Eldorado do samba traz a magia das bonecas em sua estreia no Carnaval Virtual

O GRESV Eldorado do Samba apresenta seu enredo de estreia no Grupo de Acesso do Carnaval Virtual 2020, a escola trará a magia das bonecas com o enredo: “Quem quer brincar de boneca neste carnaval? Histórias que vão dar o que falar!” de autoria do enredista Anderson Ribeiro.

 

FICHA TÉCNICA:

Escola: Grêmio Recreativo Escola de Samba Virtual Eldorado do Samba
Cidade sede: São Paulo
Data de fundação: 08/04/2020
Cores: Azul, amarelo e dourado
Símbolo: Dragão

Presidente: Henry de Oliveira Bernardo
Carnavalesco: Douglas Willian da Silva
Enredista: Anderson Ribeiro
Intérprete: Ricardo Santos

 

ENREDO:

Quem quer brincar de boneca neste carnaval? Histórias que vão dar o que falar!

Anderson Ribeiro

“– ‘Mas afinal de contas, Emília, que é que você é?’
Emília levantou para o ar aquele implicante narizinho de retrós e respondeu:
– ‘Sou a Independência ou Morte’.” (Memórias da Emília)

 “- Sou de pano, sim, mas de pano falante, engraçado paninho louco, paninho aqui da pontinha. Não tenho medo de vocês todos reunidos. Aguento qualquer discussão. A mim ninguém embrulha nem governa. Sou do chifre furado – bonequinha de circo. Dona Quixotinha …” (Dom Quixote das Crianças)

“Eu nasci boneca de pano, muda e feia, e hoje sou até marquesa. Subi muito. Cheguei muito mais que vintém. Cheguei a tostão.” (Fábulas)

Ao abrir a caixa de magia das bonecas, nos deparamos com o maravilhoso, o encantamento, o fascínio, o feitiço, o enlevo, o sortilégio, o profano, a macumba. Quem nunca se deslumbrou com uma boneca? O que trazem? Quais são as suas representações culturais? De onde vieram? Quem as poderia ter? Havia bonecas sagradas? São de verdade, de mentira o chamariz para o nosso carnaval? A Grêmio Recreativo Escola de Samba Virtual Eldorado do Samba orgulhosamente apresenta:

“Quem quer brincar de boneca neste carnaval? Histórias que vão dar o que falar!”

 

Abram alas: justificativa

Se é verdade o preceito bíblico de que somos deuses, de que somos dotados de real inteligência a ponto de formarmos uma identidade, é possível perceber nas bonecas, de forma geral, seu valor encantatório e simbólico a tal ponto que nos projetarmos em tais bonecas. Atribuímos ao conhecido brinquedo alma. Para Jung:

Um ser que tem alma é um ser vivo Alma é o que vive no homem, aquilo que vive por si só gera vida; por isso Deus insuflou em Adão um sopro vivo a fim de que ele tivesse vida. Com sua astúcia e seu jogo de ilusões a alma seduz para a vida a inércia da matéria e não quer viver.

A boneca nada mais é do que um objeto anímico projetado por nós, “representação humana, frequentemente provida de membros articulados, para melhor imitar a vida, permitindo desempenhar todos os papéis e praticar todos os deslizes simbólicos e imaginários” (MANSON, 200, p. 22). Mais ainda: a projeção das bonecas como “seres” nos coloca em um patamar que passou a ameaçar o domínio cristão no mundo. Adentramos, com isso, no tempo da festa, no tempo do carnaval e da celebração do universo do “faz de conta”.  Fonte da força humana e diante de tantas possibilidades da ideia de corpo, as bonecas passaram a preparar as meninas para a maternidade. Todos, principalmente na infância, tiveram, ainda que indiretamente, um contato com o mundo das bonecas. É o mundo das brincadeiras, que independe do tempo cronológico.

