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Protagonismo negro no Carnaval: cinco sambas essenciais que passaram pela Avenida

Desfile Mangueira 2020. Foto: Henrique Matos

Desfile Mangueira 2020. Foto: Henrique Matos

O brutal assassinato de George Floyd, por um policial, em Minneapolis, Estados Unidos, desencadeou uma série de protestos mundo afora. As redes sociais foram inundadas por mensagens de apoio ao movimento antirracista, com adesão de personalidades do esporte e das artes. “Black lives matter” (Vidas negras importam). Recentemente, uma aluna angola foi humilhada, ridicularizada por alunos, brancos, evidente, de um colégio da Zona Sul do Rio de Janeiro, o que foi merecidamente, e amplamente, divulgado pelos meios de comunicação em geral. Para quem não fecha os olhos, faz vista grossa, o racismo está exposto, escancarado e nenhuma medida efetiva, mais rígida contra os agressores, é posta em prática. Não que percebamos. É necessário, sim, a cobrança por uma legislação mais dura, e que seja cumprida, para que o racismo seja coibido. Claro que quem é racista, traz consigo o ódio no coração, não vai deixar de ter esse sentimento de um momento para o outro. Talvez leve reencarnações, novas vidas para entender que a cor de pele não é fator para tornar alguém melhor ou pior do que ninguém, que o fato de você ser branco não o torna um “ser superior” a outro, mas, pelo menos nessa vida, que guardem toda raiva, ódio consigo. Que percebam que é sim intolerável qualquer manifestação racista. Somos iguais, seres humanos, nosso sangue tem a mesma cor, vermelho (não azul), queiram aceitar ou não.

As escolas de samba do Rio de Janeiro são mananciais de exaltação ao negro e à sua cultura, sendo representadas inúmeras vezes na Avenida, polo difusor de resistência contra arbitrariedades, covardias, desmandos, posicionando-se várias vezes contra o racismo, reafirmando o papel do negro na sociedade, ativo, cobrando seus direitos, sem dever nada a ninguém, bem como denunciando atos racistas ou arbitrários. Lembrarei cinco sambas-de-enredo de temática negra fundamentais na história do carnaval carioca:

“Quilombo dos Palmares” (Salgueiro 1960)

“Surgiu nessa história um protetor/Zumbi, o divino imperador/Resistiu com seus guerreiros em sua Troia/Muitos anos ao furor dos opressores/Ao qual os negros refugiados/Rendiam respeito e louvor” (Anescarzinho/Noel Rosa de Oliveira)

Se hoje perdemos a conta de quantos enredos afro, de temática negra, foram para a Avenida, a pedra fundamental foi lançada em 1960, nos Acadêmicos do Salgueiro, graças ao “Pai de Todos”, Fernando Pamplona, que impôs o enredo “Quilombo dos Palmares” em um tempo que era regra, praticamente, exaltar “heróis de capa e espada”, fatos da história contada nos livros de escola. Pela primeira vez o negro, sua história, seu martírio seria contado na Avenida. Era o início da “Revolução Salgueirense”, que mudaria para todo sempre a temática do carnaval carioca.

“Kizomba, a festa da raça” (Unidos de Vila Isabel 1988)

“Valeu, Zumbi/O grito forte dos Palmares/Que correu terras, céus e mares/Influenciando a abolição… O sacerdote ergue a taça/Convocando toda a massa/Nesse evento que congraça/Gente de todas as raças/Numas mesma emoção/Essa Kizomba é nossa constituição” (Luiz Carlos da Vila/Rodolpho/Jonas)

Em 1988 foi celebrado o centenário da abolição da escravatura no Brasil. Diversas escolas optaram por enredos de temática negra, dos mais variados tipos. A Unidos de Vila Isabel, por sugestão de Martinho da Vila, levou para a Avenida “Kizomba, a festa da raça”, influenciado por um evento que organizara, anos antes, chamado “Kizomba – Encontros Internacionais de Arte Negra”, o que o motivou a fazer um carnaval sem luxo, com farta utilização de materiais baratos e alternativos, já que a Vila nem quadra tinha (“Nossa sede é nossa sede…”). Em sua letra, os compositores levam o negro a pensar no seu lugar na sociedade brasileira, dizendo que o negro tem a força da bravura, tem a arte e é cultura, que tem que fazer valer seus ideais”. A Kizomba (Encontro de identidades, festa de confraternização) da Vila Isabel convocava todas as raças para se irmanar nessa celebração.

