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‘Cama, mesa e banho de gato’: o polêmico samba da Tijuca e o desafio ‘à moral e aos bons costumes’

Desfile da Tijuca de 1986. Foto: Reprodução

“Lá vai o trouxa/Crente que está numa boa/Mas não sabe que a patroa está com o Ricardão/E sua filha tem fama de sapatão”. Nunca, em tempo algum na história do carnaval carioca, um samba-enredo foi tão bombardeado, tão criticado quanto “Cama, mesa e banho de gato”, dos compositores Carlinhos Anchieta, Vicente das Neves, Manoelzinho Poeta e Azeitona. O Brasil ainda caminhava no processo de redemocratização, após 20 anos de ditadura militar. Censura abrandada, era natural que houvesse composições que fossem além, algumas bem além, do que era permitido até então. O espaço, enfim, era democrático, mas uma boa parcela da sociedade, conservadora, ainda torcia o nariz para letras, canções que “atentassem contra a moral e os bons costumes”.

Quando o samba tijucano foi divulgado, foi um escândalo. A polêmica estava formada e perduraria até o carnaval. Versos como “Tem piranha no almoço/Tem virado no jantar/Pra quem tem fome/Qualquer prato é caviar” causaram um alvoroço, um furdunço tremendo. Até mesmo Dona Zica se posicionou, considerando um escândalo a letra do samba. Influenciados ou não pela campanha negativa contra o samba-enredo tijucano, os jurados decretaram o rebaixamento da escola naquele ano de 1986. É bom lembrar que a ditadura do politicamente correto ainda não estava vigente, senão o samba levaria bomba de dois lados. Pode-se não gostar da letra, considerá-la de mau gosto, mas ela retrata situações do cotidiano e costumes, hábitos que fazem parte do dia-a-dia de muita gente boa, claro, inclusive muitos dos quais que se posicionam “contra essas imoralidades”. Hipocrisia que se fala. Parece claro que esse samba não teria espaço nos dias de hoje. Com as redes sociais, provavelmente sofreria uma campanha ainda mais dura e cruel do que aquela por que passou há 34 anos atrás. Seria massacrado. Em tempos em que o gênero musical samba-enredo está cada vez mais restrito a aficionados, apaixonados pelas escolas, “Cama, mesa e banho de gato” tem uma qualidade, ao menos, que considero fundamental para que os sambas voltem a dialogar com um público maior: retrata o dia-a-dia, o cotidiano, algo que poderia, e deveria, ser explorado melhor pelas agremiações em geral, fugindo um pouco de temas que pouco ou nada dizem à maior parte da população. “Domingo”, “O amanhã” e “É hoje”, da União da Ilha, não se tornaram sucesso por acaso. Abaixo um trecho que escrevi sobre o polêmico desfile da Unidos da Tijuca no Carnaval de 1986:

O ano de 1986 marca o primeiro carnaval após a redemocratização, bem como o primeiro após o ato do então ministro da justiça, Fernando Lyra, acabando com a censura no país. Sem saber o que fazer com tamanha liberdade, depois de vinte anos de limites, restrições, imposições, muitos compositores perderam a mão e a linha, excedendo-se em letras de gosto pra lá de duvidoso. Se as letras antes eram solenes, reverentes, havia no compositor a preocupação em procurar uma palavra bonita, às vezes até no dicionário, para encaixar na sua obra, naquele ano essa preocupação passou longe. O bundalelê estava institucionalizado. Para alguns.

Dessa leva, três sambas se “destacam”, o samba da Vila Isabel, do consagrado Davi Corrêa (para mim, o maior compositor de sambas-de-enredo da Portela) e de Jorge Macedo, que fazia a “deixa” para o público (teoricamente) substituir um verso por outro, contendo um palavrão. O verso original era “Será, será/Que o samba ginga na voz do Brasil/Mas deixa isso pra lá/E vá na pura do barril” e a intenção era que esse último verso fosse cantado como “E vá pra p… que o pariu”. Beleza. Não funcionou. O samba portelense, de Ary do Cavaco (autor de um dos maiores sambas da Portela, “Lapa em três tempos” (com Rubens) preferiu apelar para uma linguagem que se aproximasse (supostamente) da fala do dia-a-dia, coloquial. Daí geraram versos como “Não venha agora me sacanear”, mas nada, absolutamente nada, se compara ao samba-enredo da Unidos da Tijuca daquele ano, “Cama, mesa e banho de gato”, que abordaria os sete pecados capitais.

O samba de Carlinhos Anchieta, Vicente das Neves, Manelzinho Poeta e Azeitona era direto, não mandava recado, nem era de sutilezas. Ia de sola mesmo. Versos como “O arroz com feijão lá de casa é bom/Mas o cozido da vizinha é melhor”, “Lá vai o trouxa/Crente que está numa boa/Mas não sabe que a patroa/Está com o Ricardão/E sua filha tem fama de sapatão…”. A cereja do bolo era um de seus refrãos: “Tem piranha no almoço/Tem vi(r)ado no jantar/Pra qualquer fome/Qualquer prato é caviar”. O ‘r” entre parênteses é proposital, pois o samba era cantado sem essa consoante, ou seja, dizendo que “tinha viado no jantar”.

