Livro sobre Clara Nunes será relançado na quadra da Portela

Clara Nunes. Foto: Wilton Montenegro

Clara Nunes. Foto: Wilton Montenegro

Resultado de quatro anos de intensa pesquisa, a nova edição de “Clara Nunes, guerreira da utopia” será lançada neste sábado (2), às 16h, na quadra da Portela, com sessão de autógrafos do autor Vagner Fernandes. (Leia abaixo entrevista com Vagner)

A obra acompanha Clara desde a infância até a morte prematura, aos 40 anos, durante uma cirurgia de varizes. Revela histórias do início de sua carreira em Belo Horizonte, segue os seus passos quando se muda para o Rio, descreve a sua busca pelo sucesso, relembra a sua desconhecida passagem pela jovem guarda e pelos festivais da canção, testemunha a sua paixão pelo samba e a sua consagração na MPB. Com delicadeza, trata também da vida pessoal dessa mulher incomum, tão à frente do seu tempo. Mas o autor vai além: a partir da trajetória de Clara, faz um retrato do Brasil nos anos de chumbo da ditadura militar e na campanha da anistia pela abertura democrática.

Livro "Clara Nunes, guerreira da utopia". Foto: Divulgação
Livro “Clara Nunes, guerreira da utopia”. Foto: Divulgação

Para escrever o livro, Vagner Fernandes esmiuçou uma ampla bibliografia e entrevistou mais de 300 pessoas, reunindo cerca de 400 horas de depoimentos. Debruçou-se sobre a vida e a carreira da intérprete, percorrendo os lugares trilhados por ela ─ de Caetanópolis (MG), sua terra natal, ao popular bairro de Oswaldo Cruz (RJ), onde foi fundada a Portela. Quando chegou às livrarias, em 2007, a obra foi a primeira a revelar (após 25 anos de arquivamento da sindicância aberta pelo Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro) informações confidenciais, até então inéditas, sobre a morte da artista. A possibilidade de erro médico, a cruel onda de boatos, a comoção popular e o velório na quadra da Portela, por onde passaram 50 mil pessoas, são os temas dos últimos capítulos da biografia.

“Clara Nunes, guerreira da utopia” traz, ainda, em seu miolo, dois grandes cadernos de imagens, recheados de fotos das diversas fases da vida da cantora.

O lançamento integra a programação da tradicional Feijoada da Família Portelense – a última antes do Carnaval -, que contará com as participações de Alcione e Roberta Sá em show tributo à mineira guerreira.

Leia abaixo entrevista com o autor Vagner Fernandes:

Vagner Fernandes. Foto: Divulgação
Vagner Fernandes. Foto: Divulgação

Como e quando veio a ideia de fazer um livro sobre a vida de Clara Nunes?

Dissecar a vida e a obra de um bom personagem no Brasil é sempre algo de extrema complexidade.

Vagner: A Clara sempre me fascinou. Mas a Clara que eu e outras pessoas da minha geração conhecíamos era o personagem, com vestimentas brancas que aludiam às vestes das filhas de santo da umbanda e/ou do candomblé. Em 2003 iniciei a pesquisa para a redação da biografia a partir de um material audiovisual raro dela que chegou até mim. Fiquei estarrecido com a atemporalidade de Clara, uma cantora ainda tão presente e cuja obra se mostra para lá de atual. Aquelas imagens remeteram à minha infância, quando meu tio (e padrinho, um dos diretores de Harmonia da escola na época) e minha mãe me levavam à quadra da Portela. Em uma dessas idas, a Clara estava lá, no palco, cantando. Eu fiquei hipnotizado quando vi aquela mulher, linda, lá em cima, toda de branco, com aquela energia cênica incrível. Estava fascinado com a cantora que eu tanto admirava da TV. Todos esses fatores me levaram a pesquisar mais e mais, a ir em busca de informações que me direcionassem para a descoberta daquele personagem que todos idolatravam, mas cuja história encontrava-se dispersa, sem registro no mercado editorial. Foi por isso que a escolhi: movido pelo interesse que sempre me despertou. Só acredito em trabalhos pautados por uma boa pesquisa. O Ruy Castro tem uma tese interessante. Ele diz que só biografa morto. E de preferência que tenha sido solteiro, estéril e órfão de pai e mãe. Isso ele declarou em função das polêmicas levantadas pelas famílias de biografados, que transformaram o gênero em um verdadeiro filão caça-níqueis, como se biógrafo no Brasil ficasse milionário. Não conheço um autor sequer que tenha enriquecido por ter redigido uma biografia. Dissecar a vida e a obra de um bom personagem no Brasil é sempre algo de extrema complexidade, seja pelas dificuldades impostas pelos herdeiros ou pela falta de compreensão e sensibilidade por parte dos próprios biografados que estão vivos, como Roberto Carlos, por exemplo. Mesmo com a decisão favorável do Supremo Tribunal Federal, em 2015, com a liberação das biografias sem autorização prévia, o que for considerado abusivo pode levar a medidas de reparação. Autores e o mercado editorial ainda vivem essa tensão.

