Carnaval/RJ

Notícias atualizadas sobre o Carnaval do Rio de Janeiro.

Entrevista especial: Com a palavra, Squel Jorgea

Squel Jorgea. Foto: Acervo pessoal

Meu primeiro contato com Squel Jorgea aconteceu em 2016, durante meus estudos de Doutorado, via redes sociais. Eu desenvolvia uma pesquisa sobre o mestre-sala. Naquela ocasião, de forma ímpar, ela ressaltou a importância da postura e do estilo como base para a preservação do bailado.

Em 2018, quando nossa equipe, após os comentários dos especialistas no quesito mestre-sala e porta-bandeira, premiou o casal da Estação Primeira de Mangueira, eu e Squel conversamos longamente, por telefone, e me encantei com a forma poética com a qual ela falava sobre receber nossa distinção por aquele desfile. Falei sobre a justificativa que escrevemos para conceder a premiação e, ela demonstrou contentamento. Eu guardei com muito afeto, o que ela me falou sobre a importância de conduzir o pavilhão da escola e a preservação do bailado do mestre-sala e da porta-bandeira, um tesouro recebido dos ancestrais mangueirenses.

Depois disto, silenciamos. Quando nos encontramos, em 2019, no “Seminário dos Casais de Mestre-Sala e Porta-Bandeira”, promovido por Selminha Sorriso, na Casa França-Brasil, e ela me dedicou carinho! E seguindo, através dos vídeos postados em suas redes sociais, eu acompanhava e comentava sua performance de porta-bandeira.

Quando Squel anunciou sua aposentadoria, eu me entristeci, todavia, lembrando das poucas, contudo, potentes conversas que tivemos, busquei o entendimento para sua atitude. E, com o respeito que se deve a esta “realeza”, me reaproximei. Iniciei um diálogo pelas redes sociais e ela foi acolhedora. Conversamos, e pude fazer perguntas, as quais me respondeu prontamente. E deste diálogo, uma poesia declamada por nossa Squel edificou o texto, que ora apresentamos.

“A Squel nesse momento encontra-se fazendo uma adaptação, reestruturando a vida. A família e os poucos amigos, são a minha base. Sobre as redes sociais, pretendo me desfazer. Não somam, só te expõe. E nesse momento da vida, não preciso mais mostrar o meu trabalho. Quero passar por essa transição mais na minha, quietinha, vivendo a minha vida tranquila”. Assim iniciou nossa conversa.

Squel movimenta-se confortavelmente entre o subúrbio e a zona sul da cidade, ela gosta de praia; de cinema e de teatro. Gosta de barzinho e torce pelo Vasco: “Sou vascaína!

Ela nos falou de sua devoção religiosa: “Tenho fé nos Orixás, nos Guias de Luz, nas Entidades, nos Santos pelos quais tenho devoção, no mar, na mata, no vento, na chuva, no tempo e nas orações da minha mãe”. No Rio de Janeiro seus lugares favoritos são Búzios e Paraty, e fora do Rio, ama Salvador.

Em sua infância e adolescência, ela fez aulas de jazz. E considera que nesse estilo de dança, a pessoa aprende outras danças. Além do jazz, o Carnaval lhe abriu o universo sobre a dança da porta-bandeira, arte da qual, ela afirma que, os ensinamentos são constantes e o aprendizado contínuo.

Em relação a seu gosto musical, nos disse que costuma transitar entre diversos gêneros musicais. Sendo sua playlist variada. Só não se encontram nela o rock pesado, o sertanejo e o erudito. Como sou uma apreciadora do bailado do mestre-sala e da porta-bandeira, eu tive a primazia de perguntar a Squel, durante nossa conversa, sobre o tempo necessário para se alcançar a excelência na performance da dançarina durante sua trajetória no universo das escolas de samba. Novamente, me encantei!

“Não existe uma regra, ou uma fórmula, para se dizer com quantos carnavais a pessoa obterá a excelência no bailado, a meu ver. Têm artistas que na sua estreia conseguem obter uma notoriedade e assim atrair os olhares de todos para sua dança. Enquanto outros, poderão ao longo dos anos crescer de forma contínua e, quando menos esperar, acontece um desfile em que ele receberá a atenção de todos, pela performance apresentada. Excelência, acho uma palavra muito forte e pesada, porque a meu ver, ninguém é perfeito. E essa cobrança pela perfeição pode atrapalhar o artista, se ele não tiver sabedoria e humildade. As pessoas acabam se perdendo na arrogância, no “achismo”, que a vaidade os leva a ter. E ai, eles não conseguem mais evoluir, ficam estagnados por se acharem excelentes e ai, não conseguem se enxergar. Prefiro que a busca pelo conhecimento e pela evolução, sejam constantes para que o artista continue numa crescente e permanente evolução. Porque perfeito, só Deus”.

