Uma alegria infernal: a sinuca de bico do Carnaval carioca

Plenária da Liesa (14 de julho de 2020). Foto: Jonathan Maciel

Um apresentador de TV muito popular, diariamente no ar mostrando os casos policiais, especialmente de São Paulo, vocifera constantemente que já se sabia no Brasil da existência do coronavírus em janeiro, portanto antes do Carnaval, e que a festa popular não foi cancelada, irresponsavelmente na opinião dele, por falta de iniciativa das autoridades brasileiras. Ele tenta, claramente, associar a maior festa popular do país a chegada e avanço da doença em nosso território por causa das multidões reunidas e por causa da grande presença de turistas, especialmente da Europa, nas cidades de maior folia. Em última forma, ele pode até ter alguma razão, mas, certamente, nem ele, nem ninguém, tinha a exata noção da velocidade de contágio da Covid-19 naquele instante. Era uma realidade bem distante para todos nós. Ademais e de modo especial, o Carnaval 2020 foi marcado pela catarse ante uma realidade coletiva brasileira que vinha oprimindo mentes e corpos diante de longa e severa crise, política e econômica. Foi uma alegria infernal. Portanto, é no mínimo forçoso tentar imputar alguma responsabilidade ao Carnaval na chegada e no avanço da doença no Brasil.

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Passados os dias de folia, a volta à realidade foi ainda mais traumática. As crises política e econômica se aprofundaram e o coronavírus assumiu o protagonismo da cena de Dante que é o Brasil. Estamos vivendo o inferno e o purgatório no nosso ‘paraíso de beleza natural’. Neste cenário, inúmeros debates estão sendo enfrentados e os brasileiros estão revisitando suas posturas, seus comportamentos, suas práticas e suas decisões. Um dos debates atinge em cheio o modelo de gestão do Carnaval, principalmente das escolas de samba do Rio de Janeiro, segmento que já vinha sofrendo fortes questionamentos desde os fatídicos acidentes na Sapucaí durante os desfiles de 2017. Apesar do sucesso de público e de audiência na TV do Carnaval 2020, pelos motivos já aqui mencionados, fato é que as agremiações entraram naquela pista de apresentações só Deus sabe como, e saíram dela ainda mais precarizadas, tamanho volume de dívidas e interrogações.

Desfile da Viradouro de 2020; escola foi a campeã do Carnaval. Foto: Riotur

As crises financeira, política e sanitária e, principalmente, a desconfiança geral na capacidade das autoridades locais e da classe dirigente das escolas de samba em sair de uma ‘sinuca de bico’ tão grande, estão pondo sob ameaça a realização dos desfiles de 2021. São diversas faces de uma mesma questão que precisarão ser observadas antes da decisão capital. O impacto econômico do principal ativo de visibilidade do Rio de Janeiro, talvez o único que restou; a grande capacidade de geração de empregos deste segmento; o impacto na rede hoteleira; os bares e restaurantes; os ambulantes que fazem recursos que garantem a sobrevivência ao longo de todo o ano; e, finalmente, a última alegria legítima da população pobre da periferia, que tem nas escolas de samba a única válvula de escape para tanta pressão acumulada anualmente, são questões que estarão sobre a mesa. Talvez esse povo não consiga suportar a vida dura sem essa alegria celestial para extravasar. Mas nenhum desses aspectos será relevante se não houver uma vacina contra o coronavírus. Não há nem como imaginar uma Avenida Marquês de Sapucaí lotada, reunindo quase 100 mil pessoas por noite, aglomeradas em arquibancadas e camarotes, vendo pessoas perigosamente juntadas em alas desfilantes. Trata-se de uma grande ‘sinuca de bico’ que dá um xeque mate no sambista mais otimista.

Muitos, tentando manter algum grau de otimismo, falam em Carnaval em maio, junho ou até mesmo em setembro de 2021, outros falam em 2022. Caso isso aconteça, só nos restará uma conclusão: a folia pós-pandemia será uma alegria infernal ainda maior. Será o deságue, o desbunde, o Clóvis Bornay da libertação, a alma quase fora do corpo, uma explosão de alegria jamais vista. Será muito maior que a alegria do Carnaval de 1919, quando os cariocas sobreviventes que venceram a gripe espanhola foram para as ruas celebrar a vida. Foi uma alegria tão incontida que fez surgir as escolas de samba. Foi quando o Rancho Carnavalesco Deixa Falar, fundado no ano anterior do surgimento da ‘espanhola’, ganhou força e foi rebatizado por Ismael Silva com o substantivo ‘escola de samba’, hoje com o nome de G.R.E.S. Estácio de Sá. Nos anos seguintes surgiram a Portela, em 1923, e a Mangueira, em 1928. Essa fuzarca descomunal e suas consequências estão registradas em belíssimas obras dos escritores Nélson Rodrigues e Ruy Castro que retratam o Carnaval de 1919.

A grande esperança da humanidade nesses dias de pandemia é estancar a perda de vidas em escala industrial, encontrar a vacina e recuperar o que foi destruído pelo coronavírus. Já o sambista do Rio, além dessas, tem mais uma esperança; a refundação do Carnaval carioca. A decisão do que serão os próximos carnavais no Rio de Janeiro está nas mãos dos 12 presidentes do Grupo Especial das escolas de samba da cidade. A reunião desta terça-feira (14), na sede da Liesa, no Centro, foi apenas a primeira de outras que virão. Até setembro, será aberta a porta do ‘novo normal’ das agremiações cariocas, que poderão viver realizadas completamente diferentes a partir de então. Pelo menos é o que se espera… ou não!

Marcella e Sidclei no ‘Salgueiro Convida’ 2018. Foto: Alex Nunes/Divulgação










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