Descobriu muitos fatos até então não revelados pela imprensa da vida da cantora?

Clara Nunes. Foto: Wilton Montenegro
Clara Nunes. Foto: Wilton Montenegro

Vagner: Seria leviano destacar este ou aquele ponto descoberto durante o processo de produção da biografia. Acho pouco producente levantar polêmicas a partir de fatos isolados ocorridos durante a trajetória de um personagem. Muitos detalhes sobre a vida e a obra da Clara poucas pessoas conhecem certamente, mas o que importa no trabalho é o conjunto. É isso o que me interessa: a possibilidade de apresentar ao maior número de pessoas possível que o biografado era um ser-humano como qualquer outro. Sim, porque autor algum deseja escrever sobre um anônimo ou alguém cuja história seja pouco interessante. No Brasil e no mundo há uma tendência à heroicização das pessoas famosas, sobretudo as que morrem de forma trágica e precocemente. Todos tendem a mitificá-la. O que mais me agrada na redação de uma biografia é o fato de poder trabalhar com as nuances humanas do personagem. Por isso, a necessidade de se tratar o biografado com certo distanciamento crítico, como um objeto de estudo mesmo, por mais admiração e respeito que tenhamos por ele.

Como foi o trabalho de pesquisa?

Vagner: Eu sempre lanço mão de uma metodologia que segue determinados critérios. Cada autor organiza a pesquisa e seleciona material da forma que lhe convém. No meu caso, que tenho formação jornalística, eu parto para a descoberta de fontes que possam me contar boas histórias sobre o biografado. Estabeleço contatos e faço entrevistas. Paralelamente, realizo buscas em arquivos de jornais, revistas, bibliotecas, um amplo levantamento de tudo o que foi publicado sobre o personagem. É então que se começa a etapa que considero de maior dificuldade: a do cruzamento de informações para a verificação dos dados. As fontes também se enganam. Por isso, a necessidade do cruzamento. É um árduo trabalho, mas extremamente prazeroso. Durante a pesquisa nada pode ser desprezado. Eu vou em busca de tudo e de todos que considero peças fundamentais para construir o “quebra-cabeça”, como maridos ou ex-maridos, esposas ou ex- esposas, filhos, irmãos, pais, amigos. Você tem de criar, de imediato, uma rede de fontes confiáveis. Uma entrevistado te leva a outro e assim sucessivamente. Às vezes, uma informação ou um personagem que, aparentemente, não tem tanta importância, pode te apontar caminhos incríveis. No caso do livro da Clara, eu não contei com assistentes para a pesquisa. Tive ajuda de pessoas que, voluntariamente, foram me fornecendo dados. Eu gosto da pesquisa “in loco”.

Quais as principais dificuldades encontradas na produção de uma biografia?

Vagner: Para mim, as maiores dificuldades consistem exatamente na reunião de materiais e de fontes confiáveis. Há que se encontrar boas histórias para serem narradas; que nos permitam não só (re)construir a trajetória de vida pessoal e profissional, mas que tragam à tona a dimensão humana do biografado. O meu interesse é desvendar o “mito”.

Na sua opinião, quais as características fundamentais que um escritor deve ter para se dedicar à redação de uma biografia?

