Bundas e paetês: quem disse que o funk não pode ser criticado?

Lulu Santos. Foto: Leo Aversa

Lulu Santos. Foto: Leo Aversa

A semana termina com o mimimi em torno de um tweet postado pelo cantor Lulu Santos sobre o momento da música popular brasileira: “Caramba! É tanta bunda, polpa, bumbum granada e tabaca que a impressão que dá é que a MPB regrediu pra fase anal. Eu, hein?”. A crítica foi entendida como uma referência ao clipe de “Vai Malandra”, nova música de Anitta lançada segunda-feira, 18.

Ao invés do artista desenrolar o que pensa sobre a “abundância” do conjunto traseiro no vídeo nacional, surpreendentemente, ele fraquejou e foi rápido em negar que o comentário fosse uma crítica direta à Anitta, a quem ele disse admirar, mas foi o suficiente para ser atacado tanto por fãs do funk, quanto por outras celebridades.

A apresentadora Lívia Andrade, do SBT, também via Twitter, foi na rosca: “Diga não a qualquer tipo de preconceito! O funk é a voz de um povo que tira a criatividade da necessidade e da falta de oportunidade. Deixa a molecada ganhar dinheiro em paz, com um som que ganhou o mundo. Aceita, bundão”, escreveu.

Êpa, se o alvo é o funk, não pode? Pode, sim.

Lulu teria prestado um real serviço ao debate civilizatório (o que temos para hoje!) se tivesse mantido sua posição e avançado.

Igual o camarada que diz que se deve usar o celular na horizontal para filmar melhor. O celular é do cidadão e ele usa como quiser. Se quiser imagem bonita e alinhada, que se contrate alguém para cumprir esta “desafiadora” missão. Nos dias atuais, cada um faz as coisas como e quando quiser. E que cada um assuma suas responsabilidades.

Tem um outro lado da moeda. Lulu teria prestado um real serviço ao debate civilizatório (o que temos para hoje!) se tivesse mantido sua posição e avançado. Afinal, o funk e o sertanejo ainda tentam alargar o marasmo da zona de conforto que muitos artistas de MPB estão deitados em berço esplêndido. Os tempos mudaram, senhores. Os meninos chegaram na moral e estão chacoalhando os mofados. “Diga aí galera, quem tá no comando. Eba levando, eba levando, eba levando, eba levando”.

O velho Sérgio Cabral, biógrafo, jornalista, uma das joias do Pasquim, tinha uma bronca do funk, que ele dizia ter sua entrada facilitada no Brasil pelos interesses dos americanos em quebrar o samba. O funk é um estilo musical que surgiu através da música negra norte-americana no final da década de 1960. O funk tem suas raízes na soul music, tendo uma batida mais pronunciada e algumas outras influências, até do rock e da música psicodélica.

O funk deu muito certo no Brasil porque amamos percussão, temos sangue negro nas veias, e a mistura africana com nossas experiências musicais sugerem terra fértil para novas bossas. O funk tira a ênfase da melodia e da harmonia e traz um groove rítmico forte de baixo elétrico e bateria no fundo. É um gênero com poucos acordes apenas, distinguindo-se das músicas de rhythm and blues, que são centradas nas progressões de acordes.

Da mesma forma que as famílias nos Estados Unidos se chocaram com o rebolado de Elvis Presley, aquela mexida dos quadris escandalizaram os certinhos, por aqui, o funk também incomoda uma parte expressiva da sociedade. Elvis aprendeu com os negros a rebolar com tanta sensualidade.

Perlla. Foto: Reprodução/Facebook
Perlla. Foto: Reprodução/Facebook

A cantora Perlla era funkeira e tornou-se evangélica. Se imaginava que abandonaria o borogodó das favelas e a batida da periferia. Isto não aconteceu e o bicho pegou. Ela voltou para o funk. E teve que se explicar. “Não misturo mais a minha fé com o meu trabalho. Esse foi o meu maior problema: ter misturado. Voltar ao funk foi uma decisão muito sensata e precisa, foi de acordo com o meu marido, minha família, as minhas filhas ficaram a par. Meus pais me apoiaram. Minha mãe, que é uma pessoa extremamente religiosa, me entendeu. Então, estou bem em paz. Estou pouco me lixando com o que essas pessoas que estão falando de mim estão achando. O meu pastor também é uma pessoa que me acompanha e, graças a Deus, ele e a minha igreja me entendem”, desabafou.

Perlla sabe que é não fácil assim mudar a cabeça dos evangélicos mais radicais. “A maioria dos cristãos tem preconceito. Eu estou sofrendo esse preconceito muito grande de que aquilo que você faz paralelo ao mercado gospel é do diabo… Existem muitas pessoas fazendo coisas muito piores… Eu poderia ficar aqui até amanhã contando em cada dedo quantas pessoas fizeram coisas muito piores. Eu nunca traí o meu marido, sou mulher de homem só. Não bebo, não fumo, não cheiro, já começa por aí…”, concluiu.

Este entupimento do funk no gosto de alguns se estende aos parlamentares do Congresso Nacional. Eles não entendem bem porque o funk faz sucesso. E existe uma oposição ao gênero musical daqueles que o associam letras apelativas à discriminação à mulher e desvios de conduta.

Este ano ganhou ressonância no Senado um  projeto de lei que pretendia criminalizar o funk como “crime de saúde pública à criança, aos adolescentes e à família”, de autoria do empresário paulista Marcelo Alonso. Ele superou a marca de 20.000 assinaturas no dia 24 de maio. “O funk faz apologia ao crime, fala em matar a polícia. Sou pai de família e se eu não me preocupar com o futuro, amanhã só teremos marginais”, disse Alonso ao portal UOL. Na visão do empresário, gênero musical estimula a proliferação de crimes como estupro, exploração sexual, roubo e consumo de drogas ilícitas.

Danilo Cymrot. Foto: Reprodução/YouTube
Danilo Cymrot. Foto: Reprodução/YouTube

O mestre em criminologia pela USP e autor da dissertação Danilo Cymrot disse ao site Nexo que o debate em torno do funk traz à tona outras questões, como raça, classe social, moral e religião. “Existe uma insegurança muito grande [na população] que acaba sendo projetada no funk, como um bode expiatório”, diz Cymrot. “No momento em que as pessoas não sabem lidar como uma série de assuntos complexos, como violência, tráfico de drogas, sexo, educação e os jovens, você cria a ideia de que todos os males da sociedade que não têm uma solução fácil são provenientes de um gênero musical, de uma festa. E que se você acabar com essa festa, acabaram os problemas. É muito cômodo e simplista as pessoas acreditarem que, proibindo o baile acabaria o abuso de drogas, a gravidez na adolescência. Estou falando de coisas que acontecem independentemente do funk existir”, completa.

Em resumo, o funk pode ser criticado, sim, como todas as demais expressões artísticas. Mas nem por isso não mereça tratamento respeitoso. Ninguém é obrigado a gostar de tudo. Aceitar tudo. Vamos todos reagir com mais elegância diante de críticas, sem abrir mão do nosso direito de réplica e tréplica. Dói menos.

 

 

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