Waldir Leite

Nem toda bicha quer ser uma diva

Ella Jane Fitzgerald. Foto: Arquivo

Ella Jane Fitzgerald. Foto: Arquivo

A edição 2023 do Festival do Rio apresentou aos cinéfilos uma nova safra de ótimos filmes brasileiros. Algumas jóias da recente produção audiovisual do país.

Um desses filmes é “Pedágio”, da cineasta Carolina Markowicz, que surpreendeu e encantou o público com sua trama focada no brasileiro comum, que sobrevive com dificuldade nas periferias das grandes cidades.

O filme conta a história de Suelen, uma mulher batalhadora que dá duro trabalhando num pedágio nas redondezas de Cubatão, cidade de São Paulo que o filme nos mostra como um lugar sombrio e poluído. Aparentemente ela vive satisfeita com o que tem: o trabalho, o namorado, a casa simples, o dinheiro curto… Apenas uma coisa lhe atormenta a vida: a homossexualidade do seu filho Tiquinho.

O jovem, prestes a completar dezoito anos, tem por hábito publicar na internet vídeos onde se exibe maquiado fazendo dublagens da cantora Ella Fitzgerald, que considera uma diva. Seus vídeos fazem sucesso e as pessoas comentam com a mãe do rapaz. Mas ela não sente orgulho do filho. Pelo contrário. Sente vergonha, constrangimento. E busca desesperadamente mudar o caráter do rapaz.

Fazer com que ele abandone aquilo que ela considera um vício. Um dia uma colega de trabalho lhe conta que a igreja evangélica que freqüenta promove um curso de cura para homossexuais. Suelen logo fica interessada em matricular Tiquinho, mas o curso é caro. Ela não tem o dinheiro necessário para a matrícula. A fim de conseguir pagar o curso que vai salvar seu filho da doença da homossexualidade, Suelen abandona seu comportamento ético diante da vida e se envolve numa atividade criminosa. Acredita que a salvação do filho justifica seu desvio moral. Tiquinho faz o curso ministrado pelo pastor da igreja evangélica. Mas, ao invés de ficar curado, ele acaba arranjando um namorado.

Durante um passeio num parque, os namorados trocam confidências e ambos confessam que só fizeram o curso para agradar suas mães. Tiquinho fala dos vídeos que publica na internet e do seu sonho em se tornar uma diva. E se surpreende quando, ao perguntar o que o namorado pretende fazer da vida, ele responde que pretende estudar para se tornar um auxiliar de dentista. “Só isso?”, pergunta Tiquinho incrédulo com a falta de ambição. E o namorado lhe responde com simplicidade: “nem toda bicha que ser uma diva”.

Em “Pedágio” tudo funciona com perfeição. O roteiro de Carolina Marcowicz é brilhante ao retratar o conflito da protagonista, uma mulher para quem a homossexualidade é um desvio de caráter mais grave que uma prática criminosa. A direção de arte de Vicente Saldanha, premiada no Festival do Rio, funciona muito bem ao recriar os ambientes onde vivem os mais pobres, aqueles que

sobrevivem com pouquíssimo dinheiro. O elenco de artistas talentosos é uma atração à parte. Maeve Jinkings comove e encanta o público com sua pungente atuação como a atormentada Suelen. Kauan Alvarenga faz um belo trabalho interpretando Tiquinho, um jovem que se considera feliz por ser o que é, mas é obrigado a conviver com uma mãe que sonha desesperadamente que ele mude o seu jeito de ser. Já Aline Marta Maia se destaca ao provocar risos no papel de Telma, uma evangélica cheia de contradições que convence Suelen a tentar salvar o filho através da igreja. Não por acaso os três foram premiados no Festival do Rio: melhor atriz, melhor ator e melhor atriz em papel coadjuvante. Também merece destaque no elenco a diva do cinema pernambucano Clarissa Pinheiro e mais Thomas Aquino, Isac Graça e Caio Macedo.

Carolina Marcowicz é uma diretora em ascensão no cinema brasileiro. Seu filme anterior, “Carvão”, também conquistou fãs apaixonados. O diretor Walter Salles admira seu trabalho e estava na plateia quando “Pedágio’ foi exibido no Festival do Rio. “Há algo de Rocco e seus irmãos no filme da Carolina…”, disse ele, depois de cobrir a jovem de elogios. Salles estava se referindo ao filme de Luchino Visconti, um exemplar do neorrealismo italiano, movimento que marcou época no cinema europeu ao contar os dramas e paixões da classe operária. Talvez com seu filme Carolina esteja criando uma espécie de “novo realismo” brasileiro ao destacar em sua trama os dramas e mazelas dos cidadãos mais pobres do país (veja as fotos do evento/crédito: Waldir Leite):

Waldir Leite é jornalista e filósofo existencialista graduado pela UFRJ. Gosta da vida e dos filmes de Woody Allen. Escreve contos e romances. Vai a praia sempre que pode. E sofre muito por não poder acabar com a guerra, a fome e a miséria.

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