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Os Bezerros de Ouro do Samba

Já saíram os enredos, já saíram os sambas-enredo. Está quase na hora de sair o carnaval.

Já foi mais fácil, ou menos necessário um espírito crítico arguto e aguçado, para se comentar sobre os preparativos e a ordem da festa. Os enredos, outrora primando pela poética, pelas riquezas naturais (sim, boa parte dos chamados “enredos-CEP” sempre enalteceram a beleza de nossas plagas) ou por homenagens a figuras do cenário artístico nacional, prevaleceram durante muitos anos e envolveram a avenida com sonhos e delírios, carnavalizando a vida e o belo sem cores, conotação ou viés politico.

O enredo da Beija-flor em 2015 sobre a Guiné Equatorial voltou a abrir a discussão sobre a mescla entre politica e samba, polemizada pelos meios de comunicação que divulgaram um incremento de 10 milhões de patrocÍnio à escola (valores sobre os quais não se tem confirmação, mas que foram divulgados na grande mídia) cedidos por um ditador cruel e usurpador de um país africano onde uma elite vive privilégios e uma maioria passa necessidade, tendo o enredo ilustrado um recorte bem diferente da realidade do lugar. E ainda se sagrando campeão daquele carnaval. A fortuna acumulada do ditador Teodoro Obiang Nguema Mbasogo, artífice de uma ferrenha opressão governamental na Guiné Equatorial que há 39 anos esmaga negros como ele dentro de seu país, passou em brancas nuvens pelas “pupilas dos senhores reitores do samba”, como se nada disso devesse ser levado em conta na hora do fomento à festa. Assim também aconteceu com governos recentes e alianças escusas entre poderes instituídos do samba e mandatários do estado e da cidade em carnavais recentes.

Até que vieram os cortes de verba, os choques de realidade e o boicote de políticos recém-eleitos atingindo em cheio a subvenção aos desfiles. O sambódromo e as escolas sofreram combates e se viram prejudicados. E, sintomaticamente, as pautas políticas e de engajamento reapareceram nos enredos.

O escuso circuito de alianças entre os poderes instituídos e as escolas de samba está presente no carnaval desde 1932, ano em que uma elite branca “comprou” a cultura segregada e marginalizada das escolas de samba e criou os desfiles oficiais. Muito embora se tenha enorme apreço pelos desfiles e pela competição, é necessário que se admita: os desfiles nasceram organizados e promovidos financeiramente por poderes brancos e elitizados que antes, em 1888, alforriaram os negros e os jogaram ao relento sem nenhuma possibilidade de acesso econômico ou ascensão social. Durante mais de 30 anos perseguiram, combateram e prenderam os negros sambistas como “vadios”, “vagabundos” e “transgressores”. Bateram nos negros cuspidos nas ruas de 1888 a 1931 para, em 1932, se apoderarem de sua cultura de resistência, de sua organização espaço-territorial e transformar essa expressão cultural em espetáculo, disputa,dependente de um investimento que evidentemente só os senhores do dinheiro (brancos) poderiam assegurar. Dali pra diante, as escolas passaram a mais do que depender de poderes instituídos: a bajular, se subordinar e cortejar nomes hediondos de dentro e de fora de seus territórios para assegurarem sua sobrevivência. Nos anos 70, o compositor Candeia foi o primeiro a denunciar a sombra desses males e abandonar o carnaval oficial pra fundar o Quilombo, tentando resgatar alguma pureza em meio ao que seria apenas uma sombra da dominação que estamos vendo agora!

A gente chega a 2020 achando que a perseguição politica, que a guerra com o prefeito e que a crise moral e ética das ligas de escolas de samba são apenas “contingência”. Não são! Fazem parte de uma estrutura formalizada e consolidada em quase 90 anos, e a sombra dos enredos que em tese combatem a violência e a opulência dos poderes oficiais contra o nosso povo é vergonhosamente consentida por enredos que criticam políticos do país, mas jamais criticaram, em tempo algum, seus algozes internos, seus coronéis territoriais, seus mandatários das quadras. Como se fossem orixás brancos do samba, os poderosos das escolas seguem reverenciados e protegidos pela vista grossa dos enredos, dos componentes e dos sambistas de uma cadeia produtiva que ensaia discursos políticos engajados e militâncias nos desfiles, mas que, na verdade, se sujeita e sustenta privilégios de seus próprios reis dentro dos redutos de samba! Basta pagar bem que tudo se silencia!

