Ana Carolina Garcia. Foto: SRzd

Ana Carolina Garcia

Jornalista formada pela Universidade Estácio de Sá, onde também concluiu sua pós-graduação em Jornalismo Cultural. Em 2011, lançou seu primeiro livro, "A Fantástica Fábrica de Filmes - Como Hollywood se Tornou a Capital Mundial do Cinema", da Editora Senac Rio.

Cinema: ir ou não ir? Eis a questão

Cinemas deverão seguir protocolos de segurança para a reabertura (Foto: Freepik).

A pandemia do novo coronavírus interrompeu as atividades em diversos centros de produção mundo afora, bem como fechou as salas de exibição, tornando o cinema um dos setores mais afetados pela crise econômica originada pela sanitária. Na verdade, hoje se trata de crise humanitária que nós só conhecíamos pelos livros de História, tendo como um dos exemplos a Gripe Espanhola, que vitimou de 50 milhões a 100 milhões de pessoas entre 1918 e 1920. Até o momento, a Covid-19 acometeu oficialmente cerca de 24 milhões de pessoas, dentre elas, mais de 821 mil foram a óbito, de acordo com dados fornecidos pela Universidade John Hopkins. Somente no Brasil, segundo país mais afetado pela pandemia, mais de 3,7 milhões de pessoas foram infectadas, e o número de mortes ultrapassa os 118 mil, de acordo com a instituição americana – os Estados Unidos são o país mais afetado, com cerca de 5,8 milhões de casos e mais de 180 mil mortos.

 

Procurado pela coluna, o pesquisador Carlos Machado, Coordenador-Geral do Observatório Covid-19 da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), instituição que é referência na América Latina, disse que a flexibilização começou com registros incompletos de óbitos e casos. Frisando que para o afrouxamento da quarentena a pandemia teria de estar sob controle, Dr. Machado destacou a estabilidade, assim como o aumento dos números de casos e óbitos. “No Boletim Observatório Fiocruz Covid-19 que estamos publicando agora, cobrindo o período de 09 a 22 de agosto, semanas epidemiológicas 33 e 34, demonstramos que a pandemia mantém um padrão de estabilidade, só que com um número alto de óbitos (cerca de mil óbitos por dia) e de casos por Covid-19 (cerca de 40 mil casos). Constatamos tendências de quedas em alguns estados do Nordeste (Ceará, Sergipe e Rio Grande do Norte). As situações do Rio de Janeiro e Distrito Federal há uma tendência de aumento no número de casos, sendo a situação do Distrito Federal mais preocupante, com alta taxa de incidência nas duas últimas semanas”, afirma o Coordenador.

 

Há poucos meses, cidades brasileiras e estrangeiras iniciaram protocolo de reabertura, mas seguindo regras de segurança que colocam a máscara como acessório de uso obrigatório. Atividades em locais abertos e, portanto, ventilados, são recomendadas pelas autoridades e médicos desde que respeitando o distanciamento – a Prefeitura do Rio, por exemplo, recomenda distanciamento de dois metros, quatro metros quadrados, em áreas públicas. No entanto, a permanência em locais fechados, sobretudo por períodos significativos, não é recomendada. Sendo assim, o que muitos têm se perguntado é se a volta aos cinemas é segura neste momento, uma vez que as salas já podem retomar suas atividades, ao menos no estado do Rio de Janeiro, segundo o governador Wilson Witzel no dia 20 deste mês, mantendo distância de dois metros entre espectadores ou com limite de 40% de ocupação, cada uma.

