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Salgueiro 1978: na estreia de Rico Medeiros, uma ‘batalha nagô’ entre Pamplona e Joãosinho

Desfile do Salgueiro de 1978. Foto: Reprodução

Semana passada, lamentavelmente, o mundo do samba perdeu Rico Medeiros, artista que emprestou seu talento ao Salgueiro, onde brilhou em diversos carnavais, primeiramente de 1978 a 1986 (exceto em 1982 e 1984) e em 1990; Imperatriz (1987), Lins Imperial (1985, em um lindo samba) e Viradouro (1994 e 1995), onde venceria a disputa de samba-enredo para esses dois desfiles: “Tereza de Benguela, uma rainha negra no Pantanal” e “O rei e os três espantos de Debret”. Este colunista presta uma homenagem a esse intérprete inesquecível lembrando o carnaval salgueirense de 1978, que, apesar do caos que precedeu o desfile da vermelho e branco, ficou marcado pelo samba-enredo “Do Yourubá à luz, a aurora dos deuses”, um sambaço (de apenas um compositor, Renato de Verdade) que seria, até 2014, o único samba Estandarte de Ouro do Salgueiro, e pelo embate entre Fernando Pamplona, o “Pai de Todos”, e Joãozinho Trinta, criador e criatura, que levariam o mesmo enredo para a Avenida, pelo Salgueiro e Beija-Flor respectivamente. A vermelho e branco da Tijuca, recentemente, prestou-lhe uma bonita homenagem, chamando-o ao palco para cantar justamente esse samba, imortalizado na sua voz. Fica a lembrança, a memória, o respeito e a reverência a um dos grandes nomes da história do carnaval carioca: Rico Medeiros.

Rico Medeiros. Foto: Reprodução

Pamplona estava afastado do carnaval, depois de sérios problemas ocorridos dentro e fora do desfile de 1972 do Salgueiro, mais conhecido como “Tengo, Tengo”. O mestre havia voltado em 1977, atendendo a um pedido de China Cabeça Branca, bicheiro, ex-presidente da escola e maior responsável pelo fato do Salgueiro, hoje, ter uma boa quadra de ensaios.

Ainda no calor da emoção pela conquista de mais um campeonato, o quarto consecutivo, Joãozinho Trinta anuncia o enredo da Beija-Flor para o ano seguinte: “A criação do mundo na tradição Nagô”. Segundo ele, sua inspiração para esse enredo veio no final do desfile da escola de Nilópolis, em 1976, “Sonhar com rei dá leão”, que daria o primeiro campeonato à azul e branca da baixada. Caía uma chuva fina e, de repente, aparece um arco-íris. “Vou fazer o que minha inspiração manda”, pensou. Dois anos depois, em 1978, lá vinha a Beija-Flor com a sua “Criação do mundo na tradição nagô”, disposta a tentar o tricampeonato. E o que fez Pamplona? Ousadamente resolveu fazer um enredo idêntico, com nome diferente: “Do Iorubá à luz, a aurora dos deuses”, ambos enredos que se dispunham a contar a origem do universo a partir da cosmogonia afro-brasileira, de origem Nagô.

Na boa, na boa, Pamplona queria testar, disputar com Joãozinho e com a Beija-Flor no terreno da inspiração. E quem duvidaria que o mestre seria capaz, se foi ele o grande responsável pela inserção do negro como personagem principal nos desfiles das escolas de samba, como herói, como enredo, o que antes era reservado apenas a personagens da nossa história “oficial”, notadamente brancos. Exaltou não só heróis e personagens negros, mas a sua cultura, folclores e religião. Seria fácil na teoria. Só que não. Enquanto Joãozinho Trinta tinha toda a infraestrutura, em um barracão imenso, amplo, com uma boa e numerosa equipe e recursos financeiros para colocar suas ideias em prática, Pamplona passou meses penando para conseguir um espaço para tocar o trabalho, até que arranjou um cantinho no Pavilhão de São Cristóvão, a vinte dias do carnaval, para armar toda estrutura dos carros alegóricos e adereços. Óbvio que saíram faíscas, egos acesos, logo após divulgarem os enredos, idêntico.

