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Excesso da temática afro-brasileira na Sapucaí agradou aos Orixás?, por Jaime Cezário

Desfile da Grande Rio 2022. Foto: Juliana Dias/SRzd

Desfile da Grande Rio 2022. Foto: Juliana Dias/SRzd

O Carnaval de 2021 – 2022 chegou ao fim, e mesmo fora dos seus dias naturais pelo calendário, foi um sucesso. Na Sapucaí vimos, nos quatro dias de disputas, Série Ouro e Grupo Especial, escolas de samba com suas comunidades felizes em poder voltar para seu templo sagrado e mostrar ao mundo nosso ritmo, nossas cores, nossa alegria de viver e poder celebrar a vida!

Nesse Carnaval, tive o prazer de ser convidado pelo portal SRzd para comentar e analisar as fantasias e alegorias e agora, estarei com esse espaço para conversar com vocês leitores, falando desse tema que é fruto de nossa paixão: O Carnaval das escolas de samba.

Grande Rio 2022. Foto: Juliana Dias/SRzd
Grande Rio 2022. Foto: Juliana Dias/SRzd

O balanço desses quatro dias de desfiles, passada a emoção da volta e a alegria de reencontrar o povo querido do samba na Sapucaí, é que as diretorias das escolas e seus carnavalescos precisam fazer uma reflexão sobre o que foi apresentado em seus enredos.

Das 27 agremiações que se apresentaram nesses 4 dias, tivemos 14 temas envolvendo o universo e a herança da africanidade, 9 com temas que abordavam a cultura em geral, 2 com a temática indígena e 2 que homenagearam santos católicos.

Nota-se que a cultura negra foi predominante nas apresentações, chegamos a ter, no último dia do desfile, praticamente todas levantando a bandeira da ancestralidade africana e uma escola abordando a temática indígena.

Entendemos que hoje o Carnaval não está alheio aos fatos que acontecem no mundo, podemos citar o exemplo da morte de George Floyd em 2020 nos EUA, que gerou uma onda de protesto no mundo contra a discriminação racial, e claro que chegou com grande força no Brasil.

O reflexo foi visto nas escolhas dos enredos, todas as escolas de samba queriam mostrar o orgulho de suas origens, sendo mais um estandarte da luta contra esses atos hediondos. Perfeito, estão com toda razão!

As escolas de samba por si só já são um grande ato de resistência e orgulho da ancestralidade africana, afinal, toda vez que uma escola de samba desfila, independente do tema enredo, os grandes mestres pretos, pobres e favelados, criadores dessa instituição são celebrados, mostrando a força de suas comunidades que são capazes de fazer o maior espetáculo audiovisual do planeta. Quando penso nessa capacidade só me vem uma frase em mente; “black is beautiful”, em tradução livre, “O negro é lindo”!

Meu povo do samba, tenham sempre essa consciência; o samba e as escolas de samba são a prova mais cristalina dessa beleza e motivo de grande orgulho, é por isso que se tornaram Patrimônio Cultural do nosso país e símbolo maior da identidade nacional. Tenho que lembrar um fato ocorrido comigo em 2014 e 2015, quando a fui convidado, pela Acadêmicos do Cubango, para ser o carnavalesco e criar um enredo que envolvesse na história a África, Niterói e Carnaval.

O desafio era grande e poderia ter ido para o lugar mais confortável naquele momento; levantar a bandeira contra o preconceito e discriminação racial. Eu amo a cultura negra africana, e como criador de enredos, quero exaltar o orgulho da nossa ancestralidade, da força desse povo preto que veio escravizado e que é o alicerce fundamental na construção desse país. Por esses motivos, não me convencia fazer um enredo com esse encaminhamento.

