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Como intrigas e briga de egos quase impediram que ‘Heróis da Liberdade’ fosse à Avenida

Silas de Oliveira. Foto: Reprodução

Fim de mais um carnaval. Belos desfiles, enredos críticos em profusão, no meio do turbilhão político que domina o cenário brasileiro, bastante criatividade para driblar a falta de dinheiro, mas, para mim, talvez para muitos, o que mais me marcou, e provavelmente vai ficar marcado por um tempo na minha memória: o triste e dramático desfile do Império Serrano, mais precisamente o fato das baianas da escola terem desfilado de bermuda, já que a saia que compunha a fantasia não havia chegado a tempo. Não é pouca coisa. Além da tristeza de ver senhoras que dedicaram boa parte de suas vidas à escola passando por essa situação constrangedora, as baianas representam as matriarcas do samba, lideradas por Tia Ciata, no surgimento do samba no início do século XX.

O mesmo Império Serrano emocionou a Avenida, em 1983, com um enredo todo dedicado a elas, à mãe baiana. Triste ironia, já que o enredo homenageava as mulheres (“Lugar de mulher é onde ela quiser”). Consequência de uma gestão (?) catastrófica, mas, principalmente, a ausência de elos e a profusão de egos. Divisões, puxadas de tapete, brigas ao monte e até tiros dentro da quadra fazem parte da história imperiana, minando a imensa força da escola e favorecendo, com isso, agremiações que pouca chance teriam, ou quase alguma, se a união imperasse no Reizinho de Madureira, se o interesse comum fosse o de ver o Império Serrano de volta ao lugar de onde nunca deveria ter saído: o quadro das grandes escolas do Grupo Especial.

Transcrevi abaixo um trecho do meu livro, sobre o carnaval de 1969, que deixa claro que desarmonia, confusão, briga de interesses, de egos vem de muito longe. Silas de Oliveira, o Viga Mestre, maior dos compositores, sofreu com isso até a véspera de sua morte, em 1972, sendo alvo, por diversas vezes, de intrigas por parte da ala de compositores imperiana. Fica, por final, a homenagem a este que é, para mim, o maior dos sambas-de-enredo, que completou, ano passado, cinquenta anos: “Heróis da Liberdade”, de Silas de Oliveira e Mano Décio da Viola.

“Ele chega com aquela caixinha de fósforo, faz o dele e acaba com a gente”

A gente se lasca todo para fazer um samba e, depois, ele chega com aquela caixinha de fósforo, faz o dele e acaba com a gente”. Silas de Oliveira, o Viga Mestre, maior compositor de sambas-de-enredo da história, em 1968 chegava à quinta vitória consecutiva no Império Serrano, emplacando clássicos do gênero, como “Aquarela brasileira” e “Cinco bailes da história do Rio”, o que provocava enorme ciumeira entre os demais compositores, incomodados com seu sucesso e, principalmente, com seu enorme talento, que, dentro da escola, só encontrava paralelo em outro grande mestre, Mano Décio da Viola. Dezenas e dezenas de pessoas iam à quadra, dispostas a conhecer o autor de sambas que faziam milhares de pessoas cantar durante os desfiles do Império, o que incomodava, e muito, os menos afortunados em talento. Tentativas de puxadas de tapete eram constantes.

No livro “Silas de Oliveira, do jongo ao samba- enredo”, de Marília Trindade Barbosa e Arthur L. de Oliveira Filho, os autores contam que Silas nem tomava conhecimento de tais mesquinharias, continuando amigo de todos, inclusive de seus opositores; alguns deles nem faziam questão de esconder sua torcida contra. O grande jornalista Antônio Lemos (na época diretor de divulgação da escola (trinta anos mais tarde, Lemos presidiria a agremiação, que passava por um dos momentos mais turbulentos de sua história), nunca escondeu de ninguém de que, na disputa entre Silas de Oliveira e Mano Décio (no período em que a dupla não compôs sambas em conjunto), estava do lado do segundo, declarando-se, abertamente, torcedor de Mano Décio da Viola: “Silas tomou conhecimento da preferência e nem ligou. Mas surgiu naquele momento nos compositores imperianos o desejo de derrotar o Silas”, contou aos autores. Para azar dos menos talentosos (e mais invejosos), Manoel Ferreira conseguiu unir novamente, numa disputa, Silas de Oliveira e Mano Décio da Viola, a parceria mais brilhante da história do carnaval carioca, o que não inibiria os demais compositores, dispostos a derrubar Silas e tentar vencer, seja por que meio que fosse, utilizando até mesmo trapaça.

Atento a tudo isso, e mais preocupado com o que considerava o melhor para sua escola (e não para agradar um ou outro), Sebastião Molequinho, “o maior dos imperianos”, resolveu mudar a forma de escolha de samba-enredo, delegando para a própria ala a tarefa o direito de cortarem, uma espécie de triagem, os sambas que julgassem não ter a qualidade mínima para a disputa, tudo feito com a melhor das intenções, conforme relatou Molequinho aos autores de “Silas de Oliveira, do jongo ao samba-enredo”: “A ala de compositores estava em guerra. E esse problema de gente de fora julgar influi, porque acaba ganhando o compositor que tem amigos. Eu resolvi que, se nós é que fazíamos o samba, nós é que devíamos julgar. Cada um trouxe seu samba na fita, fomos eliminando, com um grupo de pastoras, e levamos para a quadra os sambas que tiveram maiores notas. Passamos duas noites fazendo isso. Quando abrimos os envelopes com referência ao Heróis da Liberdade, era zero, zero, zero, o próprio Silas!

Silas era uma coisa, igual a ele é difícil. Ele era diferente, ele deu um no samba dele. O Décio e o Manoel Ferreira não estavam no dia do julgamento, ele esperava que os outros dessem notas maiores. Eu não concordei com aquilo, disse a todos que o que eles haviam feito era uma maldade. Virei a mesa. Anulei aquele resultado e declarei que ia ser disputado era lá, na quadra. O samba foi pra quadra disputar com os outros que tinham tirado notas máximas e ganhou”. Por muito pouco, aquele que é considerado, por muitos, como o maior samba- enredo da história, não ficaria relegado ao limbo no qual figuram inúmeras outras composições, esquecidas após serem derrotadas nas disputas. Graças a Sebastião Molequinho, e seu amor pelo Império Serrano, “Heróis da liberdade”, de Silas de Oliveira, Mano Décio da Viola entrou para a história como um dos maiores, senão o maior, samba-enredo de todos os tempos.

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