Vamos falar sobre a representatividade surda no Oscar?

Imagem do filme ‘CODA - No ritmo do coração'. Foto: Divulgação

Imagem do filme ‘CODA – No ritmo do coração’. Foto: Divulgação

Pela primeira vez na história do Oscar, em 94 anos, tivemos a indicação de um ator surdo, na categoria “Melhor Ator Coadjuvante”. Reconhecido por seu engajamento nas causas da comunidade surda, o ator americano Troy Kotsur, 53 anos, ganhou destaque ao interpretar o personagem Frank Rossi no filme ‘CODA – No ritmo do coração’.

“Ser indicado e receber prêmios, torna-se histórico. Muitas gerações podem olhar para trás e ver isso como um momento de destaque. ‘Filhos do silêncio’ foi o primeiro e esperamos que ‘No ritmo do coração’ seja o segundo [premiado]. Depois que eu estiver morto e enterrado, gostaria de ter esse legado”, disse Kotsur ao portal “The Hollywood Reporter”, citando Marlee Matlin, primeira e única atriz surda a ganhar o Oscar de “Melhor Atriz” e sua parceira no longa, no papel de Jackie Rossi.

Emoção e alegria para a comunidade surda

Um dos representantes da comunidade surda, o empresário e criador de conteúdo Gabriel Isaac declarou sua emoção e alegria pela indicação. “Essa notícia nos levou à loucura! É sempre incrível e emocionante ver nossa comunidade [surda] conquistando esses espaços muito importantes”, disse ele em um post.

Para celebrar a ocasião, Gabriel colocou traje de gala para gravar um vídeo em que ressalta a importância do momento.

“A comunidade surda vibrou com essa notícia visto que a representatividade é uma coisa muito importante para nós. Esse ator mostrou que é possível ultrapassar todas as barreiras na área cinematográfica e realizar seu papel com perfeição. Se você ainda não assistiu ao filme, recomendo que assista. Troy interpretou perfeitamente o papel e, tendo como base as referências da cultura surda, ele incorporou o personagem com maestria, sinalizando com uma presença muito forte, visual, e foi muito elogiado. Tanto que recebeu 31 indicações pelo papel e conquistou 9 prêmios [até o momento]. Em um depoimento, ele agradeceu a todos por esta grande honra, que não foi só pra ele, mas para toda comunidade surda sinalizante que se sentiu honrada e representada nesse acontecimento muito importante”, declarou Gabriel no vídeo, publicado em suas redes sociais.

Gabriel Isaac. Foto: Reprodução/Instagram
Gabriel Isaac. Foto: Reprodução/Instagram

“Às vezes as pessoas levam muito pro senso comum, mas se você parar pra pensar, não pensamos direito com relação ao sucesso comum, como por exemplo: a pessoa surda pode casar? ela sabe dirigir? São coisas que estão muito enraizadas na sociedade e vai ficando cada vez mais forte essa questão da desinformação”, explica o professor, tradutor e intérprete de Libras, Rony Carvalheiro, da Escola de Libras Verbo em Movimento.

Marco histórico

Para ele, essa indicação é um marco histórico por trazer visibilidade para as questões relacionadas às causas da comunidade surda. “As pessoas surdas ainda sofrem com o preconceito e é um absurdo pensar que, em pleno século 21, tem pessoas que não acreditam na capacidade delas”, explica o especialista, reconhecido por seu engajamento na causa das pessoas surdas no Brasil.

Quem também comemorou a indicação foi o ator e bailarino surdo Maycon Calasancio, que inclusive já acompanha o trabalho de Troy há alguns anos.

“Essa indicação me causou muita emoção porque o Troy é o primeiro representante surdo indicado, em muitos anos. Ele está quebrando barreiras e essa tradição que há na sociedade, de só vermos atores ouvintes em evidência. Ele é um ator surdo que usa a língua de sinais e isso também mostra a importância da nossa língua, que deve ser respeitada. Eu espero que ele consiga ganhar esse prêmio para que essa representação da comunidade surda, como um todo, fique ainda mais evidente.”

