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Candomblé, o Carnaval da ruptura em busca da vitória

Candomblé e Umbanda: exposição no bairro da Luz tem inspiração nos Orixás. Foto: Divulgação

O Candomblé está de volta para Avenida dos desfile. Vamos recordar! O ano era 2004, quando fui procurado pelo presidente da Acadêmicos do Cubango para me convidar para assumir a função de carnavalesco da escola de samba.

O presidente sonhava em mudar o patamar de apresentação da agremiação, não queria ser mais a segunda escola no coração de todos e sim, uma escola que viesse para disputar o título. Conversamos animadamente e confessei que acompanhava de longe a escola desde tempos idos, quando em 1981, ouvi nas rádios o samba-enredo do compositor Flavinho Machado e Eraldo Faria; “O fruto do amor proibido”.A escola se apresentou, ainda desfilando em Niterói, e o refrão era encantador, daqueles que não sai da sua mente. Ele dizia assim:

“O ra ei ê ê ô O ra ei ê ê ô Para seus filhos todo axé

Canta Cubango

Com o povo em sua fé”

Sempre achei curioso o seu nome; Cubango, a única escola no país com um nome genuinamente africano. Aqueles que não conhecem a procedência do nome, vem do antigo Império do Congo, hoje Angola, existe nessa região um rio com o mesmo nome. Essa ponte direta com a cultura africana sempre me fascinou.

Voltando a reunião com o presidente, ele queria realizar em 2005 o Carnaval da mudança e mostrei a ele um trabalho que preparava para Os Rouxinóis, da cidade de Uruguaiana, onde o enredo era sobre o “Livro”, exaltando essa fonte de saber, cultura e conhecimento. Ele adorou o tema, a escola sempre gostou de temas relacionados a cultura e, segundo ele, não existia nada mais cultural do que um tema com essa abordagem. Ele me pediu para readequar o enredo para a estrutura de um Carnaval do Grupo de Acesso, hoje série Ouro, e também, com a pesquisa já feita, meu trabalho seria menor, pois a parte financeira da escola era um problema, para variar… Os carnavalescos amigos sabem bem dessa costumeira frase que ouvimos o tempo todo, seja em que grupo for, com exceções…

Eu olhei bem direto para o presidente Pelé e disse calmamente que me recusava a fazer isso, queria criar um enredo para a comunidade da escola, onde ela poderia ter uma identificação direta. A comunidade da Cubango era predominantemente preta e com uma ancestralidade africana muito acentuada, sendo assim, por esses motivos, vou inciar um enredo do zero, quero falar do Candomblé, disse.

Os olhos do presidente brilharam, adorou a ideia e disse que tinha toda a liberdade para criar. A ideia de fazer um enredo sobre o tema, habitava minha imaginação desde a pesquisa realizada em 2003, para o enredo sobre Zumbi dos Palmares, na Caprichosos de Pilares, no Grupo Especial.

Ficava me questionando as origens do Candomblé, seria uma criação brasileira ou africana? Era a pergunta que não tinha resposta. Seria necessário uma pesquisa aprofundada para descobrir, pois sempre gostei demais dos enredos com a temática afro-brasileira, mas quase a totalidade deles eram carregados de muito misticismo, pois a maioria dos profissionais que os desenvolviam, até então, tinham uma vinculação direta com as questões religiosas de matriz
africana.

A minha proposta era uma isenção absoluta com toda essa questão mística. Queria buscar as origens até a sua fundamentação como religião aqui no Brasil, e assim nasceu o enredo: “O fruto da África de todos os deuses no Brasil de fé, Candomblé”.

Este enredo foi dividido em cinco setores, por consequência, cinco alegorias. O primeiro setor era dedicado ao príncipe muçulmano de nome Oduduá que adota uma nova visão de fé, contrariando os ensinamentos muçulmanos ao qual foi educado e vai fundamentar a criação da Nação Yorubá. Segundo muitas versões, Oduduá foi escolhido pelo deus criador Olodumarê para fazer florescer uma civilização organizada e próspera, tendo como fé a adoração aos elementos da natureza, e o samba dizia assim:

“Surgiu no raiar de um novo dia

Nasceu, no solo fértil da mãe

África

A nação guerreira, Yorubá

E hoje a Cubango vem mostrar

Com braço forte e valentia Oduduá se fez senhor”

O segundo setor é dedicado a Oranian e a unificação da Nação Yorubá. O filho mais novo de Oduduá, se torna o mais poderoso de todos os seus irmãos, e rei da cidade de Oyó. O mais bravo guerreiro, batalha com todos os reinos vizinhos. Vitorioso, faz a unificação e, apesar de ter vencido suas batalhas, não mata os governantes que reinavam nessas cidades, os mantendo no comando, na condição de jurarem fidelidade ao poder centralizado agora, na cidade de Oyó, governado por Oranian, se tornando líder supremo da Nação Yorubá. E o samba-enredo dizia assim:

“E o destemido Oranian rei de Oyó

Criou a suprema dinastia

Bravos na luta

Não se entregavam jamais”

