Com Carolina de Jesus, Colorado do Brás faz crítica social no Anhembi

Desfile 2022 da Colorado do Brás. Foto: Cesar R. Santos/SRzd

Desfile 2022 da Colorado do Brás. Foto: Cesar R. Santos/SRzd

Décima segunda colocada em 2020, a Colorado do Brás foi a segunda agremiação a desfilar na noite desta sexta-feira (22), no Sambódromo do Anhembi.

+ Vídeo: largada do desfile da Colorado do Brás

Em busca do seu primeiro título no Grupo Especial, a vermelha e branca apresentou o enredo “Carolina – A Cinderela Negra do Canindé”, do carnavalesco André Machado.

A escritora Carolina Maria de Jesus nasceu em 1914, na cidade de Sacramento (MG) e morreu em 1977, na cidade de São Paulo. Ela é considerada umas das primeiras escritoras negras do país. Trabalhou boa parte de sua vida como catadora de papel e morava na favela do Canindé, na Zona Norte da capital paulista, próximo onde a Colorado realiza os seus ensaios.

A apresentação foi embalada pelo samba-enredo composto por Thiago Sukata, Turko, Rafa do Cavaco, Claudio Mattos, Maradona, Valêncio, Luan e Thiago Meiners. A interpretação ficou a cargo de Chitão Martins.

A agremiação terminou seu desfile com 1 hora e 4 minutos.

Assista a análise do desfile da Colorado do Brás

Confira as entrevistas na dispersão do Anhembi

Galeria de fotos

Ficha técnica

Presidente
Antônio Carlos Borges (Ka)

Carnavalescos
André Machado

Direção de Carnaval
Karyn Fernandez e Jairo Roizen

Direção de harmonia
Diego Zulão e João Daniel Alves Ferreira

Intérprete
Chitão Martins

Coreógrafo de comissão de frente
Kelson Barros

1º casal de MSPB
Ruhanan Pontes e Ana Paula

Mestre de bateria
Allan Meira

Rainha de bateria
Maísa Magalhães

Enredo

“Carolina — A Cinderela Negra do Canindé”

Chegou o carnaval!
De Colorado me enfeitei
Para a grande noite.
Escolhi o vestido mais bonito,
Rodado e Colorido,
Bordado de estrelas e estórias.
Nos pés, sapatos de cristal,
Refletindo minhas andanças;
Na cabeça, além do adorno tradicional,
Há borboletas de memórias,
Que fiz questão de colocar no papel.

Eu sou Carolina Maria de Jesus –
Nua e crua, escritora de nascença,
Negra e poetiza da vida.
Calei-me para o sofrimento,
Gritei mais alto que pude
Para o destino que eu escolhi.
Eu sou a filha de Dona Cota,
Do “Quilombo do Patrimônio”,
Menina Bitita,
Da pequena cidade de Sacramento;
Sonhadora e curiosa,
Chamada por muito de “perguntadeira”,
Que mesmo vivendo sem eira e nem beira,
Desde pequena, já lia de um tudo
E fugindo da realidade do mundo,
Ao ler “A Escrava Isaura”,
Pela Literatura me encantei.

Já carpi roçado na aurora,
Enxada nas mãos calejadas,
De sol a sol, o ano inteiro.
E, descontente com a lida, poema escrevi,
“O colono e o fazendeiro.”

Fui jovem avoada, não parava em serviço.
Em meio aos reboliços, muito vexame passei
– Valha-me São Cipriano!
Caluniada, “Carolina do diabo”,
Até cadeia peguei.

Mas nunca emudeci, forte fiquei
E as feridas que em minhas pernas ardiam
Não foram capazes de cessar o meu caminhar,
Pois meu sonho era maior que a dor –
Ainda tinha o mundo para conquistar

Foi então que, em mim, a vontade de partir
Abriu-se feito o nascimento de uma libélula
E, encorajada pela ação do tempo,
Tomada pela forte intuição do vento,
Me deixei levar.

Então, em São Paulo,
Na Estação da Luz cheguei.
A visão pueril que eu fazia desta cidade
Logo foi apagada pela dura realidade
Que aqui enfrentei.

Na via-crúcis de cortiços fétidos,
Largada nas marquises dos viadutos,
Pelas ruas, sob o sereno das noites frias,
Vivendo tal qual uma mendiga, mas
Ainda assim, com o peito cheio de esperança.