Saí em pesquisa, revirei a Secretaria de Cultura da cidade de Niterói, conversando com historiadores e buscando em livros, até que encontrei o fio condutor; um livro que citava que aquela região da cidade de Niterói tinha recebido esse nome africano de Cubango devido a um grupo de negros ex-escravos que foram lá morar e que eram proveniente da região de Angola, antigo Império do Congo. Lá, o rio mais importante tem o nome, até os dias de hoje, de Kubango. Eureka! Império do Congo, Cubango, Cortejo dos Reis do Congo, Carnaval e Niterói. Daí surgiu, “Cubango, A realeza africana de Niterói”. Uma exaltação e orgulho a ancestralidade de pertencer a um dos mais poderosos impérios africanos, afinal, “O negro é lindo”.

Retornando aos desfiles, vimos em grande maioria dessas 14 agremiações que exaltaram a africanidade, a resistência e a luta antirracista, uma repetição visual de assuntos que posso dizer que foram um pouco cansativos. Observei bem a reação das arquibancadas, onde escolas eram recebidas aos gritos de “é campeã!”, e quando terminavam seus desfiles, esse mesmo público, estava silencioso e esperançoso pela próxima agremiação. Creio, para ver se seria ela que conseguiria manter essa energia em alta no tempo que durassem os desfiles.

Foi complicado, nunca vi tantos Orixás desfilarem na passarela do samba sucessivamente, entrava uma escola, saia outra, estava lá Oxalá, Xangô, Oxum, Iemanjá e todo panteão da cosmogonia de Orixás africanos, sem falar nos Griôs.

E os Orixás pareceram não ter gostado dessa sucessiva, e porque não dizer, cansativa homenagem, pois algumas escolas foram inexplicavelmente castigadas com alegorias que empacavam, com elementos alegóricos que batiam em árvores e viadutos e carros que não conseguiram completar suas composições a tempo de entrar na passarela.

Era nítido que nesse Xirê carnavalesco criado, os homenageados não estavam felizes. Outra situação vista esse ano, é que insistem em exaltar os Faraós negros egípcios. Bom, Os egípcios não são negros, houve uma invasão do povo negro da Núbia, hoje Sudão, e ao Egito, e que formaram uma “dinastia sudanesa negra” e eles não foram criadores de nada, apenas seguiram as tradições faraônicas da época.

Eles governaram por aproximadamente 100 anos. Precisamos entender que essa cultura egípcia que tinha o Faraó como representação maior, existiu por quase 3 mil anos.

Mangueira 2022. Foto: Juliana Dias/SRzd
Mangueira 2022. Foto: Juliana Dias/SRzd

Seguindo as reflexões sobre os desfiles, vamos falar sobre as boas surpresas. Depois de um longo e tenebroso inverno e com uma pandemia ai no meio, voltamos a ver a Mangueira em verde e rosa, que felicidade para a Nação Mangueirense. Tudo bem que alguns pecados foram cometidos, mas é muito bonito ver de rosa a Estação Primeira e a felicidade estampada em sua comunidade.

A volta da Imperatriz Leopoldinense foi celebrada pelo público que cantou de início ao fim seu samba, não foi recebida com gritos de “é campeã”, mas abriu o Carnaval do Especial com um desfile gostoso de ver. O homenageado, o grande carnavalesco Arlindo Rodrigues, foi bem lembrado em fantasias com a predominância do “prata temperado com ouro”. Uma justa homenagem para um mestre carnavalesco que trouxe tanta inovação para os desfiles, ajudando a se tornar em uma das maiores festas audiovisuais do planeta.

Vimos enfim a Vila Isabel homenageando seu grande poeta Martinho da Vila. Uma homenagem merecida e esperada por toda comunidade do Carnaval. Fez um grande desfile, com alguns pequenos deslizes, mas seu pior pecado foi ter vindo atrás da Grande Rio. Nenhuma agremiação conseguiria impressionar após esse desfile. A Vila fez o seu com todos ainda em êxtase causado pelos Exus.

