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Pioneirismo do Salgueiro na temática afro-brasileira anos 60: verdade ou mito?

– Leia a parte 1 sobre o assunto acessando aqui

PARTE 2

Em 1969, o médico Hiram Araújo e o farmacêutico e oficial do Exército Amaury Jório lançaram o livro Escolas de Samba em Desfile: Vida, Paixão e Sorte. Essa obra foi a primeira dedicada exclusivamente ao tema escolas de samba. Os dois autores criaram o primeiro departamento cultural em escolas de samba, o do GRES Imperatriz Leopoldinense. O levantamento de dados, a partir de uma pesquisa aos escassos documentos das agremiações, permitiu a construção de uma espécie de cartilha para que os leigos pudessem compreender o universo das escolas e a sua importância sociocultural na cidade do Rio de Janeiro.

Em relação ao pioneirismo do Salgueiro, agremiação classificada pelos autores como uma das quatro “Super Escolas” (as outras três eram a Portela, a Mangueira e o Império Serrano), alguns marcos foram apresentados. Um personagem que emergiu com força no primeiro momento de destaque foi o do ex-presidente Nelson de Andrade, apontado por Hiran e Amaury como a força motriz das inovações que a escola apresentou no início dos anos 1960.

“Coube aos Acadêmicos do Salgueiro em 1960, na gestão de Nelson de Andrade, revolucionar a estrutura das Escolas de Samba ao introduzir inovações como: coreografia contada (outros dizem marcada), dinamização na concepção dos enredos, figurinos mais livres e modernos, teatralização no todo da escola pela criação de espetaculares “shows” ambulantes… Todas estas alterações – que viriam dar nova vida às Escolas de Samba – foram frutos de um trabalho de artistas de cultura erudita que encontraram nas Escolas de Samba um campo propício para o desenvolvimento de suas concepções de arte. Estes artistas foram: Fernando Pamplona, Arlindo Rodrigues, Nilton Sá e o casal Nery. A introdução destes artistas se deve a Nelson Andrade, um homem sem dúvida nenhuma de grande visão e que sentiu que o único caminho do SALGUEIRO – uma Escola pobre – seria renovar.” (ARAÉJO e JÉRIO, 1969, p. 122)

O livro de Araújo e Jório, segundo a minha pesquisa, foi o primeiro a denominar de “revolução”, a ação da agremiação tijucana. O conceito, normalmente atribuído ao Salgueiro pela sua postura plástica e temática nos anos 1960, encontrou esteio e se tornou recorrente na bibliografia sobre o tema nos anos 1990 em diante.
A “revolução” citada na obra dialogava com a própria situação política do país. O Golpe Militar, chamado a princípio da mesma forma buscou consolidar o termo, como algo positivado. As esquerdas, entretanto, compreendiam o conceito a partir do viés de transformações sociais que estavam sendo experimentadas em Cuba, na China, na União Soviética. Se não era possível discutir a ideia de revolução, relacionado a vida política brasileira, no contexto carnavalesco, a utilização do conceito, percebido como de transformação radical, poderia ser usado, sem grandes consequências ideológicas.

O discurso do pioneirismo em relação às viagens, nacionais e internacionais, também foi destacado pelos dois pesquisadores. “Em 12 de setembro de 1959, a convite do Presidente da República, Dr. Juscelino Kubitschek de Oliveira, o Salgueiro apresentou-se em Brasília”, ainda em obras. A viagem da delegação salgueirense a Cuba também ganhou destaque na narrativa da dupla. (ARAÉJO e JÉRIO, 1969, p. 123)
Outros fatos foram apresentados como ações pioneiras do Salgueiro, como, por exemplo, ter sido “a primeira Escola de Samba a gravar seu samba enredo em 1956”. Os autores do livro fizeram essa afirmação seguindo as declarações de Nelson de Andrade. Ainda seriam destacados, como ousadias salgueirenses o desfile de 1963, com a participação da coreógrafa Mercedes Batista, e a revelação de Isabel Valença, destaque especial da escola.

“Em 1963, Mercedes Batista, introdutora do passo marcado, ensaiou 150 pessoas, que se apresentaram no Carnaval de Chica da Silva, com o “ballet” imitando o minueto. Neste Carnaval um personagem deste enredo ganhava vida própria – a figura histórica de Chica da Silva, vivida por Isabel Valença, deste momento em diante, se incorporava no mundo do samba, sob a forma de destaque permanente.” (ARAÉJO e JÉRIO, 1969, p. 122)

A obra de Hiram Araújo e Amaury Jório teve certa repercussão e influenciou a geração de escritores sobre as escolas de samba nas duas décadas seguintes. Lançada em 1974, a obra de Sergio Cabral, As Escolas de Samba: o quê, quem, como, quando e por quê, procurou contar a história das escolas de samba do Rio de Janeiro, desde sua origem até o momento do lançamento do livro. A estrutura do texto foi montada a partir de tópicos que eram entremeados por entrevistas com sambistas: Antes das Escolas; Deixa Falar (sobre a chamada primeira escola); A Mangueira e sua Estação Primeira; O distrito de Irajá (sobre a Portela e o Império Serrano); O Morro do Salgueiro; Outros redutos; Os Desfiles do Ano (1932-1974); As escolas de samba de São Paulo, e, por fim, Para Onde Vão?.