 

História para se carnavalizar

Para nos contar essa história direitinho tal como ela é, a G.R.E.S.V. Eldorado do Samba convida a boneca falante de Monteiro Lobato para fazer uma contação sobre as bonecas. Emília já tem lá suas memórias, as memórias da Marquesa de Rabicó. Não contem com cronologia dos homens de verdade da Terra, os doutores da ciência. Nada mais justo do que uma boneca para nos contar o que se passou com sua linhagem.

De uma caixa de costura
Pano, linha e agulha
Nasceu uma menina valente
Emília a Boneca-Gente

Nos primeiros momento de vida
Era toda desengonçada
Ficar em pé não podia, caía
Não conseguia nada

(Pepeu Gomes/ Baby do Brasil)

 

Com a palavra…

“Eu sou dona da palavra. Deus é quem cria. Eu sou deusa e só vou contar a história das boneCAS, no feminino como aprendi. Nada de Adão, nada de heróis masculinos. Acabo de colocar todos na fogueira…”

“Mas, Emília (disse-lhe Monteiro, o Lobato)”

“Não tem mas de porém, Seu Monteiro. Ou é assim ou a fogueira da DESsanta inquisição. O senhor está virando inquisidor.”

“Não somos responsáveis por nossas criaturas. Elas acabam tendo vôo próprio. Atenção todos com a ousadia desta menina.”

“Deixe comigo, Seu Lobato.Terei caráter mas não coerência…

“Mas é importante ter os dois”…

“Posso começar? O senhor está me atrapalhando…

“Tudo, tudo, tudo começou com uma grande explosão com penas de ganso. Eu adoro os gansos mas eles farão parte da explosão para serem lembrados nessas memórias das bonecas como o verdadeiros heróis. Dona Benta me emprestou um livros desses dela empoeirados cheios  de histórias. Vamos ver o que me serve… Então [abrindo o livro de dona Benta para ler] tudo começou com uma gran-de explosão de penas…”

A boneca tem sua origem há 40 mil anos, na África e na Ásia, onde foram encontradas as primeiras figuras de barro para rituais.

“Eu adoro a áfrica e a Ásia. Por mim toda história começaria por lá, por aquelas bandas”

O vodu ultrapassa a ideia de boneco com alfinetes espetados. É uma prática religiosa, na qual os adeptos entram em contato com o mundo espiritual para pedir orientação sobre quaisquer problemas. Os rituais e os nomes dos deuses divergem consideravelmente, mas a essência é bem semelhante com a do candomblé brasileiro. Isso porque essas crenças surgiram na mesma época e na mesma região da África: no século 4 a.C., na faixa de terra que hoje vai de Gana até a Nigéria. Com a diáspora de escravos para as Américas, cada região expandiu variações da matriz africana.

“Pode parar, seu livro? Eu quero que fale das bonecas que eram vodus”

Os conhecidos bonecos de vodu são como patuás que acarretam sorte, saúde, dinheiro, amor. Eles são decorados com cores distintas, conforme o pedido feito, e devem ser colocados em uma estante dentro de casa. Diante dele, o adepto ou crente deve repetir seu pedido diariamente. O boneco pode até ser usado para afastar alguém, mas espetar agulhas não faz ninguém sentir dor. A lenda foi disseminada pelo cinema e por quem não conhece a religião.

“Ainda bem que o Senhor Livro está me dizendo isso. Muitas pessoas acreditam nessa prática de furação. Eu não quero na minha história ser furada por NEnhuma dessas magias!”

Cada vodun tem um tipo de oferenda: pode ser um prato feito com vegetais ou o sangue de algum animal. Nesse caso, o adepto procura o sacerdote, que coordena o trabalho espiritual para matar o bicho (galinhas, cabras, bodes e até bois) do jeito certo, dentro da ritualística: cortando o pescoço e deixando o sangue cobrir a comida ofertada. O animal é então abatido. O coração e o fígado servem de sacrifício e o resto é utilizado em almoços com a comunidade do dito axé.