Maycon Calasancio. Foto: Divulgação
Maycon Calasancio. Foto: Divulgação

Discussão sobre o espaço ocupado pelas pessoas surdas na sociedade

Segundo Rony Carvalheiro, que também atua como consultor de acessibilidade, a indicação de apenas dois atores surdos ao Oscar, em 94 anos de premiação, traz à tona uma outra discussão, sobre o espaço ocupado pelas pessoas surdas na sociedade e sobre a falta de acesso à informação, o que aumenta ainda mais a exclusão.

“Hoje, com a internet e a tecnologia, a divulgação é muito maior e abrange muito mais pessoas, o que não aconteceu no final dos anos 1980, quando uma atriz surda [Marlee Matlin] recebeu o primeiro Oscar. Se hoje as pessoas surdas ainda sofrem com a falta de acesso à informação, porque são raros os conteúdos com acessibilidade para eles, imagina naquela ocasião! Essa informação ficou restrita a algumas pessoas surdas que tiveram a oportunidade de acompanhar, naquela ocasião. Por isso, é importante ter essa representatividade, para que as pessoas surdas se vejam representadas de verdade, que tenham projeção… isso ajuda a trazer mais visibilidade, permitindo que todos possam conhecer melhor o universo surdo e, mais que isso, entender as reais necessidades, que são na verdade direitos básicos”, completa o especialista.

Outras premiações

O ator Troy Kotsur também foi indicado a outras premiações, como SAG, BAFTA e Independent Spirit Awards, tendo conquistado nove prêmios, até o momento. Entre eles o Gotham, de Melhor Performance Coadjuvante.

Ele disputa o Oscar 2022 de Melhor Ator Coadjuvante com Ciarán Hinds (Belfast); Jesse Plemons e Kodi Smit-McPhee (Ataque dos cães); e J.K. Simmons (Apresentando os Ricardos).

A cerimônia de premiação do Oscar 2022 acontece no dia 27 de março de 2022. O filme ‘CODA – No ritmo do coração’ concorre ainda nas categorias de Melhor Filme e Melhor Roteiro Adaptado.

Vale destacar ainda que o documentário ‘Audible’, de Matt Ogens, que retrata histórias de estudantes da Escola para Surdos de Maryland, também foi indicado e concorre ao prêmio de Melhor Documentário de Curta-Metragem.

As barreiras da surdez

Em ‘CODA – No ritmo do coração’, filme de Sian Heder, Troy interpreta um surdo que enfrenta dificuldades para manter seu negócio, sendo que as barreiras na comunicação com os ouvintes e a falta de compreensão por parte da sociedade são alguns dos problemas vivenciados por sua família. Isso porque ele, a esposa e o filho, que são surdos, dependem da filha Ruby (Emilia Jones), que é ouvinte, para se comunicarem, por meio da língua de sinais.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), 1,5 bilhão de pessoas têm algum grau de perda auditiva (surdez), em todo o mundo.

Deficiência auditiva

Os dados, divulgados no Relatório Mundial da Audição da OMS, lançado em março de 2021, são os mais recentes divulgados sobre a população mundial com algum tipo de deficiência auditiva.

O relatório aponta ainda que um quarto da população global, ou o equivalente a cerca de 2,5 bilhões de pessoas, terá algum grau de perda auditiva em 2050.

Números no Brasil

Só no Brasil são mais de 10 milhões de pessoas surdas (Censo 2010), sendo que 80% desse público não é alfabetizado em português e utiliza a Língua Brasileira de Sinais (Libras) para se comunicar. Mas, como garantir a todos o direito à comunicação sem barreiras para essas pessoas, se não existe uma política pública de incentivo ao ensino da Libras?

