Laíla: uma escola de samba

Laíla. Foto: Divulgação

Por Gabriel Mello

Sim, ele próprio – de corpo e alma – era a musicalidade, a garra, a ginga, a alegoria do sambista, a fantasia do personagem marcante; os fundamentos reunidos pela obstinação maior de sua vida: ensinar.

O que ele cobrava de todos ao seu redor era sempre a mesma coisa: o resultado do aprendizado. Podemos dizer, também, que se alimentava disso, uma vez que, a cada nova cabeça que surgia, começava um novo ciclo cheio de novas ideias e impressões.

LAÍLA semeava o samba para a juventude e se alimentava das florescências. E quando eu falo de juventude, não falo de desconstrução do passado; falo de adição, de coexistência. As suas grandes pirações – sim, pirações, porque era assim que muitos definiam suas ideias mais ousadas – nunca nasceram de um desejo de subversão, mas da ampliação de experiências tradicionais.

Todo o rendevu causado pelo famoso Cristo Mendigo da Beija-Flor em 1989 tinha origem na derrota da própria Deusa da Passarela no ano anterior, quando fora subjulgada – mesmo com um dos desfiles mais caros e luxuosos da história – pela efervescente e original KIZOMBA da Vila Isabel. E se olharmos com um pouco de atenção, veremos que isso não significava abrir mão do luxo e da pompa. Do carro abre-alas para trás, a Baixada era um luxo: queimado, pixado e rasgado, mas, ainda assim, um luxo. Desfilaram pela pista uma infinita quantidade de galões, cordões, pedrarias, penas de pavão, plumas choronas, brocados… Tudo que um desfile Nilopolitano exigia naquela época.

*E antes que alguém fale sobre Joãosinho, o mesmo sempre teve Laíla como seu parceiro de criação e execução; sua presença, inclusive, foi uma exigência para que o trabalho acontecesse nos anos 70.

Percebam que em toda a ousadia havia um ponto de segurança, havia um lastro de identidade que ele não permitia que fosse modificado; era o sagrado, o imaculável, imexível.

Lembro-me de uma resposta que recebi dele quando perguntei se ele não achava uma alegoria que tínhamos visto em outro barracão uma beleza, e ele, muito sério, me encarou e disse: bonito para lá, cada qual com a sua identidade.
Ele entendia a essência e o lugar das coisas. Errou, como todo ser humano, quando tentou sair desta máxima, muito pelas cobranças que lhe eram feitas por outras pessoas. No entanto, nunca distinguiu entre melhor ou pior o trabalho dos grandes carnavalescos. Esta visão de que “cada corpo pede uma roupa” é algo básico, algo minimamente perceptível por qualquer observador, mas, ao mesmo tempo, parece que esquecido pela grande maioria. Por ele, nunca!

LAÍLA respeitava a Escola de Samba como a si próprio, porque era célula matriz deste organismo vivo. O entusiasmo com que falava das caixas da Mocidade, do surdo da Mangueira e dos tamborins Tijucanos, não era menor do que o entusiasmo com que falava de seus próprios trabalhos. Ele sabia o que havia de melhor!
Me recordo de outra passagem, num almoço no barracão, durante uma conversa sobre os carros mais belos de todos os tempos, quando ele surpreendeu a todos da mesa quando respondeu, de pronto, com um sorriso escancarado, que a alegoria mais bela que já havia passado na avenida fora o Sarau dos Poetas de Arlindo Rodrigues, no desfile da Imperatriz Leopoldinense de 1982.

Esse sentimento de defesa do todo – de, no fim, se entender como sambista das Escolas de Samba e não de uma só Escola de Samba – se extendia, e muito, aos Sambas de Enredo, cujo disco oficial contou com sua produção por décadas.

Se alguém quisesse ver este homem entusiasmado era só falar de samba-enredo. Samba novo, velho, tom baixo, tom alto, indígena, africano, crítico, oba-oba…

Bastava alguém entrar no assunto pra ele se soltar e a conversa extrapolar os limites do expediente, ou, as vezes, ir parar na sua casa, na Ilha do Governador.

Neste dia tão cinzento e triste, após a caminhada quase que silenciosa de todos os que estiveram presentes na sua despedida, a única certeza que tenho é que enquanto houver Escola de Samba neste país, ele estará presente; e, também, que todos nós precisamos, mais do que nunca, falar de LAÍLA, discutir LAÍLA e respirar LAÍLA, para que no futuro as novas gerações saibam onde procurar o ar que, já pra nós, muitas vezes falta.

Sobre o autor

Gabriel Mello é diretor de Carnaval da Vai-Vai e compositor da Imperatriz Leopoldinense. Ele integrou a comissão de Carnaval da Beija-Flor em 2016-2017.

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