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O que faltou dizer sobre o Carnaval 2021, por Rachel Valença

Sambódromo da Marquês de Sapucaí. Foto: Cezar Loureiro - Riotur

Sambódromo da Marquês de Sapucaí. Foto: Cezar Loureiro – Riotur

Na última quinta-feira, dia 8 de outubro, o jornal O Dia publicou em sua página 2, sob o título “Obras vão deixar Sambódromo ok”, uma notícia traiçoeira. Trata-se de uma boa notícia? Com certeza. Que sambista não deseja ver resolvidas todas as pendências e incertezas que envolvem seu espaço sagrado de desfile? Há anos vivemos com o fantasma da insegurança e até da interdição do espaço.

Teremos finalmente o certificado de aprovação do Corpo de Bombeiros? Teremos melhor acesso às arquibancadas? Ora viva! As intervenções estão previstas para durar apenas quatro meses. Bem pouco, felizmente. Se tivessem sido iniciadas em agosto, por exemplo, estariam concluídas ainda este ano, mesmo com os atrasos sempre esperados quando se trata de obras.

Mas não é o que se lê na notícia. A obra terá início na segunda quinzena de dezembro e só estará concluída em abril. Curioso, não? Obras em estabelecimentos de ensino se fazem nas férias escolares. Obras em estádios aproveitam o recesso do futebol para não atrapalhar o calendário de jogos. Por que, então, a obra na passarela onde se dá o desfile das escolas de samba é marcada justamente para acontecer durante o carnaval, inviabilizando-o?

A obra planejada – que em condições normais seria festejada – é, na verdade a pá de cal que acaba de enterrar qualquer ilusão de desfile de escola de samba em 2021. Uma pandemia assola o mundo, a vida parou por alguns meses, mas vai aos poucos sendo retomada. Faltam quatro meses para o carnaval, informa o calendário. É hora de matar o quanto antes qualquer sonho ou veleidade daquilo que se quer evitar.

Mas, afinal, que crime cometeram as escolas de samba para serem assim perseguidas e odiadas? A atual gestão da prefeitura nunca escondeu seu mal-estar diante da alegria, da irreverência, da rebeldia dessa manifestação cultural negra que é, intrinsecamente, uma celebração religiosa da vida e da liberdade e que, em boa hora, vem se assumindo cada vez mais como expressão da força da negritude: enredos e seus sambas louvam os orixás, os heróis negros, os anônimos como as ganhadeiras de Itapuã que lavaram a alma da Viradouro este ano, toda esta cultura que significa “resistência que a força não calou”, nos versos do antológico samba da Portela.

Já as entidades representativas dos sambistas, de quem se esperaria empenho para enfrentar o desafio da busca de uma solução que viabilizasse o desfile – ritual incontornável de uma manifestação cultural quase centenária – se calaram. Seriam essas entidades também inimigas do carnaval? Eu não iria tão longe. Trata-se a meu ver apenas de um conflito de prioridades. O que é importante para o sambista nem passa pela cabeça dos responsáveis por essas entidades, que só têm uma preocupação fundamental: o negócio, o bom negócio, o lucro. Só vale a pena realizar o “espetáculo” (é assim que se referem ao que nós chamamos singelamente “desfile”) se houver turistas para deixar seus dólares, se os camarotes puderem estar lotados com pessoas que sequer olham para o que se passa na pista, se existir a possibilidade de faturar com bufês, decoração dos camarotes e tantas outras formas indiretas de fazer dinheiro. Para que ter trabalho e desgaste de organizar o desfile, sem a certeza de que se trata de um negócio altamente lucrativo (para eles, claro, não para o sambista!).

Enquanto comerciantes e donos de escolas buscaram penosamente estabelecer protocolos de segurança sob orientação das autoridades sanitárias, enquanto o TSE trabalhava para que as eleições municipais pudessem se realizar com segurança, não se viu das entidades representativas atitude semelhante. Houve omissão, porque, se para nós a prioridade é a preservação do rito instituído pelos pioneiros, para eles a prioridade é puramente fazer negócio. Business. E o desfile de 2021, na atual conjuntura, não é um bom negócio. Só isso.

O pretexto perfeito para encerrar de vez a questão aí está: obras necessárias, urgentes, inadiáveis. Quem terá coragem de ser contra? O velho pretexto usado com sucesso no início deste ano: a prefeitura corta recursos, as entidades representativas não desejam realizar ensaios técnicos, que são a oportunidade de acesso do povão à passarela. Gratuitos, não dão lucro. Para evitar polêmica, interdita-se o Sambódromo no período pré-carnavalesco, sob a alegação de obras para obtenção do alvará de funcionamento do Corpo de Bombeiros. Chegou o carnaval, a maquiagem de pintura de faixas e outras ninharias foi concluída uma semana antes, nós engolimos a historinha mal-contada e a vida seguiu seu curso. Agora, as mesmas obras que justificaram não termos ensaios técnicos este ano recrudescem para que não haja desfile em 2021.

Protestar e denunciar pode ser considerado atraso, ignorância, negacionismo. Mas na verdade batalhar pela festa, pela celebração da vida, da maneira como for possível realizá-la, é lutar por sobrevivência. Alegria é resistência, a festa é nossa forma de renovação. A Covid-19 nos levou inúmeros amigos, precisamos da cura da alegria. Precisamos lutar para que isso não nos seja tirado.

Como eu, há quem veja nas escolas de samba, em sua gloriosa trajetória de mais de 90 anos, bem mais do que lucro e negócio: elas foram um dos caminhos do povo negro desta cidade para a conquista da cidadania, um símbolo de resistência. Assim como no início da década de 1940 a destruição da Praça Onze não significou, como se anunciava, o fim das escolas de samba, a obra oportunista na Passarela do Samba, anunciada sempre que é necessário manter-nos fora de lá, também não será nosso fim. Que traga, ao contrário, clareza à nossa mente e luz às consciências.

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