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Daqui de onde vejo, por Eliane Santos

Sossego 2022. Foto: Bianca Guilherme/SRzd

Em 2018, convidada por Sidney Rezende, comecei a desenvolver um trabalho para o portal SRzd, no qual eu deveria observar e comentar sobre a performance dos casais durante sua apresentação nos ensaios técnicos e nos desfiles das escolas de samba dos Grupos de Acesso Ouro e Especial, no Rio de Janeiro.

Para tanto, fui obrigada a me dedicar bastante para decodificar (e ainda é necessário fazer muito mais e melhor) os movimentos das coreografias do mestre- sala e da porta- bandeira.

Já sinalizado em 1996, no livro Dança do Samba: exercício do prazer, de José Carlos Rego, o bailado do casal se estrutura a partir da sincronização da coreografia do mestre-sala com a da performance da porta-bandeira. Na dupla, cada um realiza movimentos diferentes e diversos, e o que faz surgir o bailado é o entrosamento da dupla, a sua sintonia em coordenar os seus movimentos obrigatórios.

Numa memória ancestral, cabe ao mestre-sala defender o pavilhão e proteger a porta-bandeira: doce invenção dos sambistas, no tempo em que roubar o pavilhão, era sinal de valentia, e rendia pontos para a agremiação.

O tempo passou desde que a dupla, trazida dos ranchos, foi declarada responsável pela guarda do pavilhão: ela portando a bandeira e, ele, dançando para defender e proteger a dama e o objeto sagrado.

O mestre-sala nasceu dançando. Ele é o dançarino. Desde os cordões paulistanos de seu avô – onde era o baliza -, dos ranchos de reis baiano de seu pai – onde era um arauto bem vestido – até seu nascimento na Cidade do Rio de Janeiro – onde se tornou o mestre-sala das agremiações de samba, um malandro batuqueiro – e se efetivar o par da porta-bandeira. Ele tem a obrigação de dançar. E com excelência, executando os passos decorados, aprendido com os
veteranos, com virtuosidade e exibindo um riscado criativo, pleno de personalidade, no qual expõe seu estilo. São meneios, mesuras, giros e contra-giros/fugas, reverências, cambrè e promenade, que devem ratificar o conhecimento sobre a dança que desenvolve e, em paralelo expor seus improvisos e sua maneira criativa.

Aliado a toda esta performance, a demonstração de cuidado e zelo pela dama que porta o pavilhão. Ele dança para a porta-bandeira e seu pavilhão, sem desprezar a plateia.

A porta-bandeira, outrora porta-estandarte, edificou-se “a rainha do pedaço”. Ela tem uma performance composta por quatro movimentos. Ela se apresenta no ‘patinete’, em pêndulo, parada ou se deslocando pelo espaço; ao fazer o ‘balanço’ com ou sem o apoio do mestre-sala, ela evolui agitando graciosamente o pavilhão; quando desfralda a bandeira apoiada na mão do par, com destreza e velocidade, realiza o ‘aviãozinho’; e nos giros do ‘abano’, nos dois sentidos do relógio, ela rodopia sem nenhum apoio de seu cavaleiro, para exibir o pavilhão, distribuindo assim, toda a força e energia dos ancestrais da agremiação, contidas naquele manto sagrado. Seu estilo é determinado por suas nuances, trejeitos e gestos, ora fluídos e suaves, ora vigorosos e determinados e, pelas releituras de passos como o “michellelima”, o “babicruz”, o “neidedamangueira”, o “bandeirada” da Lucinha Nobre e outros, assim como o manuseio do leque durante o ‘abano’, que lhe é gentilmente cedido pelo mestre-sala, como fazia com grande habilidade a porta-bandeira Alessandra Bessa.

E o mestre-sala? Sua coreografia é mais extensa, e ele pode conduzir a dança e a dama, utilizando leque, bastão ou lenço, os adereços de mão que mais completam sua indumentária: no ‘cruzado’, (conforme descreveu o Bicho Novo: a “encruza” é jogar a porta-bandeira para lá e deixar ela sozinha) enquanto a porta-bandeira desenvolve livremente, seus passos e movimentos, o dançarino dá um pequeno salto; tem apoio no pé esquerdo plantado, pé direito vai à frente e volta, em meia ponta com miudinho; corpo balança para os lados; faz uma roda em torno da porta-bandeira, que pode ser realizada com movimentos que lembram o voo de um pássaro – “beija-flor”- , terminando a roda, bate o pé direito no chão e faz uma pirueta; no ‘meio sapateado’, ele sapateia sem se deslocar, elabora pirueta com parada brusca; oferece a mão para porta-bandeira e repete o sapateado; no ‘voleio’, o dançarino gira para os dois lados, leva o pé atrás do joelho da perna de apoio, e então, realiza uma falsa queda, pede a mão da porta-bandeira; nessa movimentação, podem acontecer o beijo ou, o ‘eixo de curva’, onde rodam no sentido horário, movimento descrito e nomeado por Manoel Dionísio em 2016; na ‘pegada de mão’, pode realizar o cambrè, quando dobra o corpo para trás para bandeira não bater em seu rosto e gira, sustentando a porta-bandeira; o promenade, quando abaixado, gira com a mão dada com sua dama, sem lhe causar desconforto (este movimento deixou de ser realizado nos desfiles, devido ao volume da saia da porta-bandeira); durante o ‘currupio’, ele gira enlaçado (no desfile, dando somente a mão) com a porta-bandeira , um pé falseia, o outro impulsiona o giro, desenvolvendo passos miúdos; na ‘carrapeta’, com pequeno deslocamento no espaço, olhando para o pavilhão e a porta-bandeira, realiza passos miúdos e rápidos e, piruetas simples ou diversas; na ‘apresentação de bandeira’, momento único no qual tem autorização para tocar o pavilhão, os gestos e movimentos acontecem em acordo com o estilo do dançarino, podendo ser calmos e gentis, ou vigorosos; e sua postura pode ser altiva ou galante, e sinalizar o pavilhão, usando algum adereço de mão.

Ele pode realizar reverências e ofertar beijos a dama e a bandeira. E mais, ele deve e pode apresentar o famoso ‘riscado’, pleno de meneios, requebros, fugas e contrafugas, e releituras dos passos como, os dos veteranos: ‘delegado’, ‘chiquinho da maria helena’, e de contemporâneos como, o jovial ‘ thiaguinho mendonça’.

Eliane Santos de Souza é professora e pesquisadora do tema: dança, dança do samba, bailado do mestre-sala e porta-bandeira. Lecionou, como substituta, no curso de Bacharelado em Dança da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a UFRJ. É Doutora em Arte pelo PPARTES-UERJ com a tese: Daqui de onde te vejo: reflexões de uma porta-bandeira sobre o mestre-sala, com publicação em formato de livro com o mesmo título. É Mestre em Ciência da Arte- UFF com a dissertação: Uma semiologia do samba: O bailado do mestre-sala e da porta-bandeira. Ainda é especialista em Educação pela Universidade Federal Fluminense, Docente do Ensino Fundamental e especializada em Educação Infantil. Porta-bandeira aposentada, é apoio, orientadora e apresentadora de casais. Foi membro de comissões julgadoras do quesito mestre-sala e porta-bandeira, no Rio de Janeiro, em Porto Alegre, São Paulo e Uruguaiana.

Crédito das fotos: portal SRzd
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do portal SRzd

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