Como uma “Gata Borralheira” fui à luta
Queimando feijão em casa de madame.
Embora muitas vezes abatida pela fome,
A cozinha nunca foi meu lugar predileto;
Nas mansões, eu era dada às bibliotecas –
Como a do Dr. Zerbini, “o mago do coração”
– Onde eu podia me alimentar de letras,
Divagando sem notar o passar das horas.

Como doméstica escrevia bastante…
Não tanto como eu queria, obstante,
Dada a correria que a labuta exigia.
E meu excesso de imaginação, quem diria?!
Me entristecia ao esperar,
As migalhas de reconhecimento
E a atenção que não vinham,
Nem todo mundo queria ouvir a poetisa:
Mulher preta e pobre não tinha vez não;
Era transparente por ocasião.

Vida sofrida, sem tento e nem comida,
Fui parar no Canindé – que desilusão!
No “Quarto de Despejo” da cidade

Lugar sem dignidade, feio de se ver
Às margens do rio onde se lavava roupas,
O famoso Tietê!

Da Igreja de Nossa Senhora do Brasil
Fiz meu pequeno casebre de ripas
De onde podia se ver a chuva,
O sol ou a lua, por toda sorte de vão.
E naquele barraco úmido e ambiente vil,
Principiei-me no cargo de mãe solteira,
Pelas fofoqueiras, mulher de má reputação –
Que judiação! Outrora perdi um filho,
Contudo, os que vieram depois nasceram sãos.
Primeiro vingou João José,
Que logo ganhou José Carlos de irmão;
Por último, a menina Vera Eunice,
Pra dividir a dor e o pão.

Foram tempos difíceis que vivi:
Pelas ruas catando xepa, lixo e papelão
Numa batalha diária pela sobrevivência,
Encarando doença e até humilhação.
Para dar o mínimo para meus filhos
Nunca tive escolha e nem opção;
Pois a fome sentida na favela
Tinha cor e era amarela,
Triste fonte de inspiração
Da sucursal do inferno,
Que coloquei no meu diário

Feito com folhas de caderno vagabundo,
Que eu encontrava perdidas no mundo,
Ao me agachar pelo chão.

Detalhei personagens ordinários:
Mulheres escandalosas, submissas,
Valentões, pinguços fazendo arruaças,
Zombando da própria desgraça,
Parindo e vivendo famintos como ratos,
Naquele gabinete do diabo.

Eu tinha pena dos meus filhos,
Convivendo com aqueles cidadãos,
À margem da sociedade,
Na boca de cena daquele teatro sujo,
Que me fazia sentir nojo de tudo,
Como objeto fora de uso,
Digno de um quarto de despejo.

O centro da cidade era diferente,
Vendo o conforto daquela gente,
Meus devaneios me levavam
Para a sala de visitas de um grande palácio,
Com seus lustres cristalinos,
Seus tapetes de veludo fino
E almofadas de cetim.

A favela não era lugar pra mim.
Não se via jardins tampouco sala de jantar.

Mesmo acordada, sonhava em sair de lá,
Mas a realidade cruel insistia impedir:
Afinal de contas…
Não nasci homem, nem branco;
Não tive berço de ouro, garanto,
Teria que labutar duas vezes mais
Para um teto melhor conquistar.

Então,
Trabalhei feito burro de carga,
Sofri preconceito e fome,
Criando sozinha meus filhos
Com meu sobrenome – Jesus,
Que de tanto ouvir minhas preces,
Como num conto de fadas,
Enviou-me uma espécie de fada madrinha,
Que não foi à favela fazer mágica,
Transformar ratos em cavalos;
Tampouco moranga em carruagem;
Foi lá fazer apenas uma reportagem
E me encontrou.

Audálio Dantas era seu nome,
Repórter do popular e renomado
Jornal “Folha da noite”.
Um jornalista visionário,
Que ao se interessar pelo meu diário,
Em formato de livro, o publicou.
E de repente, de um dia para outro

Eu, que era a escritora improvável da favela
Do Canindé, me tornei a “Cinderela”,
Ingressando no baile mais aguardado.