 

Presidente do Sindicato das Empresas Exibidoras Cinematográficas do Estado do Rio de Janeiro, Gilberto Leal, disse em entrevista ao jornal O Globo, publicada no último dia 16, que haverá desinfecção das salas entre as sessões, bem como o espaço de dois metros entre os clientes, exceto para famílias de até quatro pessoas, que, por residirem juntas, poderão sentar-se lado a lado. Leal também disse ao O Globo que a máscara será obrigatória. No entanto, o consumo de alimentos e bebidas está liberado no interior das salas, ou seja, o cliente poderá retirar a máscara. O que levanta a questão: para aqueles que optarem por não retirar o acessório, qual é o risco de permanecer em sua poltrona se os clientes mais próximos estiverem sem máscaras, consumindo pipoca e refrigerante, por exemplo? Confusão à vista durante as sessões? Provavelmente. “Se a recomendação das pessoas conviverem em um mesmo espaço é utilizando máscaras, ainda mais em um espaço mais restrito como os cinemas, não faz sentido vender e consumir pipoca e refrigerantes. Claro que é ótimo assistir filmes com pipocas. Mas certamente, por prudência, podemos deixar isto para quando tivermos sem óbitos e com o número de casos diários muito reduzido”, explica o Dr. Carlos Machado.

 

Dr. Carlos Machado, Coordenador-Geral do Observatório Covid-19 da Fiocruz (Foto: Divulgação – Fiocruz).

 

“Para uma melhor prevenção e redução dos riscos de transmissão da Covid-19 três aspectos devem ser considerados e combinados, e isto vale para todos os espaços e vale também para os cinemas. Primeiro, manter o distanciamento físico entre as pessoas, o que pode ser feito pela restrição do número de pessoas dentro das salas de cinema. O segundo é a reorganização dos espaços dentro do cinema, de modo a garantir que o mínimo de dois metros de distância seja mantido entre uma pessoa e outra ou um grupo de pessoas (um casal, uma família com três pessoas ou qualquer outra configuração que compartilhe a mesma casa). O terceiro é uma proteção individual para cada uma das pessoas e todas as outras, que é uso obrigatório de máscaras durante todo o filme”, explica o Coordenador do Observatório Covid-19, complementando: “Sabemos que estes três aspectos são bem melhores e seguros nos ambientes abertos, ao contrário dos ambientes com ar-condicionado, pois nos ambientes fechados a dispersão de aerossóis é menor e o risco de transmissão torna-se maior. Por isto é importante o uso de máscaras por todos, para reduzir este risco”.

 

Além disso, há outro fator pertinente, o desrespeito sistemático às regras por parte da população, que confunde flexibilização do isolamento social e retomada gradual das atividades econômicas com erradicação do novo coronavírus, frequentando bares, restaurantes e praias de maneira a criar aglomerações, na maioria das vezes, sem máscaras, conforme mostrado incessantemente pelos telejornais. Isto pode ser observado não apenas na capital fluminense, mas em tantas outras cidades, brasileiras e estrangeiras, onde não há conscientização por parte de seus habitantes acerca do comportamento que coloca terceiros em risco, pois cada organismo reage de maneira diferente à infecção pelo novo coronavírus. Com isso, o controle no interior das salas provavelmente caberá ao lanterninha, que volta ao cenário para atuar na linha de frente, suscetível a situações como a vivida pelo fiscal da Vigilância Sanitária verbalmente agredido por um casal durante fiscalização na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio, no início de julho.

 

Pensando nisso, alguns cinemas da capital paulista encontraram como solução a certificação digital por meio do Selo ALS (Ambiente Limpo e Seguro). Contudo, a Prefeitura de São Paulo adiou a reabertura das salas para a fase verde, penúltima da flexibilização, que deve começar a vigorar na segunda quinzena de setembro, o que causou incômodo aos exibidores que já haviam se preparado para o retorno das atividades. “Os cinemas estão aplicando todos os protocolos definidos pelas autoridades sanitárias, e estão prontos para operar com segurança. Contudo, é preciso que o público saiba disso, e a certificação, além de ser extremamente eficiente do ponto de vista técnico, também é uma forma de mostrar que os cinemas são ambientes limpos e seguros. Há falta de informação sobre as normas dos cinemas, e a certificação pode ajudar a esclarecer isso, inclusive porque o próprio público pode denunciar qualquer problema”, afirmou Paulo Lui, presidente do Sindicato das Empresas Exibidoras Cinematográficas do Estado de São Paulo, em comunicado oficial à imprensa na última quinta-feira, dia 27.