O terceiro setor era mostrado a representação do domínio que cada Orixá tem em determinada parte da natureza. A força mística da religião africana vinha da valorização dos elementos naturais: água, terra, fogo e ar, em outras palavras, era o reconhecimento da “Mãe Terra” como fonte da vida. Vale salientar, que cada tribo, região e cidade possuía um Orixá específico de adoração e culto, não existia um panteon organizado e único de seus deuses para um culto abrangente, eles eram cultuados de forma isolada. E o samba enredo dizia assim:

“Nas suas crenças e seus rituais

Cultuavam as forças naturais”

O quarto setor mostrava a vinda dos filhos da África para o Brasil como escravos. Os conflitos aconteciam nos reinos africanos, atingindo a poderosa civilização Yorubá. Esse caos causou seu enfraquecimento, permitindo serem conquistados, escravizados e deportado para as Américas como escravos. Aqui no Brasil, o povo africano vai aprender a superar suas diferenças e rixas tribais e se unirem na fé em busca por liberdade. E o samba-enredo cantava assim:

“Do pranto à união Um canto em oração

Que o ideal da liberdade Não seja ilusão”

O quinto setor vai mostrar o nascimento do Candomblé no Brasil. Com a chegada do povo Yorubá, principalmente na cidade de Salvador, Bahia, sendo uma das civilizações africanas mais avançadas, um elo de comunhão vai ser iniciado e organizado por eles com o objetivo de se verem livres da escravidão, isso será fundamentado pela fé nos seus Orixás. Em solo africano, cada Orixá era cultuado em regiões especificas e de forma isolada. Não havia um panteon de deuses organizados e cultuados num todo, e isso ocorre aqui no Brasil, com o auxilio dos Yorubás.

Como a procedência dos escravos eram de diferentes regiões da África, cada grupo um Orixá especifico de adoração, o que dificultaria uma união pela fé em seus deuses, de forma inteligente foi reunido todos esses orixás num único panteon, onde poderiam ser cultuados por todos, colocando um fim nas diferenças tribais pela fé, dessa forma nasceu o Candomblé no Brasil. O terreiro mais antigo e pioneiro dessa religião de matriz africana no país, foi a Casa Branca do Engenho Velho, em Salvador, objeto de homenagem do último setor do enredo. E o samba cantava assim:

“Em nosso chão a reunião de tradições e louvações

As sementes floresceram na sagrada Bahia

Na casa branca do Engenho Velho

Em Salvador de todos os Orixás

O Candomblé ergue o seu império

A chama que não se desfaz”

O projeto desse carnaval era fantástico, fantasias e alegorias que se complementavam. Na quadra a disputa de samba-enredo foi das mais difíceis com verdadeiras obras de arte sendo cantadas. No barracão, a escola que tinha fama de carros alegóricos sempre pequenos e “bunitinhos”, os famosos feios arrumadinhos, ficou no passado. Criei as alegorias de forma que elas dobrariam de tamanho e ocupariam a largura da avenida e atingiriam o máximo na sua altura. Convidei um time fabuloso de destaques que somados aos existentes na escola, fizeram roupas novas para o desfile.

O samba vencedor foi do grande e saudoso compositor Flavinho Machado, ao qual presto minha homenagem. Para a decoração das alegorias trouxe a nata do bom acabamento para a escola. A energia era incrível. Achava engraçado o espanto que o enredo causava em outros colegas carnavalescos, numa entrevistas dessas onde se reúne vários profissionais, fui perguntado se não tinha medo de propor um enredo onde mexeria com forças tão poderosas, e sem nenhuma dúvida afirmava que não, pois o respeito e a pesquisa era o fundamento principal do enredo.

Chegamos ao dia do desfile, estávamos na concentração do lado do “Balança mais não cai”, enfrentaríamos a problemática do viaduto e aquela curva mais fechada de acesso à Sapucaí. Na concentração era um verdadeiro encanto, os componentes maravilhados, alguns choravam emocionados, não acreditando que aquela era a sua escola de samba amada, os carros eram gigantes, as fantasias bem elaboradas e acabadas e a medida que tudo se reuniu, víamos um “gozo” coletivo de felicidade, dava para sentir essa energia linda e positiva no ar. Tínhamos a certeza da aprovação e felicidade da ancestralidade africana e dos Orixás.

A Cubango nunca foi considerada pelas demais competidoras naquele ano como favorita, ninguém achava possível que aquela escola simpática e “bunitinha”, com um barracão que era um corredor em curva, poderia fazer um grande Carnaval.

As favoritas de 2005 eram: União da Ilha, Rocinha e São Clemente. E assim foi até acessarmos o setor de armação, quando o público e todos os presentes viram o que a escola tinha preparado, quando o nosso interprete Tiãozinho Cruz começou a entoar nosso hino oficial, um arrepiou e uma emoção tomou conta de todos. Ouvia da mídia especializada, que fica localizada na pista no setor 1, que a “campeã” chegou! Vi pessoas incorporando, a escola parecia possuída pela ancestralidade.

