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O espanto de Zeca Passista

Todo mundo que gosta de carnaval tem suas escolas de samba do coração. Não estou falando das nossas paixões principais, mas daquelas agremiações que vão chegando devagar e que a cada ano encontram uma maneira de nos cativar um pouco mais.

Conheci a minha primeira escola do coração no desfile de inauguração do sambódromo, em 1984. Até então, o verde e o branco reinavam absolutos no meu carnaval. Mas a noite era propícia ao encantamento. Quem esteve lá não se esquece: havia um clima de magia e contentamento no ar.

A inauguração da Passarela do Samba era vista como uma grande vitória para os sambistas. E apesar da especulação que antecedeu a festa, a obra foi entregue a tempo de receber as escolas do grupo de acesso, que à época era chamado de grupo 1 B.

Coube ao Império do Marangá abrir os trabalhos. Na sequência, Arrastão de Cascadura apresentou uma lenda indígena como enredo. O desfile não era suntuoso como prometia o samba da agremiação, mas isso não fez a menor diferença para mim. Até hoje me lembro dos painéis com as imagens da índia Marabá e sua tribo.

A grande surpresa, no entanto, ainda estava por vir. Meus olhos já pesavam de sono quando ela entrou na Sapucaí. Não era Unidos, não era Acadêmicos, nem era Império. Era apenas a São Clemente. E tudo que vi a partir de então era bem diferente do que eu entendia ser uma escola de samba. O Pão de Açúcar como símbolo, o amarelo e o preto na bandeira, o bairro de Botafogo como sede.

O enredo sobre violência no trânsito contava a saga de Zeca Passista, um ilustre componente fictício da escola que passava a ter delírios alucinantes depois de sofrer um acidente. Não achei o desfile bonito, mas era tão original, contestador e inusitado que foi impossível me esquecer dele.

Dois anos depois desse amor à primeira vista, fiz minha estreia na Preto e Ouro da Zona Sul. A nossa ala, a “Rui no Samba”, era formada em sua maioria por funcionários da Fundação Casa de Rui Barbosa, onde minha mãe trabalhava na época. Assim como a São Clemente, a Casa de Rui era um patrimônio cultural do bairro de Botafogo, e não podíamos fazer feio na nossa estreia.

O desafio, no entanto, foi grande. Nossa fantasia era uma caixa de remédios, uma alusão aos medicamentos proibidos no exterior que a indústria farmacêutica desovava com certa facilidade no Brasil. Não tivemos equipe de costura ou ateliê. As caixas de papelão foram encomendadas em uma fábrica de papéis e 100% decoradas pelos componentes da ala. As cartolas de Tio Sam que completavam o figurino foram feitas de cartolina e enfeitadas com plumas de ráfia, que aprendemos a confeccionar em um treinamento com o saudoso carnavalesco Carlinhos D’Andrade.

Com mais esse enredo de crítica social, a São Clemente voltou ao grupo de elite do carnaval, e ouso dizer que a fantasia da ala Rui no Samba entrou para a história da escola. Em 2001, em um enredo sobre carnavais antigos da agremiação, as caixinhas de remédio foram escolhidas para representar o desfile de 1986 e voltaram à Sapucaí em todo o seu esplendor de papelão.

Depois disso, desfilei mais de uma dezena de vezes pela São Clemente. Acompanhei disputas de samba e frequentei seus ensaios. Comemorei muito a conquista de sua sede definitiva, embora tenha muita saudade dos ensaios na pracinha do metrô e no Mourisco Mar. Sempre achei a São Clemente uma escola de samba necessária. Sou grata a todos os carnavalescos que por lá passaram e nos ajudaram a pensar em uma sociedade mais justa e inclusiva.

Mas a despeito dessa trajetória, recentemente a escola foi usada como palanque para uma candidatura política de extrema direita. Sobre isso, só posso dizer que o período eleitoral passa, assim como os governantes e os dirigentes. Maiores são as escolas de samba, que estão aí há tantos anos, com suas características próprias e perfis únicos.

A São Clemente tem seu jeito de ser, e ele nada tem a ver com as pautas da extrema direita brasileira de 2022. Aposto que Zeca Passista, aquele sambista-símbolo da escola lá do carnaval de 1984, não gostou nada, nada disso.

Inês Valença é jornalista formada pela UFRJ, a Universidade Federal do Rio de Janeiro, é mestre em Comunicação e Cultura pela mesma instituição.

Sua dissertação de mestrado, O espetáculo da tradição: Um estudo sobre as escolas de samba e a indústria cultural, investiga as mudanças que a transmissão televisiva trouxe à estrutura dos desfiles. Ela estreia em 2022 como colunista do portal SRzd.

* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do portal SRzd

Inês Valença

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