Uma agremiação foi a “campeã do requinte”, e ela nos trouxe um dos mais belos e oportunos temas do ano, o Carnaval de 1919. A Viradouro esbanjou luxo nos finos acabamentos de alegorias e fantasias, algo característico da sua atual administração que não poupa esforços para brindar sua comunidade e a nós, com o melhor. Obrigado Pierrot, você fez nossos corações baterem mais forte, afinal, “Carnaval te amo, na vida és tudo pra mim!”.

Grande Rio 2022. Foto: Juliana Dias/SRzd
Grande Rio 2022. Foto: Juliana Dias/SRzd

E nesse mar de africanidade e Orixás, temos que exaltar a grande campeã de 2022, a Grande Rio. O leitor deve estar ai, inquieto, afinal para alguns, deve ter ficado a sensação que parece que dei uma alfinetada em temas ou enredos que enveredaram para a cultura ancestral africana.

Caso você esteja com esta impressão, digo que está errado. Eu alfinetei o “lugar-comum” e confortável no encaminhamento dos enredos que a maioria apresentou, mas a Grande Rio, foi na contramão de tudo isso. A inteligência do pensamento prevaleceu, não ficando no “mais do mesmo”.

Quando lançaram o enredo, juro que lembrei de escolas que trouxeram, em outros tempos, enredos com uma temática similar e que vimos na Avenida, verdadeiros “despachos misturados com ebôs”. Poderíamos ter visto novamente nesse desfile uma sucessão de Orixás, afinal, para quem conhece a lenda de Exu, seria fácil seguir por esse caminho tentador, mas pasmem, não fizeram.

Eles exaltaram o homenageado do início ao fim, trazendo toda sua grande energia em cada setor do enredo; Fala Majeté! – Sete chaves de Exu.

Nos encontramos nesse desfile, vimos como os Exus são Orixás que gostam de celebrar tudo com alegria e irreverência. Descobrimos que esse nosso jeito “carioca de ser” tem tanto a ver com o homenageado. Foi um deslumbre arrepiante, a passarela entendeu de início ao fim a sua mensagem.

Um fato importante era sentido: a felicidade do homenageado, pois tudo deu certo na apresentação da escola. Vimos um Orixá feliz e satisfeito com a homenagem recebida. Foi um daqueles desfiles que não queríamos que acabasse. Fomos ao êxtase e o público em delírio cantou em uníssono: É Campeã! Boa noite moça, boa noite moço”, obrigado Grande Rio e Exus; a Sapucaí é vossa.

Jaime Cezário é arquiteto urbanista, carnavalesco, professor e pesquisador de Carnaval.

Começou sua carreira como carnavalesco no ano de 1993, no Engenho da Rainha. Atuou em diversas escolas de samba do Rio de Janeiro, entre elas, a Estação Primeira de Mangueira, São Clemente, Caprichosos de Pilares, Paraíso do Tuiuti, Acadêmicos do Cubango, Leão de Nova Iguaçu e Unidos do Porto da Pedra. Fora do Rio, foi carnavalesco da Rouxinóis, da cidade de Uruguaiana, e União da Ilha da Magia, de Florianópolis.

Em 2007 e 2008 elaborou o trabalho de pesquisa que permitiu a declaração das escolas de samba que desfilam na cidade do Rio de Janeiro como Patrimônio Cultural Carioca, junto da Prefeitura do Rio de Janeiro e do IRPH, o Instituto Rio Patrimônio da Humanidade.

Em 2013, a fantasia da ala das baianas – criada por Jaime para o Carnaval de 2012 para a Acadêmicos do Cubango –, entrou para o acervo permanente do Museu de Arte Moderna de Iowa, no EUA.

Essa fantasia está exposta no setor dedicado as festas folclóricas da América Latina e representa o Carnaval das escolas de samba do Brasil. Esse feito fez de Jaime o primeiro carnavalesco a ter uma obra exposta em acervo permanente num museu internacional.

Crédito das fotos: Juliana Dias, para o SRzd e acervo pessoal de Jaime Cezario
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do portal SRzd

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