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Ao mestre, com carinho: O legado de David Corrêa no Carnaval

David Corrêa. Foto: Reprodução

O mundo do samba acaba de perder David Corrêa, maior vencedor de sambas-de-enredo da história da Portela, além de ter colecionado vitórias, e sucessos, em outras escolas como Salgueiro, Vila, Imperatriz, Mangueira e Estácio de Sá. E é da Estácio o samba mais conhecido de David, pelo menos pela nova geração, ou aquela alheia aos assuntos relativos às escolas de samba: a composição com a qual a vermelho e branco desfilou no carnaval de 1995, celebrando o centenário do Flamengo, um, dentre os vários cantos que a torcida entoa durante as partidas do rubro-negro.

Ser um apaixonado pelas escolas de samba foi algo natural para mim, talvez pela proximidade da minha casa com a antiga quadra da Mocidade, na Coronel Tamarindo, mas, curiosamente, o primeiro samba-enredo que me recordo de ter ouvido na vida foi da Portela, de David Corrêa e Jorge Macedo: “Hoje tem marmelada”. Era carnaval de 1980, brincando de bate-bola pelas ruas do subúrbio ou no Centro da Cidade, era esse o samba que ouvia. Talvez, mais do que morar próximo à quadra de uma escola, o que tenha me aproximado de vez do universo do carnaval, da Sapucaí, foi ter ouvido esse samba. Uma isca e tanto que me fisgou há quarenta anos atrás.

Se tanta gente relata, como trilha sonora de sua vida, pagodes, sertanejos, músicas românticas etc, no meu caso, posso dizer que as lindas obras assinadas por David Corrêa me acompanharam, e marcaram, da infância até o início da fase adulta. Lembro-me de acordar cedo, para ver o restinho dos desfiles (em tempos em que se prolongavam manhã adentro), no ano de 1985, minha mãe caprichando no cachorro quente requentado da noite anterior para me servir de café da manhã, e eu maravilhado, principalmente, com a poesia, o lirismo do samba-enredo de David Corrêa, Jorge Macedo e Tião Grande, que embalou a bela apresentação da Vila Isabel, com o enredo “Parece que foi ontem”, de Max Lopes.

Se você cantou ou ouviu em qualquer roda de samba ou no rádio esses versos: “É mentira/Cadê todas promessas de me dar felicidade/Bota mel em minha boca/Me ama, depois deixa a saudade, será…/Será que o amor é isso?/Se é feitiço vou jogar flores no mar/Um raio de luz/Do sol voltará a brilhar/Que se apagou e deixou noite em meu em meu olhar”, saiba que também são de David Corrêa. “Mel na boca”, um dos grandes sucessos de Almir Guineto. “Meiguice descarada”, outro sucesso de Guineto, também é de David Corrêa. Nos tempos da antiga e saudosa Tropical FM, rádio que marcou história no dial carioca, “Estrela de Oiá”, composta e interpretada por David, volta e meia ocupava o primeiro lugar dentre as mais tocadas no ano de 1986 na emissora fundada por Armando Campos.

Vi, pelas redes sociais, vários relatos de pessoas que disseram que o primeiro samba-enredo que elas se recordam de ter ouvido foi “Das maravilhas do mar, fez-se o esplendor de uma noite”. A força e beleza desse samba era, e é, tamanha, que ele chegou a ocupar o primeiro lugar dentre as mais tocadas, em um tempo em que o LP das escolas vendiam muito, rivalizando até mesmo com o lançamento anual dos discos de Roberto Carlos. “Das maravilhas do mar” conseguiu desbancar o Rei dos primeiros lugares das paradas, o que não era pouca coisa. Foi o maior sucesso do carnaval daquele ano, mas, lamentavelmente, a Portela não teve muita sorte em seu desfile, pecando, principalmente, em evolução.