A imprensa aproveitou para incendiar ainda mais, dizendo que se tratava de um duelo. Em entrevista à Veja, de 01.02.1978, Fernando Pamplona foi polido, mas seco ao tratar a questão, reconhecendo o talento de Joãozinho: “Ele adentrou o fantástico no carnaval carioca”. Joãozinho Trinta foi bem mais contundente, indo logo de sola, afirmando em entrevista à mesma revista: “Pamplona quis esse ano me desafiar, escolhendo um tema igual ao meu, “Criação do mundo segundo a tradição Nagô”. Sua aposta é que o vermelho telúrico do Salgueiro se presta melhor do que o meu azul para exprimir a terra africana. Só que o tempo de Aiê (terra) já passou pela avenida em 1971, com o samba “Pega no ganzê”. Agora é o momento de Orum (o Sol, o infinito). Pamplona vai se estrepar: meu desfile vai se passar no céu e meu céu é semelhante ao de Iemanjá”, afirmou. O desafio estava oficializado, com larga vantagem para Joãozinho. Pamplona tinha o talento, tinha a ideia, mas estava de mãos atadas devido aos inúmeros problemas internos do Salgueiro, uma escola em conflito. Ficou mais difícil lutar assim.

Polêmica formada, desafio lançado, era hora do Salgueiro, mais precisamente, de Fernando Pamplona, resolver esse problema. Um baita problema, pois, como vimos anteriormente, o presidente da escola havia sumido, não havia dinheiro, nem lugar para trabalhar. Para piorar, a escola passava por sérios problemas internos, por motivos políticos, incluindo boicotes etc. Quase nada a favor e ainda haveria a comparação inevitável entre os desfiles do Salgueiro e da Beija-Flor, que apresentariam o mesmo tema, da criação do mundo segundo a tradição Nagô. Sobre essa polêmica, Pamplona, sempre muito elegante e inteligente, respondeu ao jornal O Globo, de 03.02.1978: “Ele é um ótimo artista e não precisa menosprezar os adversários. Será que está com medo? Posso garantir que não imitamos ninguém. Joãozinho aprendeu o que sabe de samba no Salgueiro. A mitologia negra não é privilégio de ninguém e cada um faz o que pode sobre o tema livre”, respondeu. “O Salgueiro tira da cabeça o que não pode tirar do bolso”, afirmou, sobre as restrições no espaço improvisado como barracão da escola, com uma ideia que virou enredo, em sua homenagem, em 1986.

Joãosinho 30. Foto: Reprodução

A sua ideia, além de não querer atritos com Joãozinho, nem com a Beija-Flor, era evitar problemas com praticantes das religiões africanas: “Não queremos fazer polêmica com o tema escolhido, nem criar problemas religiosos. O Salgueiro pretende apenas despertar o interesse dos estudiosos para que seja descrita a “Bíblia negra”. Nosso enredo é simples, fala apenas das origens mitológicas do povo iorubano”, falou. Pamplona pretendia contar seu enredo na avenida em uma sequência lógica e ordenada. A primeira parte do desfile referia-se aos primórdios da civilização negra yorubana, que, em seus cultos, dizia que seus reis eram descendentes diretos dos orixás.

O mestre e sua equipe consultaram diversas fontes de pesquisa para elaborar o enredo. O ideal seria se a Bíblia Yorubana estivesse compilada. Na sua ausência, a base para o enredo veio do livro “O ritual africano e seus mistérios”, de José Ribeiro. A segunda parte do desfile falaria da evolução do candomblé no Brasil Colônia. A contribuição religiosa e cultural trazida pelos negros que por aqui chegaram. O Axé Opô Afonjá, “casa de força sustentada por Xangô”, famoso terreiro baiano, estaria representado dentro do enredo. A última parte do enredo e do desfile seria uma homenagem à mulher negra, integrante dos mais baixos escalões da hierarquia religiosa afro-brasileira, mas, nem por isso, sem deixar de fazer o bem, sem esperar nada em troca. Pamplona pretendia levar três carros alegóricos para a avenida, “Paraíso”, que representaria a criação do mundo; “Iemanjá”, o reino das águas e “Oxumaré”, o “arco-íris”, “Deus do mar”. Para ajudar a contar o enredo, subdividindo-o, diversos estandartes, confeccionados em ráfia, feltro, bambu e corda, levados nas mãos dos componentes, com frases como “Nem melhor nem pior, apenas uma escola diferente” (que viria na abertura do desfile, a sua apresentação na avenida); “Antes era Olorum” (uma representação do universo); “Iemanjá”; “Ifá” e o “Axé Opô Afonjá”, famoso terreiro de Salvador. No encerramento do desfile, quadros de Caribé.