Em um sensacional debate entre alguns carnavalescos, como Arlindo Rodrigues, Joãozinho Trinta, Luiz Fernando Reis, Luiz Lobo, Wany Araújo (que durante um tempo foi auxiliar de Joãozinho Trinta) tentava convencer que, ao contrário do que todos pensavam, seu enredo não era “amoral”, mas sim moralista. Joãozinho Trinta, que participava do debate (e que não era de passar nada batido, falava mesmo), mandou: “Wany, eu te garanto que o pessoal vai ficar esperando é piranha e veado mesmo”.

Nenhuma outra escola ousou tanto, até hoje, na escolha e desenvolvimento de um enredo como a Unidos da Tijuca o fez em 1986. Ousado sim, porque nem bem a poeira do fim da censura e dos vinte anos de ditadura tinham baixado, ela vem com um tema que explorava, de cabo a rabo (mais rabo do que cabo), os sete pecados capitais, com uma boa dose de erotismo. “Cama, mesa e banho de gato” era o enredo, desenvolvido pelo carnavalesco Wany Araújo, que, durante muitos anos, foi auxiliar do mestre Joãozinho Trinta. Para se ter uma ideia do que seria desenvolvido, a sinopse, curtinha: “Entrando em ritmo de Nova República, de liberação da censura, de reavaliação do instinto e reposição do prazer em seu espaço legítimo, nosso desfile torna como referência a sucessão de “pecados capitais”, que são sete, mas que no nosso filtro se equilibram sob uma única vértebra, a da luxúria. Os sete pecados capitais, assim denominados, passam aqui como fonte de alegria e de expressão plena, relacionando a parceira bíblica (homem/mulher) e suas variantes, com o senso de humor das circunstâncias mais conhecidas: “A conquista da beleza jovem e seu teste de competência sexual (orgulho); “A defesa do ciúme e da área competitiva de sua atuação (avareza); “Situações agressivas geradas pelo ciúme e a insegurança (ira)”;, “As variações mais bizarras, representadas na metáfora da mesa “qualquer prato satisfaz a quem tem fome (gula)”; “O olhar dissimulado para a visão ideal, no corpo que passa fora do nosso alcance (inveja); “O fazer que alimenta todas as ideias, que cobre a imaginação, que extenua o corpo saciado, incapaz, muitas vezes, de cumprir o dever conjugal, no dia-a-dia da rotina (preguiça)”. A vida é o grande palco desses acontecimentos. Seus espaços vitais, a casa, o motel, a literatura erótica, o mercado dos prazeres, passam diante dos olhos do público, em tempo de cornucópia, derramando a euforia sem repressão, na hora de dizer sim aos desejos. Os corpos, molhados de suor, parecem celebrados pela língua do carnaval, que canta a beleza do instante, deixando nos nervos e músculos dos carnavalescos aquele sabor molhado de liberdade e êxtase”. Nós propomos a uma obra aberta sobre a liberação da carne, sem os subterfúgios dos disfarces, com a pureza da entrega que não se culpa, contra a discriminação que avilta, em favor da presença do que é humano em seu instante de extroversão. Delírio, coração aberto, sensualidade e humor são os temperos desta grande mesa oferecida a todos os apetites e, na verdade, atendendo ao apetite básico do homem, pelo qual se multiplica e perpetua a espécie, ao mesmo tempo que exercita a imaginação, valorizando a breve caminhada planetária”.

Em um debate realizado por carnavalescos do gabarito de Luiz Fernando Reis, Arlindo Rodrigues, Joãozinho Trinta e o próprio Wany, da Tijuca, publicado nas páginas do Jornal do Brasil do dia 09.02.1986, o tema da escola do Borel entrou em discussão. Wany defendeu-o das acusações desse enredo ser imoral, pornográfico: “Venho sintetizar o enredo com o banho de gato, que vem a ser o momento maior, o estado de êxtase que nós temos. Eu não mostro o lado imoral. Eu mostro o lado moral e real”. Joãozinho Trinta, de forma irônica, respondeu: “Tudo aquilo que você está dizendo no samba? ”. O crítico musical Tárik de Souza complementou: “O samba dá a impressão contrária”. Wany respondeu: “O enredo da Tijuca mostra os pecados capitais condicionados a posições que precisam ser lançadas. Algumas pessoas falam em imoralidade. Depende de como ela é mostrada, de como é encarada. Não é imoral o homossexual ou a prostituta. Depende de como é colocado. Joãozinho finalizou a questão, mandando a real: “Wany, eu te garanto que o pessoal vai ficar esperando piranha e veado mesmo”, afirmou o mestre.

Sobre o autor

Natural de Padre Miguel, Jorge Renato Ramos é pesquisador, bacharel em Letras/Francês (UFRJ/UERJ) e autor da série de livros “Apoteótico: os maiores Carnavais de todos os tempos”.

 

 










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