Para lembrar e reverenciar David Corrêa, que considero o maior compositor de sambas-de-enredo da história da Portela, um dos maiores da história do carnaval carioca, eis um trecho que escrevi para um de meus livros, da Coleção Apoteótico, que recorda justamente “Das maravilhas do mar, fez-se o esplendor de uma noite”:
“Não me perguntaram, mas eu respondi mesmo assim: o melhor samba-enredo da Portela, de todos os tempos, é “Das maravilhas do mar fez-se o esplendor de uma noite”, de David Corrêa e Jorge Macedo. Pela poesia de seus versos e pela linda melodia, envolvente. Não por acaso, foi o grande sucesso do verão daquele ano, 1981, e estava na boca de todos, sucesso absoluto nas rádios e nos programas de tv, como o Cassino do Chacrinha. David Correa é autor dos melhores sambas da história da Portela, em dez anos, de 73 a 82, ganhou seis vezes o concurso de samba-enredo da Portela, com três Estandartes de Ouro. Venceria ainda no Salgueiro, Vila, Imperatriz, Mangueira e Estácio.

Os compositores, diretores e gente sabida do carnaval de hoje em dia atacariam um samba no estilo que David gostava de compor, nem aí para a sinopse ou para o próprio enredo, com milhares de pedras na mão. Seria apedrejado em praça pública. “Não, não pode… O samba tem que ser descritivo…, tem que contar o enredo…”, falou o sabichão. Na verdade, o samba tem que ser BOM.

O que diriam do samba da Portela de 1981, em que David Correa não estava nem aí para sinopse, enredo. Ele interpretava o tema, à sua maneira, e transformava tudo em lindos versos, em poesia. Se pedisse a um compositor de hoje para fazer um enredo sobre “as maravilhas do mar”, certamente ele falaria de Iemanjá, peixes, coral, baleia, barcos de pescadores dentre outras banalidades. David não, preferiu contar, em primeira pessoa, para que todos se identificassem com o samba, que “por onde ele andava, mareava”. E não tem problema algum se não existe o verbo “marear”. Um compositor portelense perguntou a David Correa se existia o verbo “marear”. Ele respondeu : “Sabe aquela jaqueira que existem na Portela? Então, se você quiser escrever no teu samba que vai jaqueirar, o problema é teu”, contou. David disse a Marcelo de Mello, autor de “O enredo do meu samba”, que ele e Jorge Macedo foram tomar uma cerveja na praia de Barra de Guaratiba, Zona Oeste do Rio, e seu parceiro comentou, ao ver o horizonte, que parecia que o mar “estava subindo”. Dessa observação nasceu um dos mais belos versos do samba, “O mar subiu na linha do horizonte/Desaguando como fonte”.

Em vez do samba se adequar ao enredo, o enredo, o carnaval de Viriato Ferreira (braço direito de Joãozinho Trinta em vários desfiles) se adequou ao samba. “Vou na tua onda que é melhor”, afirmou o carnavalesco. Viriato talvez tenha sido o maior figurinista da história dos desfiles. Sua preocupação, mais do que criar uma fantasia que se “adequasse” ao enredo, seja lá de que modo fosse, era fazer com que o componente estivesse bem, bonito, confortável dentro do figurino. Para a revista “Rio Samba e Carnaval”, o carnavalesco contou sobre o enredo: “É uma coisa irreal, que não existe. Por isso mesmo é um enredo que me dá oportunidade de criar muito em cima. Afinal, carnaval é fantasia, é sonho misturado com realidade. O próprio David Corrêa puxaria o samba-enredo, com o reforço valioso do grupo vocal “As Gatas”, de Dinorah, que durante vieram como apoio de Neguinho da Beija-Flor no carro de som da escola de Nilópolis”

Que David Corrêa tenha feito uma passagem em paz, com a certeza de ter deixado, como legado como norte para os jovens compositores, seus inúmeros sucessos, que cumpriam com incomparável eficiência aquilo que deveria ser a função principal do samba-enredo, mais até do que contar de forma descritiva o enredo, que é dialogar com o público em geral, encontrar reciprocidade, resposta. Facilitava tanto o canto, que não apenas componentes conseguiam cantar sua letra sem dificuldade, tarefa árdua para alguns compositores de hoje, mas também o Brasil inteiro. Fique com Deus, mestre!

Sobre o autor

Natural de Padre Miguel, Jorge Renato Ramos é pesquisador, bacharel em Letras/Francês (UFRJ/UERJ) e autor da série de livros “Apoteótico: os maiores Carnavais de todos os tempos”.

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