Sobre os anos 1960, e especificamente sobre o Salgueiro, algumas afirmações foram solidificadas ao longo dos anos pelo próprio jornalista e depois pelos diversos autores que escreveram sobre as escolas de sambal. Ao retratar o Carnaval de 1959, a versão sobre o papel da importância de Fernando Pamplona começava a ser construída pelo jornalista.

“Com seu enredo Debret, a Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro foi a grande rival da Portela que conquistava pela segunda vez um tricampeonato. Mas o Salgueiro estava tão bonito que o artista plástico Fernando Pamplona, integrante da Comissão julgadora (ao lado de Lúcio Rangel, Édson Carneiro, Eneida, Bela Pais Leme e Brasil Easton), resolveu que a partir do ano seguinte colaboraria na confecção do enredo da escola.” (CABRAL, 1974, p. 133)

O emblemático desfile do Salgueiro, no Carnaval de 1960, Zumbi dos Palmares, estranhamente não foi comentado. O Salgueiro mereceria outro momento de destaque no texto de Cabral quando o autor narrou o desfile de 1963. Entre elogios e críticas, o jornalista destacou o início do processo de espetacularização pioneiramente apresentado pela escola.

“Foi lindo o desfile do Acadêmicos do Salgueiro e ninguém tinha dúvidas de que venceria o desfile, como, de fato, venceu. Lindo, porém, perigoso. É que ninguém insinuava um tipo de espetáculo estabelecendo um novo tipo de hierarquia em que o samba mesmo ficaria em plano inferior. Com seu enredo Chica da Silva, o Salgueiro, além de apresentar belíssimas fantasias e alegorias (e um belo samba, honra seja feita), trazia alas compostas inclusive por bailarinos profissionais apresentando outras danças, como o minueto. Felizmente, dois anos depois, a dança do Salgueiro voltou a ser a do samba, e a partir daí poucas escolas passaram a mostrar a dança do samba com tanta espontaneidade como o Salgueiro.” (CABRAL, 1974, p. 136)

Nos demais carnavais dos anos 1960, narrados por Cabral, o Salgueiro figurou apenas no apontamento dos resultados finais. Até mesmo nos anos de 1965 e 1969, quando a agremiação se tornou campeã, o jornalista não conferiu destaque. Se as citações anteriores não foram tão intensas para demarcar o início de uma construção narrativa do pioneirismo do Salgueiro, no tópico final do livro Para onde vão?, é possível perceber alguns marcos sendo estabelecidos, como a presença do ex-presidente do Salgueiro, Nelson de Andrade; da dupla Fernando Pamplona e Arlindo Rodrigues; da estética afro-brasileira, inserida pelos dois carnavalescos; das descaracterizações que a escola havia trazido no processo de transformação do espetáculo.

“Felizmente a grande modificação do – digamos – aspecto visual coube a duas pessoas que entendiam perfeitamente do fenômeno cultural das escolas de samba: os artistas plásticos Fernando Pamplona e Arlindo Rodrigues. É verdade que cometeram alguns equívocos, mas souberam fazer uma revisão dos erros assim que os perceberam. […] Eles perceberam, por exemplo, que os enredos poderiam sair daqueles temas patrioteiros forçados na época do Estado Novo para outros mais identificados historicamente com a raça negra predominante nas escolas. E surgiram enredos como Zumbi dos Palmares, Debret, Chica da Silva, Chico Rei, etc.Sendo artistas extremamente talentosos, as alegorias e as fantasias que passaram a confeccionar impressionaram pela beleza. […] O Salgueiro, de qualquer maneira, foi a escola que fez a grande mudança naqueles anos. O seu presidente de então, Nelson de Andrade, estava tão convencido da importância das modificações que sua escola introduzia que uma vez, num rasgo de imodéstia, me disse: – Se você quiser escrever a história das escolas de samba não se esqueça que ela se divide em duas partes: antes e depois de Nélson de Andrade. Mas houve críticas, algumas infundadas, ao trabalho que Fernando Pamplona e Arlindo Rodrigues realizavam. […] Outras escolas sabiam que o Salgueiro estava propondo uma mudança mas não entendiam o que se passava […].”

A escrita de Sergio Cabral no livro de 1996, As Escolas de Samba do Rio de Janeiro, apresentou um aprofundamento maior em relação às narrativas apresentadas em seu livro de 1974. A contundência de algumas críticas foi amenizada, e a correção cronológica em relação aos fatos narrados também foi notada. Essa obra foi uma das primeiras publicações especificamente sobre o tema e merece ser reverenciada. Ao lado da obra de Haroldo Costa, Salgueiro Academia de Samba foram responsáveis por perpetuar ao Salgueiro a imagem de escola pioneira em vários pontos e principalmente na “descoberta” da temática afro-brasileira nos desfiles cariocas.
Na próxima semana (dia 27), dando sequência a nossa série, destacarei o livro Salgueiro Academia de Samba, do jornalista Haroldo Costa. A obra foi uma importante contribuição e, sem dúvida, ajudou a construir as bases do discurso do pioneirismo dos Acadêmicos do Salgueiro. Até lá!

Leia também:

– Minha paixão pelas escolas de samba

 

*Guilherme Guaral é historiador e colaborador voluntário do SRZD

Redação SRzd

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