 

Desenvolvido pela ICV Brasil, o Selo ALS permite que qualquer irregularidade ou falha nos protocolos de segurança adotados possam ser denunciadas pelos clientes por meio de QR Code gerado pela empresa em quaisquer áreas dos complexos, englobando desde a bilheteria até lanchonetes e banheiros, por exemplo. De acordo com informações passadas pela assessoria de imprensa, o certificado informa ao consumidor se aquele cinema em específico cumpre regras como “a redução da capacidade de público em 40% para evitar aglomeração; a limpeza das poltronas e braços entre as sessões; o intervalo maior entre os filmes; a disponibilidade de álcool em gel 70%; o controle de temperatura de clientes e colaboradores; o distanciamento das pessoas em filas e os sistemas de ventilação e climatização limpos, entre outros pontos”. Diretora de Certificação e Inspeção da ICV Brasil, Suzete Suzuki, disse, no mesmo comunicado, que “a fiscalização por parte do usuário do espaço é de grande importância, pois ele pode registrar e denunciar a não conformidade com rapidez e agilidade via dispositivo móvel. Todo material disponibilizado passa por auditoria e caso o auditor encontre inconsistências, pode solicitar ao cliente uma auditoria remota ou o envio de ações e evidências de atendimento”.

 

A desinfecção das salas durante os intervalos entre as sessões, diminuindo o número diário das mesmas, é imprescindível para evitar a contaminação por contato de superfícies, o que acende o alerta para a programação voltada para o público infantil, uma vez que as crianças menores não têm o mesmo cuidado que os adultos. Esta questão é pertinente porque nos últimos meses mais casos de Doença de Kawasaki e de Síndrome Multissistêmica Inflamatória Pediátrica (SMIP), também chamada de Síndrome Inflamatória Multissistêmica em Crianças (MIS-C), têm sido associados como complicações da Covid-19 nos baixinhos. “O contato com superfícies, como poltronas e corrimões, deve ser considerado se o espectador mantém contato com as mesmas e depois leva as mãos aos olhos, nariz e boca. Como no espaço do cinema, ou qualquer outro lugar público ou comercial, muitas vezes as pessoas fazem isto de modo automático, principalmente crianças, é muito importante o processo de desinfecção dos mesmos como forma de evitar o risco de transmissão e elevação do número de casos”, diz Dr. Machado.

 

Outro fator que causa preocupação são os óculos 3D, inevitavelmente compartilhados e manualmente manipulados. Afinal, quem nunca se deparou com o acessório sujo – marcas de dedos engorduradas não são raras – apesar da embalagem fechada e da anunciada higienização? Como lidar com eles em meio à pandemia de uma doença cujas consequências podem ser graves? Usá-los ou não? Eis as questões. “Este é um momento em que o retorno de algumas atividades, como cinemas, deve ser tratado com total prudência. Não é o momento de se compartilhar objetos, pois de algum modo envolveram a manipulação por outras pessoas”, alerta Dr. Machado.

 

Segundo o Coordenador-Geral do Observatório Covid-19, uma ida ao cinema oferece mais riscos que um passeio pelo shopping devido ao tempo de exposição em local fechado – poucos são os filmes com menos de duas horas de duração, isto sem contar anúncios e trailers. Considerando as devidas diferenças, se um tripulante ou passageiro de avião testar positivo após a viagem, o mesmo deverá informar à companhia aérea ou às autoridades locais para que outros passageiros e membros da tripulação sejam avisados. No entanto, este controle se torna ainda mais difícil, por que não dizer, quase impossível, se transportado para o cenário das salas de exibição, pois envolve várias questões. Até mesmo trotes. De acordo com o Dr. Carlos Machado à coluna, “esta parece ser uma logística bastante complexa para os cinemas e as pessoas que serão avisadas. Se isto passar a ser feito, o mais importante é que as autoridades sanitárias assumam esta função, pois corremos o risco de anúncios falsos como trotes ou mesmo de pessoas com exames falso-positivos. Por isto, qualquer medida desta deve ser feita pelas autoridades sanitárias”.