“Que história mais mórbida! Vamos então sacrificar os larápios da nação, com toda licença ao povo africano. Já pensou se sacrifico o Rabicó? Ouçam, ainda tem mais… Estão achando que as bonecas sempre foram bonitas como eu?”

Para Chevalier e Gheerbrant,

As estatuetas africanas não visam a representar exatamente um ancestral ou um ser determinado. […] devem conter sua força vital e assegurar a prosperidade da família. São muitas vezes ligadas ao resto do morto, ou emergem de cestos e sacos de ossos. Quando as famílias se subdividem, uma nova estatueta é executada e levada por aqueles que partem, para que a relação com o ancestral seja mantida. O objeto esculpido, ao sair das mãos do artista, não tem essa carga de afetividade. Ele só será consagrado, impregnado de forças religiosas, depois dos ritos apropriados. […] O africano jamais confunde a imagem com o que ela representa. (grifos dos autores)

“Essa coisa de ‘ancestral’ aprendi outra vez, de outro tempo, com o prosa do Visconde de Sabugosa. Há coisas no mundo que a gente não duvida… É ancestral então porque está relacionado aos nossos antepassados. Os africanos são travessos. Gosto deles. Informo que minha ancestralidade sou eu…”

Abayomi é o nome de uma boneca negra feita de pano. Historicamente, as bonecas têm presença essencial em manifestações culturais e religiosas do povo negro. As Bonecas Feias surgem na máquina de costura. O desenho do corpo acontece na agulha, com o pano avesso ainda, o que sugere certa espontaneidade. Ao terminar a primeira costura, desvira-se o avesso e, só então, se revela o que foi feito. Nesse estágio, incompatível com qualquer planejamento, não há figurino, apenas autenticidade, singeleza e empenho ao que vier – da mesma forma como nascem pessoas reais: diferentes, cada uma à sua maneira, singulares, cada uma com suas idiossincrasias. A partir disso é que virão, ou não, de forma espontânea, os detalhes em lápis, tinta acrílica botões, retalhos, pedaços de lã ou algum acessório. Quando por acaso ganham rostos, são pinturas de olhos espantados, narizes grandes, bocas que vão de lado a lado da face. Os cabelos podem ser ralos de lã ou careca. É possível que o corpo seja seja mais infantil ou um corpo adulto. O gênero é indefinido na maioria das vezes. Os tamanhos variam entre caber na palma da mão até o tamanho de uma pessoa real. A criação é intuitiva e lúdica,. A ação de permitir e dar vazão a esse fazer acaba por gerar esses seres tão diferentes e que vieram a chamar a minha atenção para outros aspectos. Tudo, inclusive os erros, fazem parte do percurso da criação.

“Viram como eu fui feita? Só que eu sou falante, elegante, borbulhante, governante… Agora a parte que só os africanos sabem fazer, e bem! Diga-me, Senhor Livro…”

A historiografia nos assinala que, muito antes delas serem apresentadas como brinquedos infantis, as bonecas compõem parte de fundamentos de ritos religiosos. Segundo o culto dos Orixás, Oyá possui uma boneca que junto fica à sua roupa, ou no laço nas costas, na peitaça (tira de couro usada para amarrar e apertar) ou ainda sob sua saia. A boneca de Oyá (algumas pessoas denominam de Abayomi) deve ser costurada a mão pelos filhos do axé que são cuidadores do quarto de Egun e de Oyá, exceto os filhos de Oyá-Onira. Deve ser costurada a mão e preenchida com palha para que fique uma miniatura de Oyá, representando, pois, o amor de Oyá. Nada no candomblé é gratuito.

Em muitas nações africanas, o mito da fecundidade sobrevive com a mesma força “nas dobras da memória”. Quando as mulheres engravidam, entre os cuanhama, da Costa do Marfim, ou os lobi de Angola, começam a andar junto ao corpo com bonecas penduradas na cintura. Caso desejem filho homem, o objeto terá características masculinas. Se desejam uma filha, a boneca terá enfeites característicos do gênero como colares e brincos coloridos. Quando a menina ganha uma boneca de presente da mãe ou avó, é feita uma festa. Nesse momento, a família confia à futura mãe a imagem de sua descendência, resguardando-a da esterilidade.