Vagner: Tem de ser um bom pesquisador e evitar, acima de tudo, o clichê da mitificação do biografado. Eu costumo sempre dizer que toda biografia é uma grande reportagem, pois os critérios usados são muito peculiares ao processo de apuração e redação jornalística. Claro que cada autor tem um estilo próprio de narrativa. Mas todos são movidos pela curiosidade, a descobrir fatos e apurá-los corretamente.

Clara Nunes. Foto: Wilton Montenegro
Clara Nunes. Foto: Wilton Montenegro

Pode contar casos interessantes que aconteceram ao longo do trabalho para a produção de Clara Nunes: Guerreira da Utopia?

Vagner: O mais interessante foi a forma como decidi encontrar personagens que me ajudariam na reconstituição da vida e obra da Clara, sobretudo os que moravam em outros lugares do Brasil que não o Rio de Janeiro. Com uma mochila nas costas, fui a Belo Horizonte, a Caetanópolis (MG), terra-natal da cantora, Paraopeba (MG), Salvador, Recife e em vários outros locais. Estabeleci um contato com uma moradora de Caetanópolis, professora, que morava com a irmã. Ela era fã de Clara, colecionava tudo. Tem álbuns e álbuns com recortes de jornais e de revistas. Eu a encontrei após contato com um vereador da região. Nos falamos algumas vezes por telefone e, como a cidade era pequena, pedi a ela que fizesse uma reserva num hotel próximo, já que estava com viagem marcada para lá. Quando cheguei, ela foi me receber na rodoviária da cidadezinha, me colocou no carro e disse que fazia questão de me hospedar na casa dela. Eu tomei um susto. Ela nunca tinha me visto antes. Aquilo me fez pensar na bondade de nosso povo, na importância do resgate de nossos valores, como a cordialidade, a solidariedade, o respeito, a confiança no próximo. Valores esses tão peculiares a nós, brasileiros, e que, dia a dia, nos escorregam das mãos diante das mazelas pelas quais somos todos responsáveis. Pode parecer mera bobagem falar tudo isso. Não o é. Therezinha Mascarenhas é o nome dela. Há que se registrar.

Como é ser fã e escritor? Atrapalhou na hora de colocar em prática no papel?

Vagner: Sou fã, mas, acima de tudo, um jornalista. Meu compromisso é com a precisão das informações. Persevero em ser fiel aos fatos. Se formos ingressar numa discussão envolvendo teoria da comunicação, perceberemos que qualquer narrativa, seja ela jornalística ou não, jamais será imparcial em sua totalidade, porque quem narra só o pode fazer a partir de uma interpretação própria, de um recorte da realidade. A questão não é fácil. Por isso há técnicas que, nós jornalistas, adotamos para minimizar o impacto interpretativo sobre a realidade que narramos. Eu me policio sempre. Mas esse é um exercício constante. Vivo sendo questionado se o meu livro é de fã ou sobre como é essa relação. Sempre explico que se por trás do termo “fã” houver a conotação de que algo deixará de ser narrado para não desmistificar o personagem, eu prefiro dizer que não se trata de um livro de fã e sim de trabalho de um jornalista-escritor. Quando se deixa de contar algo importante em um livro, sobretudo biográfico, por ser fã, a obra certamente cairá em descrédito.

A morte da Clara sempre me intrigou, assim como desperta dúvidas a muitas pessoas
até hoje.

Como você definiria Clara Nunes?

Vagner: Uma mulher absolutamente generosa e crente no seu ofício. Por isso, o “Guerreira da Utopia” (título do livro). Clara acreditava nos amigos, no amor, no seu canto como instrumento de conciliação, na sua arte como veículo de transformação social.

A morte de Clara ficou bem esclarecida?

