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Uma história de ‘heróis’ no Império Serrano, por Jorge Renato Ramos

Desfile do Império Serrano de 1969 exaltou os ‘Heróis da Liberdade’. Foto: Reprodução

“A gente se lasca todo para fazer um samba e, depois, ele chega com aquela caixinha de fósforo, faz o dele e acaba com a gente”. É, meu amigo…, não era fácil competir com o Viga Mestre… Então senta que lá vem história…

Pouca gente sabe, até porque nem famoso eu sou, acho que meu nome não está nem naquelas notinhas de rodapé, mas, nessas minhas andanças por esse mundo abençoado do samba, fiz parte da ala de compositores do Império Serrano, o Reizinho de Madureira, na época do Silas de Oliveira. Bem ou mal comparando, acho que era como na época em que o Corínthians, numa seca de dar gosto, tentava sair da pindaíba de títulos duelando contra o Santos de Pelé. Silas de Oliveira era o Pelé do Império, ou melhor, do próprio samba.

O Viga Mestre, em 1968, chegava à sua quinta vitória consecutiva na escola, emplacando uma série de clássicos, não só do gênero samba-enredo, mas da própria Música Popular Brasileira, acredito. “Aquarela Brasileira” e “Os cinco bailes da história do Rio” estão aí, ó…, na boca do povo, ou vai falar que ninguém conhece um trechozinho que seja de “Aquarela Brasileira”? Nem que seja para cantar o “Lá-lá-lá-lá-iá…”. Pois é, Silas era brabo. Não dava para competir com alguém que estava muitos e muitos patamares acima de mim e de qualquer outro compositor imperiano, exceto Mano Décio da Viola, mas esse, outro brabo, estava do seu lado. Pelé e Coutinho. Silas estava em “otopamar”, assim como o Flamengo do Mister. É claro, óbvio, que o sucesso do Viga Mestre despertava uma ciumeira geral entre os demais compositores da escola. Se eu sentia ciúme? Claro que não… “Feliz daquele que se reconhece” e eu reconhecia meu limite, mas o restante do pessoal se doía porque o cara fazia sucesso mesmo, de fato. Dezenas e dezenas de pessoas, faziam quase uma procissão em direção à quadra do Império, com o objetivo de conhecer o autor dos sambas que faziam milhares e milhares de pessoas cantarem durante os desfiles da escola.
Se você acha que as disputas de samba-enredo são um território hostil, fique sabendo que isso vem de longe. Já que não dava para ganhar de Silas na boa, porque faltava talento para bater de frente com ele, tentavam levar na marra, puxando o tapete dele várias e várias vezes, de forma bem ostensiva até.

O Silas era uma pessoa do bem, nem dava ideia para essas mesquinharias. Para ter noção disso, ele continuava amigo de todos, inclusive dos seus opositores, aqueles mesmos que tentavam puxar o seu tapete. Nem tentavam esconder dele a torcida contra, mas ele nem procurava tomar conhecimento disso. O Antônio Lemos, jornalista, que na época era diretor de divulgação da escola, era outro que não escondia de ninguém que, na disputa entre Silas e Mano Décio, declarando-se torcedor de Mano Décio da Viola. O Viga Mestre ficou sabendo disso e o que foi que ele fez? Bloqueou ele no Facebook e Instagram? Fez um post com indireta para o Antônio Lemos? Não, porque nem internet existia na época, mas, se tivesse, a atitude seria a mesma: nem ligou, desculpa o termo, cagou para isso. Trinta anos mais tarde, Antônio Lemos seria presidente do Império Serrano. A cada dia crescia mais entre os compositores da escola o desejo de derrotar Silas. Só que deu ruim para eles, de novo. Além de Silas, Manoel Ferreira conseguiu novamente unir, numa disputa, Mano Décio da Viola. Pelé e Coutinho de novo fazendo tabelas, entortando o zagueiro e metendo a bola na cachola.