“Palmas, palmas, palmas, muitas palmas para o povo africano. Vamos agora para os asiático. Venham comigo. Os senhores não se arrependerão. Vou colocar muitos pronomes de meio da palavra nesta parte da história.”

Para os japoneses, bonecas têm espírito, a alma a que Jung se refere. Pensamento levado bastante a sério pelos adultos. Ainda hoje, muitos japoneses crêem que, colocada na cama de uma criança doente, a boneca acabar com enfermidade, levando-a para longe. Se as mulheres foram presenteadas no dia do casamento, são consideradas símbolos de prosperidade e felicidade conjugal casal. Há mais de vinte anos, o sindicato dos fabricantes e comerciantes de Tóquio explorou a crença para estimular um lance comercial denominado Ninguyo Kuyo: “consolo da alma das bonecas”, ritual de cremação na capital japonesa. A cada 25 de setembro, as mulheres estéreis que conseguiram a graça um filho levam uma boneca para ser incinerada no templo Kiyomizu-Kannondo. Ao queimar a boneca, seu espírito carregado do sentimento de maternidade vai embora juntamente com a fumaça e a criança pode desenvolver-se em paz.

Bonecas kokeshi são inteiramente folclóricas. São de madeira, medem cerca de quinze centímetros e são feitas de maneira bem simples. A maioria não tem braços nem pernas, mas uma grande cabeça redonda com feitios infantis e um corpo cilíndrico decorado com pinturas variadas. Essas bonequinhas cheias de detalhes são normalmente bastante coloridas. Simbolizam um povo e uma época, em que as tradições falavam mais alto que nos dias atuais. São elas o foco da campanha publicitária de primavera/verão 1999 da marca Benetton, dirigida e fotografada por Oliviero Toscani. Na olhar do fotógrafo, as bonecas kokeshi foram consideradas, também, pessoas, na maior parte delas jovens ou adolescentes japoneses. Através dos seus corpos, eles tentam expressar valores incomuns à sociedade onde vivem. O Japão é um país de cultura muito estável e com poucas variações regionais. Julga-se que nesta sociedade oriental as chances de se destacar e expor sentimentos foram insignificantes durante muitos anos. Os japoneses preservam como um trato de identidade seus rituais religiosos, etiqueta, e a preservação das artes, transmitidos de geração para geração, sem grande possibilidade de ruptura e esquecimento

“E o Egito e na Europa? Tenho medo do Egito. Mas lá tem grandes histórias para contar! Vamos a elas!”

Pesquisadores julgam que a transição das bonecas como para brinquedos ocorreu no Egito, há 5 mil anos. Por volta de 3000 a.C a 2000 a.C, no Egito, as bonecas descobertas tinham um significado bem mais religioso, sendo poucas das figuras encontradas descritas como brinquedo infantil. Na maioria das vezes, as estatuetas egípcias que continham articulações tinham somente os braços articulados. Suas pernas não tinham motivos para apresentarem articulações, já que os trajes egípcios eram longos e cobriam as pernas. Foram encontradas em túmulos egípcios de crianças estatuetas trabalhadas em pedaços de madeira. As bonecas, nesse período, ainda não representavam crianças. Uma criança egípcia não podia brincar com um boneco que representasse um ídolo, mas com o que fosse um servo. As bonecas encontradas em túmulos egípcios são possíveis Ushbatis, representações humanas bastante nos ritos funerários Egípcios

Dentre as civilizações da antiguidade, a egípcia é uma das que mais oferece testemunhos e chama a atenção por seus vestígios arqueológicos e textuais de caráter funerário. A religião funerária desse povo, se levarmos em conta apenas as fontes materiais, pode ser observada tanto por construções monumentais em rocha, como por meio de tumbas escavadas, complexos funerários ou mesmo por objetos das mais diversas formas e finalidades, tais como, sarcófagos, caixões, vasos canopos ou estatuetas funerárias.(p. 64)