“Cem anos de liberdade, realidade ou ilusão? “ (Mangueira 1988)

“Será que já raiou a liberdade/Ou se foi tudo ilusão? / Será que a Lei Áurea tão sonhada/Há tanto tempo assinada/Não foi o fim da escravidão?… Pergunte ao Criador/Quem pintou essa aquarela/Livre do açoite da senzala/Preso na miséria da favela” (Hélio Turco/Jurandir/Alvinho)

A Estação Primeira de Mangueira, no ano em que foi celebrado o centenário da assinatura da Lei Áurea, resolveu questionar se, de fato, o negro estava livre, se a liberdade ansiada havia chegado de fato, mesmo cem anos depois. Se o negro estava livre do açoite da senzala, a sua realidade atual era a miséria da favela. O belíssimo samba-enredo, para mim, um dos dez mais da história do carnaval, questionava o papel do negro na sociedade, já que lembrava que, se o negro também construiu as riquezas brasileiras, não tinha acesso ao básico, como educação, saúde e uma moradia digna. Para pôr fim às desigualdades, para fazer enfim justiça aos negros, a verde e rosa sonhava com a volta de Zumbi dos Palmares, trazendo consigo uma nova redenção.

“Águas claras para um rei negro” (Grande Rio 1992)

“Todo mundo quer saber/Da real libertação/Do anseio de um povo/De nascer um Brasil novo/Livre dessa servidão/Será que quem traçou nossos caminhos/Deixou outro pergaminho/Pra nova libertação” (G.Martins/Adão Conceição/Barbeirinho/Queiroz e Nilson Kanema)

Desconhecido de muita gente, “Águas claras para um rei negro” é uma pérola do gênero samba-enredo, sem dever favor algum, um dos maiores sambas da história. Lucas Pinto e Sônia Regina, os carnavalescos, diziam, na sinopse, que o objetivo de seu enredo era despertar, em cada indivíduo, o patriotismo existente em cada cidadão, que ama sua terra e espera dela o melhor para si e para seu semelhante. Conclamavam a raça negra para, após anos de libertação de uma raça, do domínio de “senhores e capatazes invisíveis e indivisíveis”, numa grande festa de sagração a Oxalá, numa verdadeira procissão do samba, que sejam cobertos de força para que, não apenas sobrevivam, mas se imponham como seres humanos, como nação, livrando-os dos grilhões que os mantém atados a um “pelourinho de atos sórdidos, explorações e interesses pessoais”. “Águas claras para um rei negro é o grito de uma revolução atado à garganta desse povo”, finalizava a sinopse. Em uma das passagens mais marcantes do samba, o questionamento se Deus, que traçou nossos caminhos, havia deixado outro pergaminho para que o negro seja, de fato, liberto.

“A verdade vos fará livre” (Mangueira 2020)

“Eu sou da Estação Primeira de Nazaré/Rosto negro, sangue índio, corpo de mulher/Moleque Pelintra no Buraco Quente/Seu nome é Jesus da Gente…” (Luiz Carlos Máximo e Manu da Cuíca)

Como seria se Jesus Cristo voltasse nos dias de hoje, no contexto de violência, intolerância, perseguição e preconceito? Na visão do carnavalesco, Leandro Vieira, ele seria o Jesus da Gente, nascido na Mangueira, com rosto negro, sangue índio e corpo de mulher. Ele é homem, é mulher, negro, índio e pode ter qualquer religião. Jesus nasceria miserável, em uma favela, vivendo ao lado dos oprimidos, dando-lhes proteção. Ao ver sua imagem no Cristo Redentor, me cordéis, questionava se haviam entendido, de fato, sua mensagem. Em vez de pendurado em uma cruz, Jesus da Gente seria fuzilado pelos “profetas da intolerância”, aqueles que pregam a violência. Após a sua morte, Jesus ressuscitaria no carnaval, na Mangueira, quarando tambor, fazendo um adereço com sua cruz, confraternizando com seu povo.

Sobre o autor

Natural de Padre Miguel, Jorge Renato Ramos é pesquisador, bacharel em Letras/Francês (UFRJ/UERJ) e autor da série de livros “Apoteótico: os maiores Carnavais de todos os tempos”.

 

 










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