente impactadas pelos lockdowns e pelo distanciamento social, as cadeias globais de produção se reestruturaram, primeiramente nos planos local e regional, “substituindo” insumos globais. A invasão russa da Ucrânia em 2022 trouxe novos abalos, motivadores de polarização política crescente no plano global. Alianças seletivas de investimento entre países “amigos” (friendshoring) adiaram novamente expectativas de um sistema global de comércio e investimentos o mais aberto possível – e também reafirmaram os impasses que paralisaram institucionalmente a OMC desde a Rodada de Doha (2001).

Sintomaticamente, a pauta comercial e de investimentos foi o carro-chefe das negociações entre China e Brasil, com o agronegócio e mineração brasileiros contemplados no escopo dos acordos que também favoreceram empresas de alta tecnologia chinesas. O NBD ofertou 6 bilhões de reais para investimentos imediatos em setores estratégicos, ao passo que o “friendshoring” surgiu na tentativa de reativar a fábrica da Ford em Camaçari, Bahia pela chinesa BYT. Desde 2009 (no segundo governo Lula), a China substituiu os Estados Unidos como maior parceiro comercial e investidor do Brasil.

O custo diplomático dessas opções motivou Lula a cancelar uma coletiva de imprensa e escalar o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, para a difícil tarefa de acalmar investidores e ‘parceiros tradicionais’.

A interdependência econômica se traduziu em aproximação política. Se a China foi vilipendiada pelos filhos do ex-presidente durante a pandemia, Lula afagou Xi Jinping ao reiterar o apoio brasileiro à doutrina de uma única China (incluindo, assim, Taiwan). O apoio brasileiro à tentativa de Xi mediar uma paz sem vencedores na Ucrânia veio após o vazamento de documentos confidenciais norte-americanos, que salientaram o mal-estar de Joe Biden com o apoio do Brasil a uma proposta que não diferencia agressores (Rússia) de vítimas (Ucrânia). A China chega com credenciais negociadoras reforçadas, após obter o reatamento das relações diplomáticas entre Irã e Arábia Saudita e também ao pavimentar o acordo de exportação de grãos durante a guerra, em parceria com a Turquia e o Secretário-Geral da ONU Antônio Guterres. O apoio à proposta chinesa alivia o Brasil da proposta feita por Lula à Ucrânia de uma paz mediante concessões territoriais à Rússia (ignorada pelo G7, rechaçada por Volodimir Zelenski e em desacordo com a Constituição Brasileira, no seu Artigo 5º), escapando de um vexame diplomático similar ao malogrado acordo nuclear com o Irã em 2010. Por fim, a velha promessa dos BRICS negociarem entre si usando as moedas locais em substituição ao dólar (jamais cumprida) também trouxe calafrios para os EUA e a União Europeia, tendo em vista as pesadas sanções em curso sobre o esforço de guerra russo. O custo diplomático dessas opções motivou Lula a cancelar uma coletiva de imprensa e escalar o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, para a difícil tarefa de acalmar investidores e “parceiros tradicionais”.

Embora tenha deixado há tempos a seara emergente, a China aspirante a superpotência valorizou o apoio brasileiro. Na pandemia, o crescimento econômico chinês atingiu o menor patamar em meio século. Nesse ínterim, a Índia assumiu o manto de maior motor global do crescimento dentro do grupo BRICS. Após três anos de isolamento internacional, a política de “COVID-Zero” foi abruptamente revertida após o Congresso do Partido Comunista Chinês reforçar o poder pessoal de Xi sobre gerações revolucionárias anteriores. Estimativas internacionais apontam centenas de milhões de contaminações por COVID-19 na China desde Dezembro de 2022. Como forma de promover insumos médicos e tecnologias vacinais chinesas (já acolhidas pelo Brasil desde o início da produção da CORONAVAC) e pôr fim ao negacionismo oficial do governo Bolsonaro, Xi e Lula acordaram a criação de centros conjuntos de produção de vacinas.

Separados por duas décadas de comportamentos divergentes, a pandemia reuniu Brasil e China sob um mesmo guarda-chuva na economia política. Como em outras áreas da vida humana, os longos efeitos da COVID-19 permanecem como coordenadas fundamentais do futuro próximo. Um mundo crescentemente fraturado entre o grupo de apoio à Ucrânia e simpatizantes da Rússia sob sanções convida a uma postura pragmática por parte de potências maiores e menores. Ao passo que as instituições internacionais se veem cada vez mais enfraquecidas em face do desafio duplo da pandemia e da guerra, a cooperação internacional volta a se transladar ao plano interestatal. Demonstrar proximidade ou pelo menos compreensão de circunstâncias mútuas volta a ser uma variável diplomática de peso, após efêmeros anos fiados na suposta capacidade negociadora de lideranças populistas, como Donald Trump nos EUA.

O Brasil tenta reverter o legado insalubre de Bolsonaro no plano externo, assumindo posições claras onde dantes invisibilidade e ambiguidade eram a ordem do dia.

Outra semelhança contextual entre Xi e Lula diz respeito às rupturas que suas lideranças passaram a representar, perante diferentes audiências. O Brasil tenta reverter o legado insalubre de Bolsonaro no plano externo, assumindo posições claras onde dantes invisibilidade e ambiguidade eram a ordem do dia (vide o paroxismo do capitão estar em Moscou no dia da invasão russa da Ucrânia e declarar o Brasil “neutro”). Lula afirmou que não aceitará pressões para reduzir o perfil da cooperação brasileira com a China, tido como fundamental para retomar o crescimento econômico. A década compreendida entre a reeleição de Dilma e o retorno de Lula representou o menor crescimento do PIB na era democrática e a reversão de políticas sociais de distribuição de renda e promoção de direitos sociais. A busca pela China é a busca de Lula por fôlego extra na disputa doméstica – eventualmente, pela duração de seu governo.

Por sua vez, Xi busca retomar o manto de liderança diplomática global maculado pela COVID, retomando discursos em prol da globalização e da promoção de matrizes econômicas mais sustentáveis. Após o giro de 360 graus nas políticas de saúde, a China se reabre para um mundo diverso daquele do final de 2019, em busca de alavancar seu crescimento econômico diante de menos oportunidades e maiores oposições. Além da COVID e das ameaças cada vez maiores à autonomia de Taiwan, a China experimenta a rejeição da comunidade internacional a grande parte de suas políticas domésticas (tais como a censura da mídia, repressão aos manifestantes em Hong Kong e acusações de genocídio da população Uighur em Xinjiang).

A aproximação entre os governos de China e Brasil põe em marcha diferentes tabuleiros num mundo turbulento, imerso em convulsões da pandemia e do conflito armado, marcado pelo declínio da cooperação internacional fundada em instituições. Nesse mundo, a aposta na cooperação é um risco. As lideranças brasileiras e chinesas concordam que agir em isolamento é uma opção inviável (vide COVID). Diante dos riscos do mundo globalizado (nova Guerra Fria?), os dantes emergentes voltam a convergir.

*Carlos Frederico é professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Tocantins – [email protected]

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