Conflitantes, estas ideias certamente deixariam muitas dúvidas para os próprios egípcios, visto que as estatuetas de servidores funerários visavam substituir os trabalhos agrícolas no outro mundo, governado por Osíris. Algumas estatuetas, como as que foram feitas para as “cantoras de Aton” revelam um conflito. Uma delas, confeccionada em pedra calcária, que pertence ao Museu Metropolitano de Arte, apresenta o texto “A cantora de Aton, Ísis, justa de voz”, enquanto a outra, de madeira de ébano, do acervo do Museu Britânico, apresenta o Encantamento 6 do Livro dos Mortos, onde a morta é denominada “A Osíris, cantora de Aton, Hatsheret”. A presença do nome “Ísis”, o epíteto “justa de voz” e a denominação de Hatsheret como “a Osíris”, além da aparência mumiforme das duas figuras, são todos elementos osirianos. (p.89-90)

Ainda no período Greco-latino, em 500 a.C., as bonecas ganharam os nomes de nympha e pupa, que significavam “moça pequena”. Tinham braços e pernas articulados e cabelo humano. As meninas gregas brincavam com bonecas até se casarem, quando consagravam sua boneca à Afrodite, deusa do amor e da fecundidade na mitologia romana. Durante grande parte do período clássico, bonecas fizeram muito sucesso entre as crianças, sendo muitas vezes exportadas e importadas entre as cidades. No século V a.C a IV a.C., a fabricação dessas bonecas foi intensa. Foram descobertas mais de 500 bonecas feitas nesse período, sendo possível encontrar várias cópias em diferentes museus. Apesar de haver relatos sobre a existência de figuras articuladas masculinas, elas não eram comuns, pois a boneca sempre foi muito relacionada a casa e à maternidade, espécie de símbolo da infância feminina.

As bonecas saíam para o comércio, onde os cidadãos poderiam adquiri-las para oferecerem às suas filhas. Fora o meio de produção, assemelham-se muito às contemporâneas por outros dois motivos: 1) temática das bonecas que eram vendidas para as crianças; 2) pelo protótipo (padrão corporal) existente nas bonecas nos dois períodos. As estatuetas da antiguidade traziam consigo temas recorrentes. Em sua grande parte, elas vestiam roupas típicas que simbolizavam as dançarinas do período – túnicas normalmente curtas. Levavam nas mãos tamborins e/ou castanholas. Naturalmente tais bonecas podem ser facilmente comparadas com as manequins que representam profissões. Além do que, havia estatuetas masculinas também representavam possíveis profissões da época, da mesma forma que bonecos hoje retratam moços aventureiros.

As bonecas, que possuíam fortes significados para a cultura clássica, por muitas vezes equivalendo deuses, foram duramente condenadas e deixaram de ser produzidas durante muitos séculos: as doces bonecas (objetos pagãos) agora se tornaram objetos que devem ser inutilizados, destruídos, assim como quem as produz. No início do século IV d.C., o Imperador Constantino, embora tivesse se envolvido com outras religiões, estabeleceu a Igreja Cristã como um poder no Estado. Com a igreja católica, os locais religiosos findaram-se templos para serem basílicas – e muitas vezes elas foram edificadas sobre os templos de deuses gregos, eliminando-os. Ainda assim, a boneca não deixou de existir. É fato que grande parte das bonecas foi sentenciada à fogueira ao lado de suas criadoras. Tal fato não inibiu a produtividade das estatuetas agora às escondidas. Sem as fábricas, optou-se por improvisar. Assim, as suas fabricações se tornaram domésticas, com materiais bastante perecíveis, evocando muito mais o significado lúdico do que uma intenção de simbolizar o real. As bonecas construídas nesse período foram certamente no intuito de atender a brincadeiras diárias e construídas de modo rudimentar.