Eu só observava. Ficava olhando de longe, mas com ouvidos atentos, o que os demais compositores tramavam para tentar derrubar Silas. O bagulho era com ele. Era preciso vencê-lo, seja por que meio que fosse, até mesmo apelando para trapaça, se necessário e, para eles, era necessário. No meio dessa história toda, garoto, também estava aquele que é, para Rachel Valença, “o maior dos imperianos”: Sebastião Molequinho. Olha o título do cara! Não é para menos. Sempre visava ao melhor para a sua escola. Era um apaixonado pelo Império Serrano, sem vaidade alguma, algo que você procura, procura, procura e dificilmente acha entre os dirigentes das escolas, seja do Especial ou do Acesso. Em tempos em que a ditadura arrochava, era o primeiro carnaval depois do AI-5, ele resolveu mudar a forma de disputa de samba-enredo, tentando algo que julgava ser mais democrático, delegando para a própria ala a tarefa, o direito de fazerem o corte dos sambas que eles julgassem não ter a qualidade mínima para a disputa. Tudo foi feito com a melhor das intenções por Sebastião Molequinho. Ele não era bobo, nem cego. Via que a ala de compositores estava em guerra. Achava que a moda, na época, de colocar gente de fora do mundo do samba para julgar acabava favorecendo, segundo ele, “aqueles que tinham amigos”. “Ora…, se nós fazemos o samba, somos nós que devemos julgar”, ele falou então.

Cada um, inclusive eu e minha parceria, que não era eu e mais 20, como hoje, mas apenas eu e mais dois, trouxe seu samba, gravado em uma fita K7. Aí os compositores foram eliminando, com um grupo de pastoras, e levaram para a quadra aqueles que tiveram a maior nota. Foram duas noites fazendo isso. Daí, quando os envelopes foram abertos, lembro como se fosse hoje, o samba da parceria do Silas e do Mano Décio era só zero, zero, zero. Claro que os invejosos compositores imperianos, que queria derrubar o Viga Mestre na marra, aproveitaram a deixa e, pimba! Canetaram um monte de zeros para o samba do Silas, Mano Décio e Manoel Ferreira. Silas de Oliveira era uma pessoa tão fora da curva que ele mesmo deu nota 1 para o samba dele, claro que sem o consentimento dos outros componentes da sua parceria, que ficaram furibundos com ele depois. Mano Décio e Manoel Ferreira não estavam lá, no dia do julgamento. Silas, ingenuamente, esperava que os outros compositores fossem dar notas maiores para ele.
Aí, meu mano, teve que entrar em cena “o maior dos imperianos” para intervir, sempre, repito, visando ao melhor para o Império Serrano. Ele chegou e disse que não concordava com aquilo, falando que eles, os compositores, estavam fazendo, era uma tremenda maldade. O que foi que ele fez? Virou a mesa. Era o presidente, podia fazer isso. E fez. Anulou o resultado e declarou que a disputa seria como deveria ser desde sempre: na quadra.

Daí você já sabe, né? O samba da parceria de Silas, Mano Décio e Manoel Ferreira foi para a quadra disputar com aqueles que tinham tirado notas máximas naquela seletiva marota, e ganhou. Claro que ganharia. Se “Heróis da Liberdade” já ganhou diversas disputas do melhor samba-enredo de todos os tempos, competindo com sambas como “Os Sertões”, “Seca no Nordeste” e até mesmo do próprio Silas, como “Aquarela Brasileira”, por que não ganharia a disputa imperiana? Então, a cada vez que você se pegar cantarolando “Ao looongeee, soldados e cantores…, alunos e professores acompanhados de clarim… cantavam assiiim…”, não esqueça de saudar Sebastião Molequinho, o maior dos imperianos, e agradecer a ele por permitir que “Heróis da Liberdade” não fosse relegado ao limbo, ao esquecimento, papel destinado a inúmeras obras de qualidade, derrotadas em disputas de samba-enredo, e ocupasse um lugar de destaque absoluto na história dos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro.

*O narrador da história, claro, é fictício, mas tudo aqui relatado é real, extraído dos livros “Silas de Oliveira, do jongo ao samba-enredo”, de Marília Trindade Barboza, e “Apoteótico – Os maiores carnavais de todos os tempos – 1969”.

Sobre o autor

Natural de Padre Miguel, Jorge Renato Ramos é pesquisador, bacharel em Letras/Francês (UFRJ/UERJ) e autor da série de livros “Apoteótico: os maiores Carnavais de todos os tempos”.










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