Destaque absoluto para o maravilhoso samba-enredo da escola, Estandarte de Ouro naquele ano, composto por apenas um autor: Renato de Verdade. Ele contou à revista Veja de 01.02.1978 que Fernando Pamplona fez apenas algumas recomendações: “Não carregar muito no refrão e não fazer um samba tradicional, pois, no carnaval do ano passado (1977), apresentamos um samba de bloco e acabou não dando certo”. O Salgueiro fundiu alas, tornando-as maiores, com cerca de 150 pessoas e reduziu o número de destaques, além de acabar com alas de passo marcado. Sobre a dureza de trabalhar remando contra a maré, sem dinheiro, sem pessoal, com quase nada, respondeu ao jornal O Globo, de 05.02.1978: “O Salgueiro não pode pagar ouro aos profissionais do carnaval, mas tem muito para mostrar. O presidente da escola não tem dinheiro nem para pagar um cafezinho, amigos… Os integrantes é que estão ajudando a botar o Salgueiro na rua”.

“O duelo perdido”, assim o Jornal do Brasil, de 08.02.1978, resumia o que foi o desfile do Salgueiro naquele ano. Se antes havia a ansiedade do público em ver dois dos maiores carnavalescos da história se duelando na avenida, com o mesmo enredo, sobre a criação do mundo segundo a tradição Nagô, um duelo entre Salgueiro e Beija-Flor, após a passagem da escola de Pamplona, a sensação era que seria um massacre, um 7 x 1. Não por culpa do Mestre, na verdade, mas sim da própria escola, que o sabotou antes e durante o desfile. As fantasias eram de boa qualidade, de muito bom gosto, o samba, sensacional, o melhor do ano, mas as coisas começaram a dar errado de cara. O material do Salgueiro chegou incompleto na avenida. Já que o pessoal da escola, do morro não queria ajudar, muitos amigos de Pamplona foram lá, dar uma força, dentre eles Maria Augusta.

Fernando Pamplona. Foto: Reprodução

O pessoal que fazia oposição apareceu firme para sabotar. Uns dois ou três carros apareceram quebrados e, quando Renato Lage e Stoessel Cândido iam consertar, apareceram uns caras com fantasias da escola e impediam que qualquer um dos dois fizesse qualquer coisa. “Bandidos armados”, afirmou Fernando Pamplona em sua biografia. Outra grande confusão envolveu o Mestre de bateria, Arengueiro, que, enquanto dava suas últimas instruções ao ritmistas, notou que um deles estava alcoolizado e sem o chapéu da bateria. O mestre então pediu, não com muita delicadeza, para que o ritmista usasse a fantasia completa. Como não foi atendido, foi solenemente ignorado, Arengueiro sacou da cintura um revólver e ameaçou o componente. Imediatamente um soldado que passava pelo local viu a cena e prendeu o mestre de bateria, na hora. A escola então dizia que não desfilaria se não o soltassem. Foi necessária a intervenção de Albino Pinheiro e do próprio Pamplona, que foi conversar com o presidente da Riotur e com o chefe do policiamento, que o liberou com a condição de que fosse entregue à polícia ao término do desfile.
Pois bem. E a sabotagem continuava: os estandartes de palha, onde estariam descritas as divisões do enredo, do desfile da escola, iam sendo danificados por pessoas que passavam pelo local. O pessoal da ala da força, que empurrava os carros alegóricos, decidiu formar uma ala deles, com a roupa que a escolha lhes deu e não empurraram carro algum, sendo necessário, mais uma vez, que amigos de Pamplona ou da escola viessem em socorro e virassem empurradores. Mesmo no meio do caos, a escola conseguia empolgar, muito por conta do belíssimo samba de Renato de Verdade, Estandarte de Ouro naquele ano. Houve até um “já ganhou”. Do meio do desfile para lá, o que era mais ou menos piorou de vez. Os componentes, distantes do carro de som e da bateria, posicionados à frente, não ouviam nada e, sendo assim, ninguém cantava mais nada, só o refrão e olhe lá.

Uma exibição apática naquele momento. Quando resolveram cantar, naturalmente, atravessaram totalmente. O Salgueiro, que antes recebera alguns aplausos, foi muito vaiado, principalmente entre os setores 8 e 10. Ao final do desfile, um funcionário da Riotur resumia tudo, ao pedir espaço para a Mocidade Independente, próxima escola: “Vamos, pessoal. Vamos fazer espaço para essa escola passar. Foi muito ruim”. Fernando Pamplona fez a sua síntese do que foi o desfile do Salgueiro naquele ano com uma frase, descrita em sua biografia: “O desfile foi uma merda!”. E o mestre chegou em casa por volta das 9h da manhã, jurando para si mesmo que seria aquela a última vez que seria carnavalesco. E foi mesmo.

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