Vagner: A morte da Clara sempre me intrigou, assim como desperta dúvidas a muitas pessoas até hoje. Eu fui cauteloso ao narrar o fim trágico do personagem. Clara morreu em função de um choque anafilático durante uma cirurgia de varizes. Ela teve uma reação alérgica a um dos componentes do anestésico e isso evoluiu para uma parada cardiorrespiratória. Em seu cérebro formou-se um enorme edema. Clara teve morte cerebral imediata, mas os médicos só descobriram que ela realmente estava descerebrada cerca de 10 dias depois da intercorrência na Clínica São Vicente, na Gávea, onde ela se internou. Na época tomógrafo era um aparelho “top de linha” na medicina. No Rio só havia dois: um na Santa Casa e outro na Clínica São Vicente. O da clínica estava quebrado. Pela primeira vez, o médico que chefiou a equipe que operou a Clara concedeu uma entrevista. Ele não só falou comigo revelando detalhes sobre a cirurgia e tudo o que aconteceu nos 28 dias de agonia até a morte da cantora, como solicitou o desarquivamento da Sindicância aberta pelo Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro para a apuração do caso. Eu me pautei em documentos, não em versões, em boatos. Segundo a documentação a que tive acesso, não houve erro médico. Mas persistem os boatos de que o anestesista teria abandonado a sala ou que houvera uma suposta falha dos equipamentos da sala de cirurgia. Está tudo na documentação a que tive acesso: um calhamaço de papel disposto em 815 páginas, distribuídas em cinco volumes. Clara não morreu porque foi tentar um aborto ou fazer uma inseminação artificial ou ainda porque usava drogas. Nada disso. Esses boatos também foram propagados na ocasião. Ela foi fazer uma cirurgia de varizes e o seu organismo reagiu mal a uma das substâncias do anestésico. Qual? Ninguém sabe e jamais saberá. Uma pessoa que é alérgica hoje a uma substância, amanhã pode não ser mais. E vice-versa.

No livro, procurei desvendar a mulher Clara Nunes que se encontrava por trás do personagem, com todas as suas virtudes e defeitos, alegrias e tristezas.

O livro poderia ser dito o definitivo sobre a vida da cantora?

Vagner: Não creio nesse adjetivo. Nada é definitivo. Acredito que fiz um trabalho correto, sério, sem firulas. Essa foi a história da Clara que eu pude contar, mas se existem outras pessoas com histórias tão boas ou melhores que as que narro no livro, que apresentem as suas versões em nova obra. Perguntam-me sempre o porquê da demora na publicação de algo sobre a vida de uma das maiores cantoras do país. Eu sempre respondo que o fato de se deve à complexidade de se reunir elementos que pudessem reconstruir fielmente a trajetória da Clara. Eu fui a praticamente todos os lugares pelos quais ela passou e/ou viveu. Isso dá trabalho e requer investimento. Nesse caso, todo o processo de pesquisa eu banquei do meu próprio bolso. Nas férias, em vez de descansar, partia rumo aos locais nos quais poderia encontrar material importante sobre a cantora. Por outro lado, também acho que há um conceito pré-estabelecido de que personagens ligados ao tradicional universo do samba não despertam mais interesse no grande público. Isso é uma inverdade, algo completamente sem fundamentação. O livro serviu como pontapé inicial para que outros projetos fossem postos em prática.

Como foi a aceitação da família e dos fãs quando saiu editado o livro?

Vagner: Dividida. Alguns amaram, outros não. Eu era fascinado pelo personagem Clara. Era aquela imagem que nos deixava embevecidos. A mim e a minha família. Mas, no livro, procurei desvendar a mulher Clara Nunes que se encontrava por trás do personagem, com todas as suas virtudes e defeitos, alegrias e tristezas. Era uma mulher como qualquer outra. Enfrentava conflitos emocionais, idolatrava a maternidade, amava, sofria, sonhava. O meu trabalho foi pautado pela seriedade e respeito aos fatos. Fossem esses “doces” ou “amargos”. Isso incomoda fãs e familiares que prezam pela “manutenção do mito”. O livro não tem proposta de levantar polêmicas, mas de procurar ser fiel à história do personagem. E, claro, para ser fiel, os dissabores também precisam ser narrados.

Existe alguma parte da vida da cantora que você se arrepende de ter colocado ou que poderia ter sido mais explorado?

Vagner: Não. Caso contrário não teria lançado a obra.

Depois de Clara Nunes tem algum projeto para desenvolver sobre a vida e obra de alguma personalidade?

Vagner: Sim, a biografia de Candeia e dois outros projetos que, por enquanto, prefiro não revelar.

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