Tudo ia perfeito até a entrada da terceira alegoria, que não e fez a curva para entrar na avenida, seguiu reto rumo a concentração da outra escola. Nesse momento incia o caos que tomou conta das alegorias, pois o mesmo aconteceu com a quarta e com a quinta, sendo que no caso da quarta alegoria, faltou estrutura na concentração para terminar a montagem das composições.

A escola abriu três buracos enormes pelos problemas com as alegorias, e em mim surgiu aquela sensação de morte de um trabalho, e o perigo da escola descer para o grupo debaixo. Todos que acompanham Carnaval sabem que quando uma escola tem apenas um problema como esse de abertura de buraco, já tem seu carimbo certo para descer de grupo. No nosso caso foram três! Fora isso, o desespero tomou conta dos diretores da escola e, na dispersão, os três últimos carros bateram na praça da apoteose ficando presos, um seguido ao outro, causando outra situação caótica, fazendo a escola, só nesse quesito dispersão, perder o número máximo de pontos.

Nesse momento tem sempre aquele que vem ao seu ouvido falar bobagens do tipo: não falei que era perigoso falar de um tema como esse. O que seria um desfile para celebrar o primeiro campeonato da escola, terminou com choro e muita preocupação, pois todos davam como certa que na apuração a escola seria rebaixada para o “grupo W”.

Na terça-feira gorda, quando sai a lista dos agraciados pelo Estandarte de Ouro como os melhores do Carnaval, estava lá, o nome da Acadêmicos do Cubango, vencedora do único estandarte, até então, dedicado ao Grupo de Acesso, de “melhor samba-enredo”. Era a primeira vez que a escola tinha ganho esta honraria, e que ajudou muito a amenizar toda a preocupação e temor com a apuração.

Veio a apuração, e pasme amigo leitor, sabe qual a colocação da escola nesse desfile? Fomos a sexta colocada! O nosso desfile mesmo com todos esses problemas apresentados, que não foram poucos, e sendo penalizada em todos, conseguiu esse honroso lugar. E isso significou que caso tivéssemos feito um desfile sem problemas técnicos, seriamos campeões com léguas de distância da segunda colocada. Um consolo para um lindo trabalho…

E vocês devem estar se perguntando o que houve com as alegorias, porque elas não entraram de forma normal e tranquila na Avenida? Segundo boatos apurados, os três últimos motoristas das alegorias estavam bêbados! E assim foi embora nosso título sonhado com o Carnaval em homenagem ao Candomblé.

Digo hoje a todos que vem com essa conversa fiada de colocar a culpa nos Orixás, eles nos protegeram, olha o resultado. Os culpados foram os que escolheram esses motoristas e o despreparo deles para a função que ocupavam naquele momento, colocando tudo a perder pela falta de responsabilidade.

Na semana que passou, soube pela imprensa que a Acadêmicos do Cubango vai reeditar esse enredo ou algo baseado nele, na Série Prata, na Intendente Magalhães. Fiquei feliz em saber que um enredo autoral meu está merecendo uma reedição, uma prova de qualidade e respeito a obra do artista.

Afirmando que esse enredo marcou a ruptura da Acadêmicos do Cubango de ser uma escola de samba que apenas vinha para desfilar e não se preocupar com descenso. Desejo todo sucesso para essa querida e guerreira Comunidade da Cubango, esperando vê-la conquistar, com este enredo, seu regresso para à Sapucaí, lugar de onde nunca deveria ter saído! Salve a Cubango! Salve a ancestralidade! Salve o Candomblé!

Jaime Cezário é arquiteto urbanista, carnavalesco, professor e pesquisador de Carnaval.

Começou sua carreira como carnavalesco no ano de 1993, no Engenho da Rainha. Atuou em diversas escolas de samba do Rio de Janeiro, entre elas, a Estação Primeira de Mangueira, São Clemente, Caprichosos de Pilares, Paraíso do Tuiuti, Acadêmicos do Cubango, Leão de Nova Iguaçu e Unidos do Porto da Pedra. Fora do Rio, foi carnavalesco da Rouxinóis, da cidade de Uruguaiana, e União da Ilha da Magia, de Florianópolis.

Em 2007 e 2008 elaborou o trabalho de pesquisa que permitiu a declaração das escolas de samba que desfilam na cidade do Rio de Janeiro como Patrimônio Cultural Carioca, junto da Prefeitura do Rio de Janeiro e do IRPH, o Instituto Rio Patrimônio da Humanidade.

Em 2013, a fantasia da ala das baianas – criada por Jaime para o Carnaval de 2012 para a Acadêmicos do Cubango –, entrou para o acervo permanente do Museu de Arte Moderna de Iowa, no EUA.

Essa fantasia está exposta no setor dedicado as festas folclóricas da América Latina e representa o Carnaval das escolas de samba do Brasil. Esse feito fez de Jaime o primeiro carnavalesco a ter uma obra exposta em acervo permanente num museu internacional.

Crédito das fotos: divulgação
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do portal SRzd

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