Artigo: ‘A hipocrisia pode conseguir tudo, exceto ser moderada’, por Jorge Renato Ramos

Ensaio de rua da Mocidade. Foto: Eduardo Hollanda

Ensaio de rua da Mocidade. Foto: Eduardo Hollanda

A frase do título da coluna é do pensador, filósofo e aforista alemão Emanuel Wertheimer. Ainda sobre o tema hipocrisia, com sabedoria o Professor Paulo da Portela e o mangueirense Hermínio Bello de Carvalho compuseram “Orgulho, hipocrisia”, sucesso na voz de Clementina de Jesus, a Quelé:

“Orgulho, hipocrisia, vaidade e nada mais
são três coisas que em menos de um segundo se desfaz
o mundo é mesmo assim, cheio de ilusão
a arte de convencer meu coração
a vida mal vivida é ilusão
vaidade nunca fez bem a ninguém
é tudo hipocrisia, orgulho e nada mais
a vida que passou não volta atrás”

Por que uma coluna em um site que divulga o Carnaval bate tanto na tecla da hipocrisia? Falarei sobre preconceito também. Velado. Porque, ora, é o que está bem claro na fala dos muitos que se levantam, supostamente à favor da ciência e da saúde, mas que, na verdade, todos nós sabemos disso, apenas querem destilar um pouco do seu veneno contra as escolas de samba e o carnaval popular.

Se algum sambista voltou ao planeta Terra agora e ainda não está ciente da grande polêmica do momento, pelo menos para nós, deixo-os situar um pouco da situação: supostamente por conta do aumento expressivo do número de casos de Covid-19 no estado do Rio, em virtude do avanço da variante Ômicron, autoridades e otoridades sugeriram o cancelamento do carnaval de rua e dos desfiles de escolas de samba. Aliás, o prefeito resolveu cancelar o carnaval de rua na cidade, os desfiles ainda estão em análise. O mais estranho foi ver a Riotur sugerir o cancelamento dos desfiles. Não seria o caso de alguma Secretaria de Saúde fazer isso?

Tão estranho quanto, foi um infectologista, fundador de um dos blocos da cidade, dizer que o verdadeiro carnaval é o dos blocos da Zona Sul do Rio, defendendo também o cancelamento dos desfiles. Estranho e lamentável foi ver a postura de alguns políticos, que, até ontem, se pensava que estavam fechados com o povão. Pior foi ouvir dessa mesma gente que desfile de escolas de samba é elitizado. Não se deixem enganar. As pessoas são o que são. Ideologias políticas podem nortear algumas de suas ações e pensamentos, mas, no íntimo, basta uma distração e elas se revelam.

É aí que a hipocrisia se mostra presente: proíbe-se o Carnaval popular, os desfiles das escolas de samba, em nome da saúde e da ciência, mas faz-se vista grossa para o “Rock in Rio”, festivais sertanejos, transporte público lotado, diversos shows ocorridos Brasil afora e, principalmente, jogos de futebol com presença de público. A propósito, não pode haver desfiles na Sapucaí, mas na terça-feira de Carnaval, provavelmente teremos 60.000 pessoas no Maracanã para o jogo da volta do Fluminense na Libertadores, contra o Millonarios de Bogotá. Lá as pessoas devem ser imunes à Covid-19. Ah! Não pode haver carnaval de rua, mas, se você tiver dinheiro, pode ir a um dos inúmeros bailes de carnaval animados até mesmo pela turma dos blocos do “Carnaval verdadeiro”. Pagando bem, que mal que tem?

Somos nós, tão somente NÓS, sambistas, que estamos na trincheira contra os inimigos que tentam, dia após dia, ano após ano, diminuir ou até mesmo destruir o que os antigos levaram anos para erguer: os pilares sólidos das escolas de samba do Rio. O preconceito, às vezes revelado até em ódio, é velado. Às vezes uma camadinha de verniz esconde um pouco, mas logo ela se apaga. Somos quase que membros de uma seita, cada vez mais reduzida, de fanáticos pelas escolas. Enxugamos gelo enquanto nossos inimigos vêm com maçarico em cima, para acelerar o derretimento das escolas. Os que deveriam ser os primeiros a levantar a voz contra essa covardia se calam, se omitem, aliás, como sempre fizeram nos últimos quase quarenta anos. Dirigentes da Liesa ou das escolas só reclamam quando pleiteiam mais verba pública. Só. A Globo impõe, ano a ano, a redução do tempo de desfile; sem destaque algum na programação, aliás. E nenhum dirigente fala nada. Gente de todo tipo apedreja as escolas nesse momento. Você viu algum dirigente da Liesa ou de alguma escola rebater algo, vir a público em defesa das agremiações? Nem eu nem ninguém.

Não fizeram nada para defender as escolas dos ataques sofridos ultimamente, nem tampouco fazem alguma coisa para atrair a atenção do público em geral, muitas vezes indiferente às agremiações e que, com isso, reverberam o discurso de ódio de muitos. Quem aí não ouviu que “é um absurdo destinar tanto dinheiro para as escolas de samba e não para a saúde e educação”?

Se quem deveria fazer não faz, seremos nós a defesa contra os ataques medonhos sofridos pelas escolas, como aliás tem sido ao longo desses anos. Escola de samba é um negócio danado. Apanha de todos os lados, mas resiste e se renova.

Por fim, convido quem acusa as escolas de samba de serem elitizadas ou de não fazerem parte do que julgam “Carnaval de verdade” a visitar um barracão, a comparecer um ensaio técnico de rua, no subúrbio do Rio de Janeiro ou na Baixada; a assistirem a um desfile na Intendente Magalhães e verem o sacrifício que é colocar uma escola na Avenida, seja ela do Especial, ou, principalmente, do Acesso ou, melhor ainda, perceberem o quanto de amor e identidade estão envolvidos entre público, funcionários, desfilantes e as escolas de samba.

“Há pessoas que não sabem, porém, que a vitória do samba – se assim se pode chamar o que existe atualmente – pertence a uma parcela da população que sofreu violências, perseguições e preconceitos exclusivamente pelo ‘crime’ de cantar, tocar e dançar esse mesmo samba” – (Antônio Candeia Filho”)

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