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Dia dos Passistas: a arte essencialmente singular, por Hélio Rainho

Dia 19 janeiro é Dia dos Passistas. Prefiro tratar em plural, muito embora sua arte seja essencialmente singular.

Digo “essencialmente singular” porque o passista é um personagem artístico genuinamente brasileiro, surgido em suas características em período incerto e inadequadamente historicizado (não podia ser “mais brasileiro”…!). As origens prováveis remontam aos anos 50, quase duas décadas após os desfiles de escolas de samba terem se consagrado oficialmente como atração da cidade.

Digo “essencialmente singular” porque, de fato, essa arte envolve um conjunto de manifestações que transcendem a dança de um ritmo ou gênero musical. Dizer que os passistas “dançam o samba” é uma definição deveras primitiva: o samba o país inteiro dança, e ninguém o faz com o garbo, a malemolência, a magia, os trejeitos que os passistas têm! A dança dos passistas é um fenômeno complexo da arte brasileira, que envolve performance, indumentária, improviso, vocação, técnica, domínio do corpo e um elo transcendental com raízes culturais e legados africanistas que contam a história e a vida social de nosso povo.

Pra “dançar o samba” é preciso entrar na roda. Pra “ser passista” é preciso entrar em cena. Faça-se, pois, a distinção.

Digo “essencialmente singular” porque, dentre todos os artistas dançarinos que conhecemos, os passistas são aqueles que a todo instante criam sua própria verve, redesenham cotidianamente seus repertórios, constituem-se em alas que são teatralizadas, dada a exigência dos desfiles, tornando-se artistas versáteis e polivalentes.

Digo “essencialmente singular” porque os adeptos dessa modalidade de arte precisam “matar um leão por dia”, ou seja, lutar constantemente por um reconhecimento, por afirmação, pois sua arte consegue ser discriminada e segregada até mesmo dentro de seu recôndito, que é a escola de samba, por quem os passistas devotam sua manifestação e sua causa.

A imprensa oficial brasileira não conhece os passistas. Ela não os citará, nem os homenageará, nem a eles prestará tributo ou mérito por seu dia. Ela os perdeu de vista; os ignorou solenemente enquanto personagens célebres do ritual do carnaval, e hoje pouco se interessa em deles divulgar o que realmente vale a pena ser divulgado, muitas vezes desperdiçando seu tempo com assuntos fúteis ou abordagens inócuas que em nenhum momento revelam a grandeza e a verdadeira face desses artistas genuínos de nosso povo.

A Academia prescreveu, salvo raras exceções, os passistas como agentes fabulísticos ou encantados, mistificados ou estigmatizados, fora de seus reais conteúdos funcionais na manifestação popular que é a escola de samba. Embora resguardando muito mais do que a imprensa os elos de atavismo cultural que aos passistas são inerentes, os acadêmicos raríssimas vezes se esforçaram para evidenciar uma atuação certeira e decisiva dos passistas como agentes artísticos, muitas vezes optando por mistificá-los mais do que consolidá-los como artistas genuínos que são.

Passistas são exímios em sua arte, autênticos em seu quilate histórico, poderosos em sua capacidade de afirmação e resistência

Os passistas, por sua vez, parecem ainda órfãos de uma referência de seus próprios legados históricos e socioculturais. A mídia sedutora a todo tempo desvirtua seus princípios; as próprias escolas de samba, quando negligenciam sua importância, deixam de instruir os novos passistas na consciência de seu dever e funcionalidade ritual e artística enquanto segmento. Sem referência de causa e identidade, muitos emprestam sua arte e sua imagem a movimentos de valorização apenas pessoal, que com nada contribuem para a afirmação do ofício ou do segmento. Outro apropriam-se de discursos que, na prática cotidiana, são desmentidos e viram teoria como poeira no vento. A autoconfiança descabida vira autopromoção – uma miopia que faz quem ainda está crescendo se achar já muito grande. O show business fascina, os holofotes hipnotizam, os elogios deslumbram, os prêmios inebriam: cria-se uma ausência de teor crítico do exercício da própria arte, algo que, sabidamente, dilapida e deprecia o artista.

Gostaríamos que, neste dia 19 de Janeiro, os passistas pudessem reencontrar e exaltar suas próprias verdades em prol de uma verdadeira consciência. Porque são exímios em sua arte, autênticos em seu quilate histórico, poderosos em sua capacidade de afirmação e resistência. São essencialmente singulares!

Digo “essencialmente singulares” porque não podem se vender por saquitéis midiáticos; não podem trocar o fascínio dos palcos pela verdade do chão; não podem abraçar os camarins e sonegar as rodas; não podem almejar o “coreográfico” e desprezar o “litúrgico”.

A ordem dos valores não pode ser invertida: não são os novos que orientam os antigos, é nos legados dos antigos que está a bússola para o rumo dos novos! Africanismo é assim, não é o contrário. As ìyàwós têm um sentido certo para girar; os griôs recontam as histórias dos velhos sábios: na ancestralidade africana, quem perde o princípio perde a essência.

Hoje é Dia dos Passistas. Não teremos a avenida para expressar nossa arte, e ainda nos faltam muitas conquistas na caminhada para que esse fenômeno do samba se evidencie com a grandeza e a glória que lhe é devida. Por dentro e por fora, faltam reconhecimento e afirmação.

Mas onde houver numa sandália, um chapéu de Panamá, um “biquíni de pinta”, um sapato branco e corações pulsantes…ali haverá riscado, requebro, ginga, cadência, furdunço, zigue-zague, quebradeira…manifestação da música na vida do corpo…desenho de batucada com pernas e braços voadores: assim haverá PASSISTAS – donos da arte genuinamente singular que é a explosão da dança do samba!

Hélio Rainho – Padrinho dos Passistas do Império Serrano. Foto: J.M.Arruda

Texto publicado originalmente em 19/01/2019

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