Cheryl Berno. Foto: Acervo pessoal

Cheryl Berno

Advogada, Consultora, Palestrante e Professora. Especialista em direito empresarial, tributário, compliance e Sistema S. Sócia da Berno Sociedade de Advocacia. Mestre em Direito Econômico e Social pela PUCPR, Pós-Graduada em Direito Tributário e Processual Tributário e em Direito Comunitário e do Mercosul, Professora de Pós-Graduação em Direito e Negócios da FGV e da A Vez do Mestre Cândido Mendes. Conselheira da Associação Comercial do Estado do Rio de Janeiro.

Um câncer raro no meio do caminho

Era um dia ensolarado, de um azul mais intenso porque depois de meses trancada em casa com os filhos e o marido, por causa da pandemia, estava saindo pela primeira vez, para fazer um exame. Não entendi muito bem, mas, o médico disse que tinha “um achado” no meu exame e precisava fazer outro para investigar. Estava ressabiada, não pelo exame, mas pela situação de pandemia. Era muito estranho sair nas ruas depois de tanto tempo em casa. Fiz o exame recomendado. Dias depois o médico disse que se tratava de um nódulo na adrenal esquerda, uma glândula conhecida como suprarrenal, que precisava ser investigado. Fiz outro exame, um que injetam um negócio radioativo e escaneiam o corpo todo, chamado de Pet-Scan com tomografia computadorizada. Quando terminou o exame, como de praxe, perguntei ao atendente se estava tudo bem e ele com uma cara assustada disse que tinha “brilhado”. Eu sou mesmo um ser de luz falei brincado, sem me dar conta da gravidade, que os olhos arregalados do técnico anunciavam. Mandei o exame para o médico, já preocupada, e ele disse que eu teria que fazer uma pulsão – enfiar uma agulha para pegar um pedaço do nódulo para análise. Nesse mundo médico vão falando tudo como se você entendesse estes termos complicados nunca antes ouvidos. Comecei a minha peregrinação para entender o que era aquele negócio que tinha aparecido. Vale explicar que todo mundo tem duas glândulas endócrinas, uma em cima de cada rim, que chamavam de suprarrenal e depois passaram a chamar de adrenal, a glândula que produz uma porção de hormônios que são essenciais à vida (eu nunca tinha ouvido falar nisso antes do nódulo, mas descobri que sem as adrenais a gente precisa de reposição por remédios para não morrer).

Quando comecei a pesquisar, vi que era um tumor e que podia ser maligno e se fosse eu poderia morrer, em uns cinco anos. Mas, a meu favor, as estatísticas, porque era raro ser câncer. Assim, embora todos os exames dessem indeterminados, tinha um risco, ainda que mínimo de ser câncer, o que já era um baque muito grande. Eu na metade da vida, eu que nunca tive dúvidas que viveria até uns 90 anos de idade, com dois filhos pequenos para criar, uma porção de sonhos para realizar, as viagens, os livros, quanta coisas eu ainda tinha para fazer. Vieram as perguntas normais: Por que eu? Por que comigo? E o medo de deixar tudo? Eu não podia ir assim tão cedo. Eu que sempre ajudei tanta gente, não fumei, não bebi, não usei drogas lícitas ou ilícitas. Está certo que passara por uma situação muito grave no trabalho e que durante a pandemia havia tido um estresse muito forte por uma obra ao lado de casa que havia tirado o sossego da família, que estava toda em casa por conta da pandemia, no entanto, ninguém acha que pode ter um câncer por isso. Só se pensa, eu não mereço.

Eu tinha que fazer a tal pulsão para uma biópsia, mas quais os riscos? Achei melhor procurar um endocrinologista, que é o médico que cuida das glândulas, hormônios, tireóide e das tais adrenais. O pai de uma grande amiga indicou um médico muito competente e humano, que me mandou fazer mais uns exames, que continuaram dando normais. Dias depois da biópsia saiu o resultado: indeterminado de novo. Nenhum exame atestava que era câncer, mas, também não descartava. Falei com a patologista que me explicou que em adrenal não dá para ver mesmo, mas que o tal KI 67 (índice de crescimento) havia dado 15, que era alto então a indicação era tirar a glândula.

Tirar uma glândula para depois saber se era câncer. Não acreditava que em 2020 ainda não existia nenhum exame que pudesse atestar se era câncer sem que tivesse que perder um órgão vital. O médico me indicou então um endocrinologista especialista em câncer de adrenal, que era muito raro até para ele. Intensifiquei os meus estudos para me convencer que de fato tinha que tirar a glândula, não obstante viver sem ela pudesse significar ficar incapacitada para muitas coisas, virar uma doente crônica, dependente de remédios para sempre. Nunca gostava de tomar nem comprimido para a dor, imagine virar dependente para viver. Será que era isto mesmo? Me ocorreu de investigar quando aquele tumor havia aparecido. Voltei ao laboratório e pedi para olharem os exames anteriores, insisti, pedi muito até que convenci os médicos e descobri quando o tumor havia aparecido e que estava crescendo muito rápido, mais de 50% em poucos meses. Então a solução era tirar mesmo.

Quando se está nesta situação a pergunta que não quer calar é por que eu? O que houve? Que tinha que tirar a adrenal já estava convencida, mas qual seria o tipo de cirurgia? O primeiro cirurgião disse que era para tirar por robótica, porque o tumor era muito pequeno – descobri muito cedo. Mas, o médico especialista disse que não, que tinha que tirar por uma cirurgia que abriria todo o meu abdômen e eu ficaria com marcas profundas, por dentro e por fora. Sempre achei tão perfeito o meu umbigo, nunca me ocorreu ser toda cortada. Passei a estudar mais e mais sobre a doença, o tipo de cirurgia, os riscos, tudo. Lia estudos e mais estudos.

