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Pacificação do país: o equívoco da inversão de valores, por Sidney Rezende

Vice-presidente Hamilton Mourão. Foto: Isac Nóbrega/PR

Hamilton Mourão. Foto: Isac Nóbrega/PR

Numa das minhas palestras aos oficiais brasileiros e estrangeiros que faziam parte dos altos estudos da Escola Militar da Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, que é um centro de formação do Exército Brasileiro, tratamos da importância de se respeitar a Constituição e o fiel cumprimento ao que estabelece as regras da disciplina e hierarquia. O artigo 1º do Estatuto dos Militares, inclusive, estabelece para o pessoal das Forças Armadas as garantias que lhe são devidas e os deveres gerais a que estará obrigado. É só cumprir. Vale o que está escrito!

O capítulo I, o da finalidade das Forças Armadas, no art. 2º, diz que as Forças Armadas são instituições nacionais permanentes, organizadas sobre a base da disciplina hierárquica e da fiel obediência à autoridade do Presidente da República (art. 161 da Constituição). Portanto, sem querer ser redundante, o Presidente da República é o Comandante-Em-Chefe das Forças Armadas.

Desde que assumiu o posto, Luiz Inácio Lula da Silva vem sendo acusado de não trabalhar pela “pacificação do país”. Afinal, saímos de uma eleição agressiva, recheada de exemplos de ódio. De fato, é um dos ítens mais sensíveis a serem enfrentados pelo Chefe do Governo.

Mas peraí. Vamos refletir um pouco. O assunto precisa ser analisado com mais atenção depois do que aconteceu em 8 de janeiro de 2023. Não foi um acontecimento comum e, por isso, não pode ser normalizado. Foram 93% dos brasileiros consultados em pesquisa que condenaram a brutalidade selvagem daquele terrível domingo, que já entrou para a história como página sombria.

Os crimes praticados por vândalos, incentivados por seus apoiadores, financiadores e uma rede que não para de crescer, não podem ser motivo agora, em nome da “pacificação”, que se pregue anistia e um grande perdão nacional.

O que houve ali foi uma ação golpista. Os que o fizeram tinham o propósito de pavimentar uma ruptura institucional.

As investigações preliminares já identificam alguns responsáveis, não todos. Já vários bateram em retirada depois de destruir o que viram pela frente. O que houve ali foi uma ação golpista. Os que o fizeram tinham o propósito de pavimentar uma ruptura institucional.

E, mais que isso, destituir o presidente eleito e em seu lugar constituir uma ditadura militar ou qualquer outra coisa que o valha. Uma parte dos cartazes em Brasília, no dia 8 de janeiro, exigiam “intervenção militar”, mas outros defendiam que Jair Bolsonaro, derrotado nas urnas, permanecesse à frente do governo empossado pela força.

A destruição de mobiliários e peças históricas dos três poderes da República já deveria ser o suficiente para nossa indignação e a exigência do cumprimento da lei contra quem o praticou. Roubaram a obra “A bailarina”, esfaquearam um quadro de Portinari, rasgaram outro de Di Cavalcanti, levaram para casa escultura de Victor Brecheret, a toga do ministro Alexandre de Moraes e a porta da sua sala. Arremessaram cadeiras do plenário do STF e arremessaram objetos até romper as vidraças dos prédios.

Quando o presidente Lula e o ministro Alexandre de Moraes tomam as providências necessárias para restabelecer a ordem pública, começaram a crescer dizeres como “exageros”, “anistia para os manifestantes” e a palavra de ordem de que Lula não estaria disposto a trabalhar em favor da paz social.

O ex-vice-presidente da República e senador eleito Hamilton Mourão (Republicanos-RS) afirmou que o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) quer alimentar a crise com as Forças Armadas e em particular com o Exército ao demitir o comandante da tropa.

O senador está se referindo à demissão do comandante do Exército, general Júlio Cesar de Arruda, em meio a uma crise de confiança aberta após os ataques do dia 8 de janeiro. A decisão foi comunicada ao militar neste sábado (21). O general afastado é o mesmo que impediu a PM de Brasília de abordar manifestantes que participaram do quebra-quebra e se refugiaram em frente ao QG da capital federal.”Você não vai prender ninguém aqui”, teria dito o comandante do Exército ao ministro da Justiça, Flávio Dino.

Outro fator de desgaste, segundo o Uol, foi o fato do antigo ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), o tenente-coronel Mauro Cesar Barbosa Cid, ter sido designado e mantido por Arruda para assumir o 1º Batalhão de Ações de Comandos, em Goiânia. Uma tropa de elite, como o Bope nos estados, só que para ações determinadas no âmbito federal.

“Se o motivo foi tentativa de pedir a cabeça de algum militar, sem que houvesse investigação, mostra que o governo realmente quer alimentar uma crise com as Forças e em particular com o Exército. Isso aí é péssimo para o país”, disse Mourão à Folha de S. Paulo. Mesmo sob este argumento, a fala de Mourão ao criticar frontalmente Lula não foi bem recebida.

Ao comandante-em-chefe das Forças Armadas não cabia mais engolir sapos por conta de atitudes enviesadas de um dos seus subordinados.

Nem mesmo quando Bolsonaro demitiu o ministro da Defesa e os 3 comandantes militares, Mourão agiu como está se comportando agora. O que dizem os políticos com quem conversei, ligados ao governo atual, é que o senador eleito está “usando dois pesos e duas medidas”. E ele, sim, ajudando a criar “abismos” e com isso impedir a construção de pontes a serem trilhadas por Lula e militares nesta nova quadra da política brasileira.

O ex-presidente do Supremo Tribunal Federal Joaquim Barbosa deu uma resposta firme na sua rede social:

“Ora, ora, senhor Hamilton Mourão. Poupe-nos da sua hipocrisia, do seu reacionarismo, da sua cegueira deliberada e do seu facciosismo político! Fatos são fatos! Mais respeito a todos os brasileiros! ‘Péssimo para o país’ seria a continuação da baderna, da ‘chienlit’ e da insubordinação claramente inspirada e tolerada por vocês, militares. Senhor Mourão, assuma o mandato e aproveite a oportunidade para aprender pela primeira vez na vida alguns rudimentos de democracia! Não subestime a inteligência dos brasileiros!”

Ao comandante-em-chefe das Forças Armadas não cabia mais engolir sapos por conta de atitudes enviesadas de um dos seus subordinados. Inversão de valores não é bom exemplo de disciplina e muito menos de respeito à hierarquia. Os militares sabem disso, porque estudam a matéria nos seus cursos acadêmicos. A sensatez reina junto ao pensamento da esmagadora maioria. E que assim permaneça.

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