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O Carnaval 2022 nos fez pensar, por Rachel Valença

Sapucaí. Foto: Henrique Matos/Liesa

Sapucaí. Foto: Henrique Matos/Liesa

O Carnaval faz pensar. É, lá se foi o esperado Carnaval de 2022. E deixando para trás um saldo bastante positivo: uma safra de sambas-enredo de qualidade, como há tempos não se via, e uma vitória merecida. Arrisco uma opinião: o que contribuiu para a qualidade dos sambas foram os bons enredos. E o que são, para mim, enredos bons?

São os que falam ao coração dos sambistas. Foi o que tivemos este ano: uma sucessão de desfiles que celebravam a cultura afrodescendente, justamente a cultura da grande maioria daqueles componentes: baianas, ritmistas, casais de mestres-salas e porta-bandeiras, membros das velhas guardas, gente das alas de comunidades, todos felizes por cantar palavras e sons familiares, por expressar suas crenças e valores numa celebração muito forte.

Outra grande alegria do Carnaval de 2022 foi poder assistir, no tal fim de semana do desfile das campeãs, ao desfile dos grupos de Acesso (o nome desses grupos muda muito!) na Avenida Intendente Magalhães. Considero esse desfile um grande espetáculo, não, é óbvio, no sentido de luxo e riqueza ostentado pelas escolas do Grupo Especial, mas sim no sentido de alegria, dedicação e urbanidade.

Assistindo em fins de semana seguidos aos dois desfiles, foi possível tecer alguns paralelos curiosos. O primeiro deles diz respeito à organização do evento. Sem dúvida no sambódromo o aparato organizacional é bem maior. Mas paradoxalmente, enquanto na Marquês de Sapucaí se assistiu mais uma vez ao lamentável espetáculo de ocupação da pista por todo tipo de gente alheia ao desfile, passeando de um lado para outro, ostentando credencial no peito, sem nenhuma razão para estar ali, na Intendente Magalhães, no intervalo entre as escolas a pista é tomada por crianças e até por vendedores ambulantes, mas não é preciso nenhum esforço para deixar livre a Avenida quando uma escola inicia seu desfile.

Portela 2022. Foto: Juliana Dias/SRzd
Portela 2022. Foto: Juliana Dias/SRzd

A pista se esvazia rapidamente, sem que seja preciso uma brigada de uniformizados para convencer rebeldes, como se verifica no Grupo Especial. Desde criança se adquire a consciência de que algo importante acontece ali: para isso a família saiu de casa. E nada pode atrapalhar. A isso eu chamo respeito e é algo que se passa de pai pra filho. As arquibancadas, poucas e desconfortáveis, têm ocupação gratuita. Estão sempre lotadas e quem ali está é porque tem um interesse legítimo naquilo que se passa diante de seus olhos: quer ver seus amigos, parentes e vizinhos, torcer e vibrar por sua escola, porque presenciou os esforços da comunidade para chegar a apresentar o que ali se desenrola.

Verifica-se uma rotatividade espontânea, se uma família se retira após assistir a sua escola, outras pessoas a substituem, de modo que as arquibancadas nunca ficam vazias e tristes. Já na Sapucaí, quando o turista entediado se retira, seu lugar não é preenchido.

Na Intendente Magalhães, ao lado da pista do desfile, há vida. Comida acessível, cerveja gelada e muita alegria. Famílias inteiras num clima de confraternização que tem a ver com o espírito do Carnaval. E vendo e desfrutando de tudo isso, é quase impossível não pensar no show de descaso e desrespeito que se presenciou na semana anterior na Passarela do Samba.

Não vou repetir aqui o que venho escrevendo há anos sobre a falta de respeito ao desfile das escolas de samba que se verifica na programação e no comportamento dos ocupantes de camarotes. Este ano, já no período dos ensaios técnicos se verificava que havia camarote protegido por parede de vidro. Isso mesmo: protegido. Pois para os ocupantes o som da nossa percussão, o canto de nossos sambas são algo tão estranho que se faz necessário proteger-se deles. Se os ocupantes de camarotes querem ouvir outros ritmos, se nosso desfile lhes causa tédio e incômodo, é difícil entender por que não vão se divertir em outro lugar.

O Carnaval da Intendente Magalhães é despojado, feito com muita luta e pouco dinheiro, mas quem vai lá é porque gosta, e não porque tem mídia e dá visibilidade. Isso faz toda a diferença. Não quero parecer ingênua, mas espero que ainda me seja permitido sonhar com uma Sapucaí de arquibancadas lotadas até a última escola, com uma pista desimpedida de “celebridades” em andanças intermináveis em todas as direções, com uma Sapucaí de alegria e sobretudo de respeito ao que ali se assiste.

Rachel Valença. Foto: SRzd

Rachel Valença tem formação em Letras, com graduação na Universidade de Brasília e mestrado em Língua Portuguesa pela Universidade Federal Fluminense, com dissertação intitulada Palavras de Purpurina, sobre a retórica do samba-enredo. Formou-se também em Jornalismo pela Faculdade Hélio Alonso.

Publicou vários livros sobre Carnaval e participa ativamente do Carnaval carioca, tendo sido por oito anos membro do Conselho do Carnaval da Cidade do Rio de Janeiro. Integrou a equipe de elaboração do dossiê das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro: partido-alto, samba de terreiro, samba de enredo, para registro, junto ao IPHAN, do samba do Rio de Janeiro como patrimônio cultural imaterial, em 2007. É colunista do SRzd desde 2011. A partir de 2014 passou a fazer parte do júri do prêmio Estandarte de Ouro, do jornal O Globo.

Crédito das fotos: Juliana Dias, para o portal SRzd
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do portal SRzd

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