Perguntei muitas vezes aonde era o centro de referência de estudos no Brasil, no mundo, mas ainda não tinha achado. Foi então que encontrei uma Associação internacional de estudos sobre câncer de adrenal, no exterior, Rede Europeia para o Estudo dos Tumores Adrenais (ENS@T). Li tudo, pesquisei e em uma nota de rodapé de um trabalho achei a USP – Universidade de São Paulo e a médica endocrinologista especialista no assunto, Dra. Maria Cândida Barrison Villares Fragoso. Entrei em contato com a secretaria da associação e para minha surpresa responderam rapidamente com cópia para a doutora brasileira, que prontamente me ligou e explicou que podia ser câncer, que se fosse seria muito raro, mas que tinha que tirar e que podia ser por uma cirurgia robótica, fechada, destas que faz pequenos cortes para tirar. Questionei se não tinha chance de ao tirar desta forma derramar o tumor pelo corpo e fazer uma metástase, a disseminação das células do câncer, mas ela explicou que a recomendação mais moderna no mundo era tirar desta forma para tumores menores, desde que o cirurgião fosse especializado.

Não imaginava que poderia pagar uma cirurgia assim como um cirurgião tão renomado, mas ele foi generoso e consegui. Fui para São Paulo, que tem os mais renomados hospitais do país. Fui morrendo de medo por tudo, ainda mais em uma pandemia. Tirei a glândula e correu tudo bem. No dia seguinte recebi o diagnóstico de que não era câncer. Comemorei muito! Resolvi doar o material para ajudar a pesquisa na USP, voltei para o Rio de Janeiro e para a minha vida, feliz e tranquila, agradecida aos médicos e a minha família, que ficou ao meu lado. Final feliz, seria um novo ano de nascimento.

Um mês depois recebi a ligação da médica dizendo que não só era câncer, como era muito raro e muito agressivo e que eu teria que fazer quimioterapia por cinco anos, com um derivado de agrotóxico, mitotano, que iria destruir eventual tumor e também a glândula que sobrou, dentre outros efetivos colaterais.

Meu mundo desmoronou – sentei no chão e chorei muito. Receber a notícia que se tem uma doença que pode te matar a qualquer momento é algo que se espera que ninguém tenha que passar. Eu havia ouvido falar no tal mitotano, o quimioterápico, mas não imaginava que teria que usar e quais as consequências. O remédio é tão forte que pode causar até alterações na memória, dentre outras coisas. Como sempre fazia, fui estudar para saber se tinha mesmo que fazer. Como se tratava de um câncer raro não tinha muitas pesquisas, pouco se sabia, mas em se tratando de algo tão agressivo mais uma vez eu não queria pagar para ver. Decidi fazer o tratamento. Eu tinha que chegar a tomar 10 ou 12 comprimidos por dia, com todas as consequências, isso por 5 anos. Também passaria a ser uma doente crônica, que tinha que usar remédios para suprir os hormônios essenciais para a vida que a adrenal deixaria de produzir.

Comecei a quimioterapia. Não é fácil seguir a vida enquanto se luta contra um câncer. Estudar ajudava. Comecei a nova fase. Com o apoio da família era mais fácil e fui superando. No terceiro mês do tratamento a médica me ligou e disse que tinha que parar tudo porque tinha feito uma hepatite aguda pelos medicamentos, algo também muito raro, que poderia me matar. Parei e me vi de frente com o destino de novo. Fazia muitos exames para monitoramento, parei até com os chás e sucos para recuperar o fígado, tive mais uma vez os melhores médicos ao meu lado. Aos poucos meu corpo foi se recuperando, os índices melhorando, comecei a reduzir os remédios que ainda era obrigada a tomar. Tinha esperança de ficar completamente curada. Li muitos livros – na verdade os comia e bebia para sorver conhecimento, aprender mais e mais, como sobreviver – tomei suco verde todos os dias, caminhei, li muito, voltei para a psicanálise, para a dança, diminui o ritmo do trabalho. Fui melhorando, me curei da hepatite, me curei da insuficiência adrenal, os exames mostraram que mesmo sem a quimioterapia, não havia mais sinal do câncer.

Quando se tem um câncer assim, tão raro e tão agressivo, se faz exames periódicos para confirmar se está tudo bem. Está e andar com fé eu vou superando os desafios que a vida traz, um dia de cada vez, divulgando esta história para quem sabe ajudar mais alguém na mesma situação. Segundo o INCA, Instituto Nacional do Câncer, 704 mil pessoas descobrirão um câncer de 2003 a 2025 no Brasil. O importante é fazer exames preventivos periodicamente e se cuidar, porque descobrir cedo faz toda a diferença.

 

Agradecimentos especiais, à família, à endocrinologista Dra. Maria Cândida Barrison Villares Fragoso, da USP/HC/ICESP, aos médicos, à ABA-Associação Brasileira Addissoniana, aos pacientes e familiares, em especial, aos da Xanda e da Iara, que acabaram falecendo precocemente de câncer de adrenal, pela falta de conhecimento sobre a doença, que nem no site do INCA está. Aos pesquisadores que fazem e vão fazer a diferença para a vida de muita gente.

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