Rachel Valença e a ameaça aos desfiles: ‘Mais uma vez o velho preconceito’

Rachel Valença. Foto: SRzd

Com o aumento de casos da Covid-19 no Brasil e no mundo, a realização dos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro tonou-se alvo de críticos ao maior espetáculo da Terra.

A pressão daqueles que são contrários ao evento aumentou com o cancelamento do Carnaval de Rua na cidade.

A professora, escritora e pesquisadora Rachel Valença, comentou a possibilidade do adiamento do Carnaval da Sapucaí em sua coluna no SRzd destacando a importância da celebração desta manifestação cultural.

+ Leia o texto de Rachel Valença:

“Vivemos um momento de insegurança: o que vale para hoje pode não valer mais amanhã. A causa disso todos nós conhecemos: a evolução da pandemia de Covid-19 e suas variantes.

Quem em dezembro fez planos para janeiro teve de alterá-los. Mesmo assim, muita gente já sabe o que vai acontecer daqui a 40 e poucos dias. Uma coisa horrível, que precisa ser evitada a qualquer custo: o desfile das escolas de samba vai causar aglomeração e acelerar o contágio. Precisa ser cancelado. Já!

Aglomeração? O que é isso? É o que vemos nas praias em dias de sol, nas igrejas, nos estádios de futebol, nos shows, nos cruzeiros marítimos. E também em situações que não resultam de escolhas, que não apresentam alternativas: os postos de saúde e o transporte público.

Sobre nenhuma dessas aglomerações eu vi a voz geral se levantar com tanto furor quanto o que atualmente envolve a realização do desfile das escolas de samba no próximo Carnaval.

Como estará a cidade em 27 de fevereiro próximo? Não sabemos. O que sabemos – e com certeza – é que esta cidade, que se beneficia do impacto econômico do Carnaval em sua economia, se mostra contrária à aglomeração causada pelo desfile. Só a esta, porém. Todo o resto pode.

O pobre cidadão, que para ir trabalhar se viu obrigado a se espremer no transporte público ao longo da pandemia, não tem o direito de cumprir esse ritual de celebração e alegria que é o desfile das escolas de samba.

Mesmo que sejam tomadas medidas como exigência de comprovante de vacinação para quem assiste, desfila ou presta serviços na Avenida, o desfile continua a ser tratado como um perigo à saúde pública.

Não me surpreende. Samba, escola de samba e correlatos são desde sempre objeto de preconceito. Às vezes por motivos religiosos, às vezes simplesmente por demofobia, o horror a tudo que provém ou se relaciona ao povo.

No entanto, se pararmos para analisar os fatos, as escolas de samba têm sido um segmento muito comprometido com o enfrentamento à pandemia e suas consequências. Desde o primeiro momento, iniciativas de solidariedade foram observadas nas nossas agremiações carnavalescas.

Já em 2021, o cancelamento do carnaval representou um duro golpe para os que vivem da festa. E não faltou criatividade nem solidariedade para abrandar as perdas e dores.

As escolas de samba não podem ser acusadas de ignorar, como fez tanta gente, os efeitos e riscos da pandemia. Muito ao contrário, o samba, por ser estruturalmente comunitário, sabe o que é solidariedade. Uma lição bonita.
Um ano se passou, a cidade apresenta um nível muito bom de cobertura vacinal.

A variante que hoje se espalha com rapidez tem consequências bem menos graves que as anteriores. Além disso, como foi dito acima, não é possível saber por quanto tempo ainda continuará nos assustando. Por que, então, a urgência desse clamor?

Para ser absolutamente sincera, o que vejo é que essa grande preocupação com o que a realização dos desfiles pode acarretar é, na verdade, mais uma vez o velho preconceito, que hoje chega ao absurdo de questionar se escola de samba é realmente carnaval.

Escolas de samba existem há 90 anos, nascidas no seio do povo e resistentes às investidas da elite para acabar com elas. Várias foram as estratégias para acabar com elas. Em vão. São tão fortes quanto essa brava gente que sobrevive aos trens lotados, à falta de um sistema de saúde digno, à calhordice e insensibilidade dos políticos, à violência direcionada preferencialmente a pobres e negros.

Nem todo mundo é obrigado a entender e aquilatar a extensão desse preconceito. Mas me espanta que a mídia especializada em carnaval dê voz a quem não é de samba.

Nós, que ano após ano estamos lá, sob chuva se necessário, para assistir e analisar ensaios técnicos, ensaios de rua ou de quadra, sabemos com clareza o que significa o cancelamento do desfile, uma celebração à vida. Quem não é disso mantenha-se calado, por favor. Fale de torneios de futebol, de cultos religiosos (que também aglomeram), de shows de artistas populares (que reúnem milhares), de vacinas e planejamento hospitalar”.

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