“Entre as principais questões relacionadas à comunidade surda estão a falta de acessibilidade nos meios sociais e a falta de acessibilidade para se comunicar, já que eles utilizam a Libras – sua língua materna -, que não é conhecida por todas as pessoas, além da falta de empatia, que também é crucial”, contextualiza Rony Carvalheiro.

Rony Carvalheiro. Foto: Divulgação
Rony Carvalheiro. Foto: Divulgação

Para ele, isso se dá porque as pessoas que estão fazendo as leis não conhecem a realidade dos surdos, bem como suas necessidades.

“Você já pensou como uma pessoa surda faz para passar numa consulta hoje em dia? Isso é falta de lei, falta de respeito e falta de empatia também. Tem gente que acredita que pode se comunicar com pessoas surdas escrevendo… mas, nem sempre isso funciona. Então, essa falta de acessibilidade nos meios sociais, é muito grande e isso começa, muitas vezes, na família da pessoa surda, que muitas vezes não sabe Libras.”

Visibilidade

Para o funcionário público Alexandre Carlos da Silva, a palavra que melhor define esse momento é ‘visibilidade’. “O mundo todo assiste a premiação do Oscar e ter um ator surdo indicado vai mostrar que somos capazes e que podemos fazer planos, nos preparar, estudar, trabalhar e conquistar. Se tivermos uma chance e se nos esforçarmos, podemos atingir nossos objetivos, como qualquer outra pessoa. Só precisamos de acessibilidade e respeito.”

Alexandre Silva. Foto: Reprodução/Intagram
Alexandre Silva. Foto: Reprodução/Intagram

A importância da Libras na comunicação

Antes de mais nada, é importante entender que a Libras não é uma interpretação gestual da Língua Portuguesa. Ela é uma língua como outra qualquer no mundo, e mais que isso, ela é a língua materna das pessoas surdas e tem gramática própria. Por isso, seu aprendizado é muito importante para garantir a comunicação entre pessoas surdas e ouvintes.

Embora existam aspectos universais, pelos quais se regem todas as línguas de sinais, a comunicação das pessoas surdas não é universal e as línguas de sinais não seguem a ordem e estrutura gramatical das línguas orais. Estima-se que existam mais de 200 línguas de sinais em todo o mundo e cada uma delas têm suas próprias normas.

CODA – No Ritmo do Coração

O filme conta a história de uma família de surdos que têm negócios de pesca em Gloucester, nos Estados Unidos. A filha mais nova, Ruby, de 17 anos, é a única ouvinte da família e ajuda os pais e o irmão nas atividades do dia-a-dia.

A história retrata as barreiras de comunicação entre pessoas surdas e ouvintes, além de chamar a atenção para a importância de promover a inclusão.

Imagem do filme ‘CODA - No ritmo do coração'. Foto: Divulgação
Imagem do filme ‘CODA – No ritmo do coração’. Foto: Divulgação

‘CODA – No ritmo do coração’ também foi indicado a outros prêmios como o BAFTA e o Critics’ Choice Movie Award, entre outros, e está disponível no Amazon Prime Video.

O filme ainda tem no elenco o ator surdo Daniel Durant, no papel de Leo Rossi e Eugenio Derbez, como Bernardo Villalobos.

Sobre a Verbo em Movimento

Desde 2007, a Verbo em Movimento já formou mais de 3 mil alunos e atua com a proposta de promover a formação em Libras, possibilitando a inclusão de pessoas surdas.

Além das aulas de Libras, a Verbo em Movimento também oferece palestras gratuitas de sensibilização sobre a importância da língua de sinais para promover a inclusão da comunidade surda, além de dispor de intérpretes para intermediar conversas entre pessoas surdas e ouvintes em eventos e reuniões, entre outras ocasiões. A escola está localizada na Rua São Bento, 200, no centro de São Paulo. Para saber mais, acesse: verboemmovimento.com.

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