Paradoxalmente,
Mesmo recebida com pompas de fidalguia,
Lembrada era, pelo lugar de onde eu vim,
Sendo a autora de um best-seller,
A mais concorrida e comentada,
Defensora de Getúlio Vargas,
A “língua de fogo” das mazelas sociais;
Ainda assim, a favelada,
Aplaudida e apedrejada pela miséria, enfim.

Entretanto, não me deixei abater –
Sob os olhos da inveja e da soberba
Dancei a valsa do sucesso pra valer,
E sem perder o compasso,
Rodopiei pelo mundo em outras línguas;
Banho de loja tomei;
Deixei de viver às minguas
E numa “Casa de alvenaria”
Com as crianças entrei.

Estampei capas de jornais do momento
Ao lado de artistas de muito talento
Que queriam, na verdade, de perto ver
A catadora de papelão que “enriqueceu”,
A “Mãe Preta” dos negros e ex-favelada

Reverenciada no rádio, teatro e TV,
Até em filme alemão fui aparecer,
Me agarrando às oportunidades que surgiam.

Ganhei o título de “Cidadã Paulistana”,
Marquei presença vip em concursos de beleza
E nos encontros com mestres da literatura –
Que a essa altura, na maior gentileza –
Faziam questão de me cumprimentar.

Nessa época, extasiada, me arrisquei a cantar
Para realizar o meu desejo, sem me importar,
Com o que iriam dizer e até criticar.
As minhas composições vindas de lampejo –
A Vedete da favela, O Malandro, entre outras,
Autorais do LP “Quarto de despejo”,
Que com a minha inconfundível voz fina
Fiz questão de lançar.

Se antes da fama não era lembrada,
Passei a ser a notícia derradeira,
Aquela que mais vende jornal.
Com meu cartaz de grã-fina,
Que a imprensa adorava noticiar,
Vieram também as aves de rapina,
Querendo tirar proveito do que ganhei,
E eu, comprando mais do que precisando,
Doando, emprestando e não cobrando,
Ingênua, com pouco dinheiro fiquei.

E minha vida mudou novamente,
De repente, peguei as crianças e fui embora.
Recomeçar em Parelheiros.
Havia chegado a hora
De me reencontrar com Bitita,
A menina sonhadora que um dia eu fui.
E assim, voltar a plantar e a colher,
E com tranquilidade escrever –
O que há tempos não fazia mais;
E lá viver em paz, até o fim.

Hoje estou orgulhosa
Vendo a menina Vera calçar lindos sapatos,
Enfeitados de conhecimento,
Num país que não se importa com o talento,
Que não incentiva a cultura,
Tampouco a literatura.
Caminhos que percorri,
Com persistência e vitória
E, relembrando cada momento que vivi,
Representados de forma notória,
Nessa festa sem igual,
Me sinto feliz!

Vejo que o pé do sapato que faltava,
Nessa analogia de Cinderela,
Esquecido na escadaria da história,
A Colorado do Brás traz agora:
O reconhecimento do povo –

Algo mais valioso
Que alguém pode ganhar!

E, se esse foi o meu fim,
Você que se pôs a ler certo
Pelas linhas tortas da minha vida,
Deve estar se perguntando nesse instante:
Como isso é possível?
É que sempre estarei viva no coração
De quem acredita, assim como eu
E outras tantas Carolinas,
Mulheres negras, mães solteiras
Faveladas e periféricas…
Na força motriz que me trouxe até aqui
E que sirva como um grito de alforria
– Coragem!

Carolina de Jesus. Foto: Reprodução/YouTube

Prêmio SRzd Carnaval SP 2022

Pelo décimo ano consecutivo, os destaques dos desfiles das escolas de samba da cidade de São Paulo receberão troféu exclusivo, oferecido pelo portal SRzd.

Voto popular, imprensa especializada e análise da equipe SRzd, que acompanha os bastidores das escolas de samba durante todo o ano; a somatória destes três levantamentos vai determinar o resultado do Prêmio SRzd Carnaval SP 2022, ação que valoriza a cultura do samba na capital paulista e seus protagonistas. Em caso de empate, prevalece sempre o voto dos profissionais do SRzd.

A votação popular, que estará disponível através de enquete na página da editoria do Carnaval de São Paulo no SRzd, será aberta no domingo (24). O resultado será divulgado na terça-feira (26). Clique aqui e conheça todas as categorias.

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AGaivotinha. Foto: Divulgação

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