‘Maria do Caritó’ bebe da fonte do cinema de Mazzaropi

Há 30 anos, Lília Cabral roubou a cena no horário nobre da TV como a beata Amorzinho de “Tieta” (1989). Na novela escrita por Aguinaldo Silva, Ricardo Linhares e Ana Maria Moretzsohn, baseada no livro “Tieta do Agreste”, de Jorge Amado, a atriz deu vida à viúva sexualmente reprimida por Perpétua (Joana Fomm), que a impedia de se aproximar de quaisquer homens. Fogosa, a personagem entrou para a história da televisão, sobretudo pelo sucesso de bordões como “Eu uso calçola, sim!” e “Eu quero hômi!”. Agora, Cabral invade os cinemas no papel de uma cinquentona que sonha em “conhecer o pecado”, mas é impedida pelo pai que prometeu entregá-la virgem a São Djalminha, no filme “Maria do Caritó” (2019), que entra em cartaz nesta quinta-feira, dia 31.

Marcando a estreia de João Paulo Jabur na direção de longas-metragens, “Maria do Caritó” é uma comédia com leves toques de drama. Ambientado no interior, aborda temas pertinentes que vão além do pagamento da promessa, uma vez que Maria (Cabral) é considerada santa com direito a milagres atribuídos a ela pela população, desde ressurreição da noiva do “coronel” candidato à prefeitura até a chuva no sertão. Neste contexto, o longa envereda pelos bastidores de uma campanha política suja apoiada por clérigos em busca de fama, mesmo que às custas da liberdade de escolha da protagonista, que recusa o título de santa e anseia assumir o controle de sua vida, livrando-se das amarras impostas pelo pai e por toda a cidade. E sua única oportunidade surge no picadeiro do circo de Madame Teodora (Juliana Carneiro da Cunha). O desabrochar tardio de Maria num cenário de poucas informações, algo que facilita a perpetuação de políticos mal-intencionados no poder e também a exploração da fé alheia de forma descarada, se dá pela necessidade de expor a todos que ela não é santa nem palhaça, mas uma mulher comum em busca de felicidade.

No entanto, “Maria do Caritó” perde consistência devido ao roteiro superficial de José Carvalho e Newton Moreno, autor da peça que o originou, também estrelada por Lília Cabral. As questões abordadas não são trabalhadas em sua plenitude para priorizar o humor calcado no estereótipo, principalmente no que tange à ingenuidade do interior, utilizada como força motriz da transformação de uma mulher que acreditava no casamento como solução para os seus problemas. Neste sentido, pode-se dizer que este longa bebe diretamente da fonte do cinema de Amácio Mazzaropi, o eterno Jeca Tatu.

Conduzido com firmeza por Jabur, “Maria do Caritó” tem sua protagonista como principal alicerce. Bastante à vontade como a virgem que lhe rendeu o Prêmio Contigo de melhor atriz nos palcos em 2011, Lília Cabral surge em cena como uma gigante que explora todas as características da personagem nos mínimos detalhes, trabalhando com propriedade inocência, dor e desejo. Tudo isso com leveza e naturalidade, engolindo a todos os seus coadjuvantes, inclusive Leopoldo Pacheco (Coronel).

Com roupagem de telefilme, “Maria do Caritó” não é sobre promessa ou religiosidade. É uma produção sobre a importância do autoconhecimento e da liberdade do indivíduo, pois tal qual Amorzinho, Maria é uma personagem que surpreende ao subverter as regras estabelecidas em seu nascimento, principalmente ao recusar o caritó eterno.

Assista ao trailer oficial: