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Notícias atualizadas sobre o Carnaval do Rio de Janeiro.

O grito abafado do samba

Desfile Beija-Flor 2020. Foto: Henrique Matos

O momento atual, de confinamento, afastamentos, privações por conta do novo coronavírus, que alterou rotinas, planejamentos, a vida em geral mundo afora pode gerar reações diversas. Inconformismo, depressão, aleatoriedade, egoísmo, enfim, cada ser humano, dentro da sua individualidade e limitações, reage de uma forma, elogiável ou condenável. Para mim, esse período serve como reflexão. Talvez, fragilizados, tendemos a refletir sobre os mais diversos atos ou sobre nossas próprias vidas talvez. Creio que essa seja uma excelente oportunidade para nós, ou, melhor ainda, para quem efetivamente tem poder de interferir nos rumos do carnaval carioca, de se fazer uma análise bastante crítica e sincera sobre os rumos que as escolas, os desfiles tomaram e sobre o atual estágio da folia. Com a iminência, uma chance bem real de cancelamento do carnaval, dos desfiles em 2021, ou melhor, um adiamento para um período mais em que estejamos mais seguros, essa é a melhor oportunidade possível.

É notório, por mais doloroso que seja para qualquer um, amante da festa, admitir, que os desfiles das escolas de samba encontram-se em franca decadência, numa curva descendente já há bastante tempo. Diria mais de duas décadas. O desinteresse do público em geral pelas escolas ou por tudo que as cercam é notório. “Chato”, “Repetitivo” são adjetivos empregados por quem não é, assim como nós, fissurado no assunto carnaval. É uma luta, um cata-cata, muitas vezes, para conseguir o mínimo de integrantes das alas das baianas ou até mesmo da bateria, para se ter uma ideia de que as escolas penam para conseguir compor seu quadro para o desfile. Os sambas-de-enredo são ignorados pelas rádios e pelo público. Indiferença talvez seja a palavra. Nem sempre foi assim, todo mundo sabe. Há 31 anos, ou seja, em 1989, o LP das escolas de samba alcançou vendagem recorde; pouco tempo antes, os sambas-de-enredo ocupavam destaque nas paradas musicais, estando na boca de todo mundo. Hoje, passada uma semana do desfile, ninguém lembra quase de samba algum, salvo raras exceções. Alguém sabe cantar o samba campeão da Viradouro? E estou falando com gente fissurada em samba.

E por que, qual a razão da indiferença em geral pelas escolas de samba? Os motivos são diversos, socioeconômicos, culturais talvez, mas, sem apelar para o vitimismo, diria que quem administra a festa, quem comanda as escolas ou detém poder sobre elas, seja na LIESA ou não, são os principais responsáveis pelo fato do samba hoje ser relegado a um plano menor e ser ignorado pelas massas. Não é exagero dizer que o samba é o maior produto do Brasil. Pronto, aceito, de qualidade reconhecida, mas muito maltratado. Um diamante ainda não lapidado, tratado e vendido como pedra comum, sem brilho, um cascalho qualquer. Contentamo-nos com esmolas, que são tratadas como se fossem um favor a nós, sambistas, prestado. E o samba é exposto e vendido dessa forma, como se fosse numa barraca de feira, sujeito a pechincha do freguês, que é aceita de bom grado. O primeiro passo seria que quem tem autonomia para decidir algo nesse meio enxergue, tenha noção, consciência de que possui, como disse, o melhor produto do Brasil. Não devemos nos contentar com migalhas. Que vejam dessa forma, é o primeiro passo

A etapa seguinte poderia ser enquadrar o samba no cenário atual, em que a informação circula de forma rápida, em que temos diversos, inúmeros canais, meios para fazer com que o nosso produto chegue a maior quantidade possível de possível de pessoas, com um bom planejamento de marketing e, claro, com qualidade, adaptado ao mundo de hoje. Conexão, essa é a palavra. O samba, me referindo às escolas, não se conectam com ninguém. Até um, dois anos atrás, vivíamos no período do Jurassic Fax para a compra de ingressos. Com tantos recursos, é inadmissível que os sambas-de-enredo tenham alcance limitado e olha que vivemos em um período fértil de belíssimas obras. Os sambas de 2017 e 2018 da Beija-Flor, e o de 2020, da Mangueira, podem figurar, sem nenhum favor, no rol de grandes sambas da história do carnaval carioca. Os próprios desfiles, em si, deveriam ser repensados em seu formato. Engessados, é claro, assim como estavam engessados os sambas-de-enredo, seguindo o mesmo molde “Explode Coração”, até pouco tempo atrás. Um desfile militarizado, com alas em xy, alinhamento e cobertura; dezenas de alas coreografadas, até mesmo o casal de mestre-sala e porta-bandeira é coreografado, alegorias gigantescas (“Escondendo gente bamba… que covardia…) é interessante para o julgamento, ok, é um desfile compacto, “sem erros”, mas chato para muita gente. Monotonia, essa é outra palavra empregada por aqueles que não curtem, como nós, os desfiles. Mesmo nos tempos em que o Salgueiro revolucionou o carnaval carioca, apresentando novidades escandalizaram sambistas mais tradicionais, havia espontaneidade, salvo uma ala coreografada ou outra, e talvez seja esse o elemento que falte aos desfiles de hoje: espontaneidade. Carnaval é isso, alegria, espontaneidade, que, em outros tempos, fazia com que componentes e público se conectassem, vibrassem numa mesma energia, como tantas e tantas vezes foi visto na Passarela ou nas Avenidas, Rio Branco, Antônio Carlos ou Presidente Vargas. Claro que a distância maior entre o público e os componentes contribui para a frieza de quem assiste aos desfiles, mas é mais do que isso ou não somente isso.

Óbvio que não quero dizer que tudo o que se apresenta hoje não presta, pelo contrário. Muitos entendem o desfile como uma grande ópera a céu aberto ou tentam teatralizá-lo. Sendo assim, as comissões de frente atuais se inserem perfeitamente no conceito de “espetáculo” proposto e, a bem da verdade, foram um salto tremendo em relação ao que víamos há vinte anos atrás, mais ou menos. O andamento médio da maioria das baterias das escolas do Rio diminuiu consideravelmente, com relação à metralhadora de pouco tempo atrás. Depois de anos a fio, de meados da década de 90 até pouco mais do ano 2000, os tenebrosos enredos CEP e, ou, patrocinados deram vez a temas do cotidiano ou de excelente qualidade, na média, ricos culturalmente. Os sambas-de-enredo deram um salto absurdo de qualidade, após anos e anos e anos engessados no molde “Peguei um Ita no Norte”, com cada ala de compositores tentando repetir, sem sucesso, a explosão daquele desfile. Notadamente a Beija-Flor, principalmente, Mangueira e Imperatriz foram as escolas que mais se destacaram nesse quesito, ao longo desse século, apresentando obras que nada devem aos grandes sambas da história. “Monstro é aquele que não sabe amar” e “Iracema, a virgem dos lábios de mel” são dois sambas que podem, perfeitamente, figurar no rol dos maiores sambas-de-enredo da história da Beija-Flor, ao lado de “Peri e Ceci”, de 1963, “Criação do mundo na tradição nagô”, de 1978, e “Áfricas”, de 2007.

Nunca, em tempo algum, as escolas de samba estiveram em posição tão delicada e ameaçadas como agora, por mais que alguns não percebam. Durante todo o seu mandato, o prefeito atual pouco fez para apoiar os desfiles, ou o próprio carnaval. Montou a sua trincheira e bombardeou o carnaval carioca e as escolas durante esse período, minando-os, retirando subvenções e não movendo uma palha para apoiá-las. Por ideologia, por questão religiosa ou populista, já que acena, assim, para uma parcela considerável da população, evangélica ou não, conservadora. A Rede Globo, emissora que detém, ainda, os direitos de transmissão dos desfiles, ano a ano, impõe reduções no tempo de desfiles, que já foi, não faz muito tempo atrás, de 90 minutos para 70, no máximo. A questão financeira foi outro fator que contribuiu para essa redução de tempo, bem como na redução do número de alegorias. Como já mencionado, o desinteresse geral, do público médio, pelas escolas é gradual, crescente, ano após ano. Indiferença, essa é a palavra. E, com isso, o samba, que agoniza mas não morre, grita, suplica por ajuda, mas o que fazer se nem mesmo quem deveria zelar por ele é indiferente, incompetente ou relaxado?

Nem mesmo um cenário desses é capaz de haver uma mobilização geral para tentar reverter esse quadro, pelo contrário. Por incompetência, falta de visão, egoísmo e pouco caso, o povão, aquele que não tem dinheiro para pagar por um lugar na arquibancada durante os desfiles ficou privado de curtir, pelo menos durante um curto período no ano, as escolas de samba na Sapucaí, nos ensaios técnicos. Uma covardia, porque, sim, há ainda bastante gente que, mesmo judiada por dirigentes indiferentes, AMA AS ESCOLAS DE SAMBA DO RIO. Fácil e adequado para alguns culpar, somente, o poder público pela não realização do evento. É dever dele apoiar, mas não subsidiar por completo, elas, as escolas ou a LIESA, deveriam, se tivessem uma gestão competente, captar patrocínios, apoio junto a empresas. Caramba, gente! É, como disse, o maior produto do Brasil, fácil de vender, desde que haja quem saiba fazer isso ou esteja com disposição para tal. Não há transparência na gestão das escolas, na verdade, não há nem mesmo uma gestão de qualidade, em geral, com raríssimas exceções. A falta de gestão, essa é outra questão. Eventualmente, passo em frente às quadras da Mocidade, a nova, na Avenida Brasil, e a antiga, na Rua Coronel Tamarindo e em ambas é evidente a falta de cuidado o patrimônio da escola. A antiga, palco de ensaios memoráveis, comemorações de títulos, está abandonada e a nova, com um chão de terra na frente, um matagal do lado, lama quando chove, muros com pintura velha e com o símbolo da escola rasgado. Se não têm cuidado com a sua própria casa, que, aliás, foi doada da Prefeitura para a Mocidade, como querer que se interessem pelas escolas? Esse é um exemplo que poderia ser aplicado para outras agremiações.

O grito abafado das escolas de samba, por socorro, é ouvido por alguns, quase que silenciado por quem lhes quer o mal, mas, se permitirem, há muitos, inúmeros, que lhes podem estender a mão. Para tal, que tal, um pouco de humildade para promover debates, congressos, o que for preciso, com gente que ama de paixão esse negócio, além de possuir conhecimento notório para propor o que for preciso para trazer os desfiles, as escolas de samba em si, para o seu lugar de realce, de direito. Nomes como Rachel Valença, Aloy Jupiara, Haroldo Costa são alguns, dentre tantos, que poderiam contribuir, com seu vasto conhecimento, ao longo de tanto tempo acompanhando os desfiles, para sugerir soluções ou ideias, simplesmente, que possam agregar valor à festa. Que aproveitem esse momento para refletirem sobre os rumos que o carnaval carioca está tomando, que abram bem os olhos e nunca, em hipótese alguma, baixem a cabeça a quem lhe quiser falar mais grosso ou impor algo que as prejudique. Samba agoniza, mas não morre já dizia o Sargento, Nelson, de maior patente no universo das escolas.

Sobre o autor

Natural de Padre Miguel, Jorge Renato Ramos é pesquisador, bacharel em Letras/Francês (UFRJ/UERJ) e autor da série de livros “Apoteótico: os maiores Carnavais de todos os tempos”.










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