 

Receio em relação ao futuro do modelo tradicional de cinema

 

A reabertura das salas neste momento provavelmente se deve não apenas ao prejuízo financeiro dos últimos meses, mas ao receio em relação ao futuro, sobretudo com a popularização dos serviços de streaming e à ameaça dos lançamentos em PVOD, potencializada tanto pelo medo de contágio pelo novo coronavírus por uma parcela dos espectadores quanto pela decisão da Universal Pictures em disponibilizar “Trolls 2” (Trolls World Tour – 2020) para aluguel em plataforma digital antes de sua estreia no circuito exibidor americano. A atitude do estúdio abriu caminho para a concorrência, pois a Warner Bros. e a The Walt Disney Company seguiram seus passos, lançando os aguardados “SCOOBY! O Filme” (Scoob! – 2020) e “Mulan” (Idem – 2020), respectivamente, em PVOD – “Mulan” entrará em cartaz nos países nos quais a Disney+ ainda não está disponível.

 

“Trolls 2” deve chegar aos cinemas brasileiros em 08 de outubro (Foto: Divulgação).

 

Criticada pelos exibidores, a Universal Pictures surpreendeu ao fechar negócio com a AMC Theatres, maior rede de cinema do mundo, no final de julho. Com problemas financeiros, a AMC, que havia ameaçado não exibir nenhum título do estúdio em suas salas, voltou atrás e aceitou a diminuição da janela de exibição tradicional, que prevê o intervalo de 70 a 90 dias entre a estreia no circuito e a disponibilização em plataformas digitais e VOD. Assim, filmes produzidos e/ou distribuídos pela Universal poderão ser oferecidos em PVOD após 17 dias, poupando o período que engloba os três primeiros finais de semana, os mais lucrativos segundo estúdios, distribuidores e exibidores. Contudo, a AMC receberá 10% do lucro do aluguel de cada um deles, de acordo com o The Hollywood Reporter. Outrora crítica ferrenha ao PVOD, a AMC pretende fechar acordos similares com outros estúdios, mas lucrando 20% do aluguel e anuidade de cerca de US$ 2 milhões referentes à publicidade, além de pagar a eles menos 2% da receita dos títulos exibidos em suas salas, segundo a Variety.

 

Recebida com ceticismo pela indústria, a diminuição da janela poderá ser maléfica a longo prazo, sobretudo no que tange à manutenção do modelo tradicional de cinema, calcado na experiência cinematográfica proporcionada pelas salas enquanto espaços de socialização que permitem ao espectador maior imersão na trama apresentada na tela grande, algo fortalecido pelo investimento em novas tecnologias tanto pelas redes exibidoras quanto pelos estúdios. Num efeito dominó, haverá a redução do lucro necessário para manter as engrenagens da indústria funcionando em sua totalidade, o que colocará em risco diversos empregos, inclusive os poupados durante a atual crise econômica. Por esta razão, é urgente a necessidade de ponderação por ambos os lados.

 

E ponderação parece ser a palavra-chave do momento, pois há de se colocar os prós e os contras da reabertura das salas de exibição na balança, principalmente por parte do público, pois os cuidados também precisam ser tomados em prol do próximo. A missão de retomada de atividades culturais em locais fechados é árdua, mas não impossível. Porém, precisa ter início após a liberação da vacina ou, ao menos, quando o risco de contágio não for elevado, uma vez que não há medicação específica para o combate à Covid-19. “O momento mais seguro para o retorno das atividades é quando tivermos uma queda efetivamente acentuada do número de casos e óbitos nas últimas duas ou três semanas. Mas para isto, teríamos de ter dados atualizados, o que é fundamental, mas nem sempre ocorre”, afirma o Coordenador-Geral do Observatório Covid-19 da Fiocruz.

 

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*Foto da chamada: Freepik <a href=”https://br.freepik.com/vetores/pessoas”>Pessoas vetor criado por freepik – br.freepik.com</a>

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