Na Idade Média, as bonecas passaram a ter grande relevância na moda. As bonecas viraram espécie de manequins para a exposição de novas peças. Estilistas vestiam tais manequins com suas criações e as remetiam para rainhas e damas elegerem os modelos de seus vestidos.  Na corte de Isabel da Baviera, as bonecas ficaram conhecidas como representantes da moda. Já em 1413, a Alemanha (Nuremberg) se tornou um epicentro de produções de bonecas e lá a primeira fábrica de bonecas surgiu. Todavia, poucos exemplares das bonecas anteriores ao século XVII chegaram até atualidade.  As bonecas indicavam, pois, mudanças nos costumes, na moda, na maquiagem e nos penteados desde o século XVIII, no momento em que principiaram a produção das estatuetas em escala comercial, até os dias de hoje.   A primeira casa de bonecas de que se tem notícia data de 1558, presente de um duque alemão para a filha mais velha. A casa demorou dois anos até ficar pronta. Tinha quatro andares e diversos ambientes decorados.

Bonecas sempre foram intrínsecas ao universo da moda, até como espelho das culturas em seus tempos. Com a Idade moderna não foi diferente.  As bonecas espelhavam verdadeiras miniaturas das indumentárias do final do século XVII. Na segunda metade do século XVIII, algumas delas eram feitas com papel machê, o que baixava o custo além de ter um material de tamanha resistência. Muitas eram modeladas em madeira, revestidas com gesso e pintada, como maneira de imitarem porcelana. Ainda na Europa do século XVIII, um grande personagem da história ocidental se destaca: a Arquiduquesa da Áustria e Rainha Consorte da França e Navarra, Maria Antônia Josefa Joana de Habsburgo-Lorena ou simplesmente Rainha Maria Antonieta. Esposa de Luís XVI, a “rainha da moda” colecionou bonecas na infância e na adolescência.

Assim afeita às alegrias da brincadeira de vestir, Maria Antonieta estava eminentemente bem preparada para uma das atividades-chave de que sua mãe lhe incumbiu alguns anos mais tarde ao prepará-la para Versalhes – fazer compras para o enxoval de casamento. Isso exigia que a arquiduquesa de 13 anos passasse horas intermináveis com costureiros e chapeleiros convocados de Paris para supri-la de um guarda-roupa adequadamente luxuoso. Para exibir seus artigos, os modistas frequentemente se valiam de poupées de mode – “bonecas de moda” feitas de madeira articulada ou de gesso, precursoras tanto do manequim de loja como do modelo de passarela – vestidas com versões em tamanho reduzido das últimas modas parisienses. Comumente conhecidas como Pandoras (a “pequena Pandora” exibia trajes matinais ou informais, enquanto a “grande Pandora” era vestida com trajes de gala e de noite), essas bonecas Caixa de Pandora eram cruciais na disseminação das últimas tendências da moda ditadas pela cidade que já era reconhecida como a porta-estandarte do estilo internacional. Segundo o historiador Daniel Roche, “em tempos de guerra, as poupées gozavam de imunidade diplomática, e contavam até com escolta montada para assegurar que chegassem incólumes”.

Tais vestidos de Maria Antonieta como destacou a biógrafa Carrolly Erickson eram…

vestidos de baile, vestidos para a tarde, roupões e anáguas numa variedade de tons delicados, as sedas bordadas com desenhos florais ou aplicações de fita de seda, as orlas adornadas com grinaldas sinuosas de renda de prata e ouro, … tecidos já superdecorados [adornados] com campos de flores artificiais, plumas, borlas e laços de fita de seda, rosetas e babados, passementerie, contas e custosas franjas metálicas.