Sobre os movimentos e ações da dançarina, ela nos falou assim: “Saber girar com qualidade, no eixo, para os dois sentidos e se deslocar em linha reta ou em círculos, utilizando as técnicas para ambos os lados, requer uma habilidade grande da artista. O equilíbrio corporal, a meu ver, ao utilizarmos as técnicas adquiridas ao longo das aulas, treinos ou ensaios, nos auxiliam, para permanecermos no nosso eixo corporal durante o desenvolvimento de uma sequência de giros. Sobre qual sentido horário, a porta-bandeira faz mais esforço, isso vai de cada uma. Não há regra para isso, é algo muito particular de cada pessoa. É claro, que durante os treinos, percebe-se uma limitação para algum sentido e assim, faz um trabalho em busca da evolução daquele movimento. Eu admiro demais os giros, para mim é a beleza da dança. Quando os giros são executados com qualidade, elegância, graça, força e ao mesmo tempo com leveza, tudo isso, com o pavilhão desfraldado. Me ‘prendem’ aos movimentos que estão sendo executados. Para mim, é ápice. Saber girar é um dom”.

E falando sobre fatores que podem interferir na performance da dançarina, ela diz que: “As interferências podem ser várias, de acordo com o ambiente em que a porta-bandeira irá se apresentar. Que pode ser um chão ruim, que não contribui para uma evolução segura, quanto o vento, a chuva e uma fantasia com defeito.

Em relação ao corpo em movimento, sua fala se sustenta em sua vivência de anos no cargo: “O que acontece com o corpo, é um esforço além do normal para quem está tentando desempenhar a sua função. Podendo gerar machucados, que as pessoas não têm ideia. O corpo sofre um desgaste, que precisa de um tempo para se recuperar. Coisa, que nem sempre conseguimos, tempo para uma recuperação. E assim, as dores e os machucados, vão se acumulando”.

No entanto, apesar de falar em sofrimento, sua descrição sobre a performance de uma porta-bandeira, nos chega plena de paixão: “Quando essa dança, essa arte, ela vem do coração, é feita com o corpo e a alma, em sua plenitude. É mágico! Encantador! Quando a artista consegue ter técnica, mas essa dor não aparece porque o amor à dança e a força da sua ancestralidade, “fala” mais alto, é um dos momentos mais lindos, que o carnaval nos permite viver. Olhar, admirar, emocionar-se, vibrar e aplaudir esse momento de puro encantamento que é poder ver uma porta-bandeira em evolução”.

Segundo Squel,”o traje social de uma porta-bandeira, auxilia sim na edificação do perfil e demonstra a característica pessoal da dançarina. Cria-se um misticismo no entorno da figura da porta-bandeira, que faz as pessoas nos enxergarem como majestades ou divindades. O que não deixamos de ser, apesar de sermos humanas que possuem falhas, como qualquer outra pessoa”.

E quando falamos sobre que tipo de fantasia favorece a execução do bailado durante o desfile, ela nos diz que: “Apesar de ser quase impossível, uma fantasia confortável na medida do possível. Uma fantasia pensada e conversada, com quem irá vestir. Respeitar a opinião da artista e ouvi-la, para atender as suas necessidades e as demandas que ela precisa enfrentar, para poder estar segura e ter um bom desempenho no seu trabalho”.

E reportamos, também, às memórias e inspirações, às referências e espelho: “Minhas referências ficam mais no campo emocional, quando comecei a entender como elas me inspiravam, me dando forças para continuar, apesar das adversidades. Acho que a única, que me impressionou com a dança foi a Ana Paula, quando ela foi porta-bandeira da Grande Rio, em 1997 e 1998, e eu, era porta-bandeira mirim. Ela é tão elegante e ao mesmo forte, tem uns movimentos corporais únicos. E dança! Como dança essa mulher. É o tipo de porta-bandeira que eu sempre quis ser, a artista, que dança, que gira bem para os dois sentidos. É uma rainha dançando. Quando me torno segunda porta-bandeira, a minha referência, continuava sendo a Ana Paula, tanto para dança, quanto para a vestimenta. Ela era a primeira grande porta-bandeira que eu tive acesso e que foi acessível. Mas quando me tornei primeira porta-bandeira, aos dezoito anos, comecei a ter contato com outras grandes artistas, cada uma com um dom e jeito de dançar específicos. Vi e senti na pele as dificuldades do que é desfilar com uma fantasia com um peso surreal”.

“E assim, alguns fatores começaram a me chamar atenção e a me inspirar: se a Selminha consegue sorrir, com uma roupa pesada, eu também consigo. Tenho que buscar essa força em mim, para vencer as dores que a fantasia causa. Como era bonito de ver a força da Rute, na época ela estava na Porto da Pedra. Me questionava sobre como ela conseguia ser forte, apesar da roupa. E para me conquistar, a humildade dela, com aquela menina, que estava começando, foi outra lição que ela sem saber me ofertou. Ela me estendeu a mão e não me deixou sozinha, assim não ficava deslocada. E o mastro alto, utilizado por Giovana, que requer uma destreza e força no braço incríveis. Vê-la fantasiada, girando com o seu mastro alto, é sempre uma aula. E assim, fui me inspirando nelas, buscando forças para conseguir do meu jeito, colocar a minha personalidade na dança, através dessas inspirações”.

“E as inspirações divinas, são Tia Dodô, com quem pude conviver e ser escolhida por ela, para ser sua afilhada. O amor e a devoção dela, eram inspiradores. A Eterna Neide, que o seu amor pelo pavilhão Verde e Rosa, a fez esconder a gravidade da sua doença. A forma como ela é amada, me emocionou por demais quando cheguei na Mangueira. E, assim que eu tive uma oportunidade, pedi a bênção e licença, ao seu filho Goy, para homenagear sua mãe com o seu famoso e eterno V, da vitória da Neide. E com o consentimento dele, que me respondeu dizendo que seria uma alegria ver esse movimento de volta ao solo sagrado da Estação Primeira, eu me senti abençoada e protegida por ela. E logo, no primeiro ano que fiz a homenagem, ganho o meu primeiro Estandarte de Ouro, quando
completava quinze anos de carreira. E Mocinha, me inspirou por ter o seu amor testado, ao ser segunda-porta por mais de vinte anos, acho que foram 26 anos! É muito tempo. E quando ela se torna primeira, ela fica oito anos no cargo. Então, a importância dela, a história dela, está vinculada, por ter sido segunda porta-bandeira por tanto tempo. É uma demonstração de amor muito grande ao pavilhão e a sua escola.

E sobre sua trajetória, Squel fala com vigor: “Me tornei porta-bandeira aos onze anos de idade. A convite de um discípulo do meu Avô, o Xangô da Mangueira, o diretor de harmonia da Grande Rio, na época, o saudoso Candimba, ele falou para o meu pai, que eu poderia me adaptar e não ter tantas dificuldades, por dançar (eu fazia jazz), e, ele sabia. E assim, eu fui para essa experiência na escolinha de Mestre-Sala e Porta-Bandeira Mirim da Grande Rio. Me apaixonei, apesar das dificuldades que enfrentei. Mas tive como professor, o saudoso Jorge Edson, que foi um grande incentivador e mestre para mim. E assim, ele foi repassou os seus conhecimentos, os quais carrego comigo até hoje.”

E seguindo nossa conversa, perguntei como ela havia elaborado o momento de passar seu legado, e sua resposta nos foi ofertada revelando muita reflexão e amadurecimento.

“Eu não elaborei, as coisas foram acontecendo, fiquei doente e me vi triste, desanimada e sem forças para seguir. Me vi num desgaste emocional muito grande, onde o meu psicológico afetou o meu físico. E refletir sobre o que eu estava sentindo, as dores, me ver mal, sem ânimo para fazer coisas que eu amo, foi inevitável. Faço terapia há seis anos, e me vi nos dois últimos carnavais, precisando muito da ajuda da minha psicóloga, para lidar com questões que me feriram, com o cansaço mental, o desgaste de um trabalho e buscar forças e apoio para seguir. O assunto parar de dançar, sempre se fez presente em algumas conversas com amigos ou com a minha família. Sempre achei importante ter sabedoria para tomar uma decisão tão relevante. Sempre falei de forma tranquila com os meus, ou, em algumas lives que fiz no meu próprio Instagram em 2020, no auge da pandemia”.

