Já está em cartaz – e concorrendo a vários Oscars – o filme que pode entrar para a história como o primeiro trabalho icônico- representativo da nada promissora era Trump recém-iniciada. A afirmação pode parecer contraditória, já que o marketing do longa parece tentar vendê-lo como uma obra pacifista, glorificando um soldado que se recusa a atirar. Porém, uma segunda análise verifica que “Até o Último Homem” é uma glorificação do ato bélico em si, colocando novamente os Estados Unidos – claro – como o legítimo representante da ordem mundial, mesmo que para isso sejam necessárias as maiores atrocidades.
Quem não viu o filme não deve continuar esta leitura, pois o texto trará spoilers. “Até o Último Homem” parece tentar construir uma premissa de paz, ao desenhar, partindo de um personagem real, um rapaz (Doss) que se alista no exército, durante a 2ª Guerra, mas se recusa tanto a pegar em armas, como a trabalhar aos sábados, posto que ele é Adventista do Sétimo Dia. O filme se desenvolve a partir da dicotomia deste jovem que acredita na ideia que lhe vendem de “defesa da democracia”, alista-se por vontade própria (inclusive contrariando seu pai), vai ao campo de batalha, mas não se permite dar tiros. Doss vive, digamos literalmente, entre a cruz a espada. Sua fé é herança da mãe, que lhe proporcionou educação católica rígida, enquanto seu patriotismo, assim como o de milhares de jovens de sua época, é adquirido através dos conhecidos processos de lavagem cerebral da propaganda de guerra norte-americana. Ele chega a citar o caso de dois rapazes de sua cidade que, rejeitados pelo serviço militar, foram tomados de tamanha vergonha que se suicidaram. Pode-se dizer que o cérebro “não muito esperto” de Doss (isso é citado algumas vezes durante o filme) foi terreno fértil para as influências religiosas e patrióticas do rapaz.
É interessante perceber que ele rejeita frontalmente a influência do pai, um homem contrário à Guerra, e perturbado exatamente pelas perdas e traumas sofridas durante o primeiro conflito mundial, no qual lutou. Com as vistas turvadas pelo excesso de religiosidade e de patriotismo, Doss vê no pai apenas um alcoólatra violento, não alcançando a dimensão que foi justamente uma guerra que o tornou assim. Uma guerra que agora ele próprio quer lutar, e acredita ser covarde quem não o faz.
Enquanto “Até o Último Homem” desenvolve esta dualidade e o estranhamento que isto causa nos meios militares, o filme prossegue razoavelmente. O grande problema, porém, é sua parte final, quando o sentimento religioso de Doss, que parece sincero ao protagonista, é manipulado pelos seus superiores para que se transforme em motivação bélica aos demais soldados. O rapaz abre mão daquilo que acreditava fielmente, aceita “trabalhar” num sábado, e faz desta concessão uma espécie de arma divina, amplamente validada pelo filme. Em outras palavras, o roteiro mostra que, agora, Deus entra no campo de batalha, evidentemente ao lado dos estadunidenses, validando ainda mais a matança.
Nem é preciso dizer que, mais uma vez, os japoneses são retratados como animais ferozes, cruéis, sanguinários, irracionais, bestializados, sem diretito a rostos ou identidades, como sempre acontece com qualquer povo que os norte-americanos desejam desqualificar. Como convém à política Trump, há outras nacionalidades e minorias tratadas negativamente na trama, além dos japoneses, casos do italiano (sempre baixinho e com ar perdido) e do polonês, que o sargento “decide” ser parecido com um chefe indígena e, como tal, também merece menosprezo. Tanto por ser polonês, como por parecer índio. Em relação aos negros, o filme se supera: não há, rigorosamente, nenhum. Foram convenientemente varridos da História.
A propaganda bélico-racista-patriótca de “Até o Último Homem” se completa ao glamurizar e espetacularizar as cenas de batalha, profícuas em sanguinolência, maneirismos cinematográficos, malabarismos macabros e entranhas explícitas.
Além do que, o título original do filme, “Hacksaw Ridge”, diz respeito a uma serra, uma enorme encosta a ser transposta, um verdadeiro muro natural. E de muro Trump entende.
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