Na Europa do século XIX, bonecas eram usadas com intuito pedagógico, ou seja, como forma para ensinar às meninas as atividades do lar. Até aí não há muita originalidade. Essa brincadeira, entretanto, foi além no final do século XIX, onde as crianças tinham de tomar conta de suas estatuetas como se fossem criaturas humanas, fazendo para elas a agenda de uma casa: café da manhã, almoço, lanche, jantar etc., sempre no mesmo horário para manter a rotina. Tal controle, contudo, não foi suficiente para que as crianças, de fato, o tomassem para si.

Desde a virada do século XVIII, o progresso industrial provoca uma imensa modificação/ampliação no setor de manufatura de brinquedos, ocasionando a cisão de um sistema de produção artesanal e/ou tradicional. Antes, as bonecas eram feitas em casa e usavam as habilidades da economia doméstica. O mundo onde havia o predomínio da manufatura feminina perdeu para a motorização das bonecas feita por homens, e as bonecas passaram a ser a concretização do desejo de preparação das jovens para a maternidade.

Também conhecida como “boneca russa”, Matrioska é um famoso e tradicional brinquedo da Rússia. Consiste em uma série de bonecas, umas dentro das outras, da maior até a menor. A palavra origina-se do diminutivo do substantivo próprio “Matriona”. O número de figuras que se conseguem se juntar é, geralmente, de 6 ou 7, ainda. A beleza estética das Matrioskas está, de fato, na complexidade dos motivos pintados. Outra característica que diferencia as diversas peças são as figuras que encarnam: desde figuras femininas vestidas com trajes de camponeses à personagens lendários de contos de fadas. Há quem pense que as Matrioskas têm a sua origem na cultura japonesa. Existem diversas teorias sobre a forma como chegaram à Rússia: não se sabe se foi durante uma exposição de artes japonesas ou se vieram de Moscou como um brinquedo na forma de Fukurum e algum dono de uma loja as moldou para a cultura russa. O fato é que não foi na Rússia que surgiram conhecidas como sendo russas; foram importadas do Japão e posteriormente adaptadas, passando por um processo de aculturação.

“Eu já ouvi falar de Thomas Edison? Sopram no meu ouvido…”

 O americano Thomas Edison (1847-1931) inventou a lâmpada e o fonógrafo, idealizou um boneco falante, que influenciou Jumeau a projetar no final do século passado bonecas fonográficas, que diziam, em francês, frases como “Alô minha querida mamãezinha”. Outra boneca que andava, a “autoperipatetikos” (que anda sozinho em grego), foi inventada nessa época. Quase todo isso se encontra agora nas mãos de adultos. Hoje o hobby de colecionar bonecas é o terceiro mais comum do mundo, perdendo para coleção de dos aquários e de selos. Só nos Estados Unidos, onde fica localizado o Margareth Strong, o maior museu de bonecas do mundo. Na Alemanha, os museus de bonecas são encontrados em todos os cantos. Tudo para não deixar morrer uma história de brinquedo tão grande que nem uma boneca de pano tagarela como a Emília — imortalizada na obra de Monteiro Lobato —, por mais gostoso que seja o colo de Narizinho, teria fôlego para contar. Mas aí já é no Brasil.

 

Quando o carnaval chega ao Brasil

É uma explosão de cores e nomes, volumes, cheiros e texturas. No Brasil, é onde se é mais feliz e onde se promove a verdadeira e a mais profícua miscigenação cultural. Com as bonecas, não seria diferente. Ainda que na sociedade contemporânea se focalize o olhar comercial, há outras práticas culturais que irão dialogar com o que já expus. Da terra brasileira, destaco a simbologia das bonecas entre os verdadeiros donos da terra.

Em várias partes da Amazônia são localizados artefatos antropomorfos, na sua maioria com características femininas, como é o caso dos sítios arqueológicos na região de Marajó, e que estão associados à cultura Marajoara. Entre os Karajá (Iny) as bonecas cerâmicas (licocós, ritxòòs ou litjokôs) são utensílios lúdico-pedagógicos, que, ao observarem a sua elaboração, compreedem sobre os seus costumes e cultura, sobre o mundo natural e sobrenatural. Na sociedade Karajá a litjokô, é um meio de comunicação social cheio de mensagens.