“A pandemia serviu para me fazer refletir, como o um profissional do Carnaval, um sambista é visto, eu senti na pele, vi minha vida mudar. E foi inevitável fazermos questionamentos, num momento em que éramos nós, por nós mesmos. Se a nossa gente, não se une, e pede ajuda, a situação seria muito pior. O medo de passar pelo descaso, como o que passamos, não desejo para ninguém. Vi vidas, sendo devastadas, famílias passando por situações difíceis, com fome, ordens de despejo. E, o medo, a insegurança, para um profissional que vive da cultura popular, é grande demais. Então, uma junção de fatores, mais a doença, me fizeram refletir de forma incansável: o que eu quero para mim? Estou feliz? Está me fazendo bem? Dá para confiar nesse sistema? Tenho alguma segurança? E as minhas realizações pessoais? Estou tendo a vida que eu quero, para ter o futuro que desejo? Foram muitas perguntas, e, para todas elas, as respostas eram negativas. Sei que o desgaste emocional, interferiu muito. Mas, nessa altura da minha vida, aos trinta e nove anos, com vinte anos de carreira. Resolvi me priorizar e recomeçar enquanto tenho saúde, tempo e forças”.

E de forma singela, nos fala: “Tenho orgulho da minha trajetória, das minhas lutas, realizei sonhos, vivi momentos incríveis. Mas não me sinto plena, me faz muita falta não estar presente em momentos importantes da minha família ou dos meus amigos. Logo eles, que sempre estiveram comigo, em todos os momentos difíceis, pelos quais passei, tanto na vida pessoal, quanto na vida profissional. Estar no holofote, exposta, requer uma força e sabedoria extremas, cansa. Porque ninguém é perfeito, e, quem está na vitrine, não pode errar, quando somos humanos normais, cheios de erros e acertos, qualidades e defeitos. Então, ao me ver doente, com a pressão pela volta ao trabalho, preferi cuidar de mim, da minha vida, sair da vitrine. E assim, achei melhor encerrar uma carreira, da qual tenho muito orgulho de todos os meus passos dados, até o dia 13 de junho de 2022. Por mim, para mim, para o meu bem-estar físico e psicológico”.

Os momentos de conversas com Squel foram mágicos, plenos de muita reflexão e energia. Aqueles momentos me motivaram a fazer perguntas, que ela respondeu de uma forma que me encheu de alegria. Eu fiquei muito impressionada com o amadurecimento e a forma como ela foi naturalmente construindo sua saída do foco dos “holofotes”, não que isto não lhe tenha causado tristeza, mas a certeza de estar no caminho correto, faz com que no “espelho” outras dançarinas busquem o alento no momento de entregar o legado construído.

E voltando ao meu documento final de estudos no Doutorado, aqui copio sua citação, que nos aconselha sobre a preservação e execução do bailado do mestre-sala e da porta-bandeira:”(…) sem a essência, a dança não fica verdadeira! Ela acaba se perdendo em coreografias que engessam a dança do casal e assim a alegria da nossa dança”.

Um estilo e uma postura sustentaram, durante anos, a dançarina, e estes mesmos estilo e postura, agora, sustentam a mulher em transformação, tal qual aquelas da dança que foi sendo, durante décadas, esculpida em seu corpo. Axé, Squel!

Eliane Santos de Souza é professora e pesquisadora do tema: dança, dança do samba, bailado do mestre-sala e porta-bandeira. Lecionou, como substituta, no curso de Bacharelado em Dança da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a UFRJ. É Doutora em Arte pelo PPARTES-UERJ com a tese: Daqui de onde te vejo: reflexões de uma porta-bandeira sobre o mestre-sala, com publicação em formato de livro com o mesmo título. É Mestre em Ciência da Arte- UFF com a dissertação: Uma semiologia do samba: O bailado do mestre-sala e da porta-bandeira. Ainda é especialista em Educação pela Universidade Federal Fluminense, Docente do Ensino Fundamental e especializada em Educação Infantil. Porta-bandeira aposentada, é apoio, orientadora e apresentadora de casais. Foi membro de comissões julgadoras do quesito mestre-sala e porta-bandeira, no Rio de Janeiro, em Porto Alegre, São Paulo e Uruguaiana.

Crédito das fotos: portal SRzd
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do portal SRzd

Comentários

 




    gl