Não há como considerar o protesto das alegorias banhadas de sangue cenográfico se já tivemos a avenida banhada de sangue verdadeiro, na cara de todo mundo, sem explicação e sem cobranças posteriores…e sem nenhum protesto de nenhuma escola depois!

Ato fake!

A realidade dos “profissionais” que “fazem currículo” trabalhando sem receber pagamento, e sem reclamar disso publicamente sob o risco de “ninguém mais contrata-los”, exprime as duas coisas: a subserviência consentida à opressão e o despotismo esclarecido dos poderosos da festa. Fora as pernadas, as apropriações indevidas, as “cavadinhas”, o desprezo aos legados, os que “comem quietos” o seu pirão por puro interesse em se promover! As vaidades já passaram de “fogueira” a “incêndio” há muito tempo…

Bom seria que os enredos politizados tivessem fundamento real como já pudemos ver no passado, mas há sinais claros de que não há ideologia nenhuma, de fato, neles embutida. Os enredos que fingem criticar modelos opressores são deliberadamente atrelados à própria opressão do carnaval! É por isso que fica muito fácil desfilar na avenida com uma alegoria que condena a virada de mesa…e 15 dias depois votar em favor da virada numa plenária escusa! Num “jogo de caipira”, de hipocrisia e rabos-presos, escolhe-se quem leva e quem não leva a bordoada! Pode-se até fazer enredo sobre baratas patrocinado por um inseticida: quem mata e quem morre é mero “recurso”, sendo manuseado conforme a necessidade!

O bezerro de ouro é uma metáfora religiosa presente na cultura judaica sobre um povo que abandona seus princípios e despreza sua fé original para adorar alguma coisa construída pelas próprias mãos, um deus falso e sedutor, imponente e teoricamente mais próximo: o deus da facilidade, do favor fácil, da ludibriação e do ilusionismo! Como ocorre em toda cultura religiosa, é uma verdade pra uns e uma metáfora pra outros, porque toda religião é construída e vivenciada assim. Mas serve perfeitamente para ilustrar a nossa necessidade de refletir e questionar não apenas a fragilidade dos deuses falsos e de seus engodos, mas também para explicar que seu fascínio está no ouro, na riqueza, na ambição! O país não está nada diferente do microcosmo do carnaval: é mesmo a era dos “bezerros de ouro”, dos falsos messias plurais, dos salvadores de araque e do fanatismo passional que os ajuda a ser o que visivelmente não são!

Ora repudiando o prefeito hediondo, ora posando na foto com ele e seu cheque polpudo; ora chamando o governador de “sociopata”, ora sorrindo ao lado dele como “novo rei”; ora clamando por justiça nos enredos e sambas, ora consentindo carrascos como “patrões”: está construída uma lógica contraproducente ao que se espera do samba, dos sambistas e das nossas escolas. Uma servidão consentida, um escravismo por escolha. A imprensa entrevista um sambista e é tanta reverência a seus “deuses pessoais” (quase todos de biografia mais que controversa) que a gente não entende por que tanta subordinação maquiada com discurso de “gratidão”.

A única coisa que nos redime de conviver com a ganância, com a mentira, com a subserviência, com a politiquice, com a pose da falsa militância…é o amor! É olhar para a bandeira da nossa escola, pensar no que ela significa pra gente, o nosso sentido de pertencimento! Hoje as pessoas do samba querem pertencer “ao mundo”, à mídia, ao show business, aos cargos, às estruturas de poder. Negar tudo isso e simplesmente abraçar e amar um pavilhão é quebrar os bezerros de ouro, desprezar os falsos ídolos, partir ao meio os deuses ocos que querem prevalecer!

2020 está chegando. E pode ser que aquilo que está por vir já nem seja mais “carnaval”. Talvez seja apenas um desfile de todos os poderes que se desafiaram e se tornaram nus no meio da rua depois do desfile de 2019. Talvez seja a festa dos “bezerros de ouro” e de seus adoradores.

Ou alguém esqueceu o que aconteceu?! Ou alguém esqueceu tudo aquilo que ainda pode ser lido nos sites de busca, que ainda está publicado por aí? Ou alguém vai continuar fingindo que não existe um jogo, uma dança das cadeiras, uma surpresa na manga que pode irromper de súbito…como se fosse uma alegoria desgovernada atropelando e matando o próprio carnaval?!

É mais fácil escrever o que a gente queria que fosse do que aquilo que realmente é.

É mais fácil.

Pois que façam o fácil os que amam o fácil!

E que falem as verdades aqueles que nela (ainda) acreditam!

Hélio Rainho

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