Em Marajó, muitas estatuetas são ocas e funcionavam como chocalhos e em muitos contextos relacionada a outros artefatos ligados ao enterramento como machados, tangas, pratos, banquinhos e muiraquitãs. Era frequente a quebra da cabeça das bonecas antes de serem sepultadas ou inutilizadas. Os Cunas e Chocós também se beneficiavam de imagens ocas com pedras pequenas em seu interior que funcionavam como chocalho e alguns eram suspensos. No Amazonas, na escavação próxima ao Lago Amaña, foram encontradas imagens femininas ocas associadas a contextos funerários e com cabeças quebradas.

Muitas são as histórias ligadas a bonecas para as transformarmos em carnaval. Algumas são distantes do homem urbano como é o caso dos Karajás. No sudeste do país, com a cultura mais letrada, um brasileiro apaixonado por livros criou a boneca feia, da terra e de pano mais badalada da nossa literatura. Trata-se de Emília, a Marquesa de Rabicó.

Mas a partir do momento
Que aprendeu a andar
Emília tomou uma pílula
E tagarelou, tagarelou a falar
Tagarelou, tagarelou a falar
(Pepeu Gomes/ Baby do Brasil)

Vamos brincar de boneca? Vamos brincar com OUTRAS bonecas? Aliás, outras bonecas seriam enredo, mas aí seria outro carnaval:

Dona do meu coração
Ai ai como é bonita
Ai ai como é formosa
Ai ai Iaiá boneca é um botão de rosa
Iaiá me dá uma esmolinha
Dos beijos teus pelo amor de deus
Iaiá me dá uma esmolinha
Dos beijos teus pelo amor de deus
(Marchinha de carnaval)

Outras bonecas são travestis que passam pelo processo de EMBONECAMENTO, subvertendo a ideia de gênero, principalmente durante o carnaval, quando ganham força, vez e voz nas ruas em que comemoram uma das maiores festas populares brasileira. Evoé!

“Vou voltar para o Sítio e contar para Dona Benta cm detalhes como são as bonecas de hoje em dia! [risos]

 

Referências:

ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 1978.

BAKOS, Margaret Marchiori; SILVA, Maria Aparecida de Oliveira.  Deuses, mitos e ritos do Egito Antigo: Novas Perspectivas. São Paulo: Novas Edições Acadêmicas, s/d.

BARROS, Maria Paulina Anna Antonia Vande Wiel.  Cerâmica figurativa temática dos índios karajá: documentação fotográfica e análises de peças etnográficas da exposição permanente do MAUFG.  18º Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas Transversalidades nas Artes Visuais – 21 a 26/09/2009 – Salvador, Bahia.

BELLMER, Hans. The doll. Trd. Malcolm Green. London: Atlas Press, 2005.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números (Dictionnaire dês symboles). Trad. de Vera da Costa e Silva et al. 15 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000.

GEDDES, Joan Bel. Childhood and children: a compendium of customs, superstitions, theories, profiles and facts. Phoenxix: The OrixPress, 1996.

JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Rio de Janeiro: Vozes, 2014.

MANSON, Michel. História dos brinquedos e dos jogos: brincar através dos tempos. Lisboa: Teorema, 2002.

MEFANO, Ligia. O design de brinquedos no Brasil: uma arqueologia do projeto e suas origens. Dissertação (Mestrado em Design), Departamento de Artes e Design, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005.

RIBACKI, Natalia. Bonecas articuladas: conexões entre a história, a arte e seu ensino. Porto Alegre, 2016, 61f. Trabalho de Conclusão em Licenciatura em Artes Visuais – Curso de Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da UFRGS. Porto Alegre, 2016.

WEBER, Carolina. Rainha da moda: como Maria Antonieta se vestiu para a revolução. Rio de Janeiro: Zaha, 2008.

 

INFORMAÇÕES DA DISPUTA DE SAMBA:

– Escola irá encomendar o samba

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