Artigo – Tirolesa no Pão de Açúcar: pode o Iphan autorizar mutilação do bem tombado?

Pão de Açúcar. Foto: Pixabay

O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) poderia autorizar furo, furos ou cortes na rocha do penhasco do Pão de Açúcar, Bem Tombado Nacional e integrante do Patrimônio Mundial, para a fixação de equipamento de tirolesa neste Monumento Natural de Preservação Integral? A resposta é não. Vejamos.

Diz o art.17 do Decreto-lei 25/37, que dispõe sobre a proteção e preservação do patrimônio cultural brasileiro:

“As coisas tombadas não poderão, em caso nenhum, ser destruídas, demolidas ou mutiladas, (…).
Parágrafo único: Tratando-se de bens pertencentes à União, aos Estados ou aos Municípios, a autoridade responsável pela infração do presente artigo incorrerá pessoalmente na multa.”

No dicionário Houaiss, o verbo mutilar é definido: “1. causar mutilação em …, cortar, retalhar; 2. Causar estrago, deterioração a … 3. Suprimir parte de …, cortar, truncar”. Portanto, pouco importa se é pequeno ou grande o pedaço (de rocha ou de pedra) cortado, pois, havendo corte ou supressão de qualquer pedaço há mutilação.

Em maio de 2022, em um chamado parecer técnico absolutamente sucinto para a complexidade do caso (Parecer Técnico nº 115/2022/COTEC IPHAN-RJ/IPHAN-RJ), o Iphan encaminha pela aprovação do Anteprojeto da Tirolesa no Monumento Natural Tombado, denominado Pão de Açúcar e Morro da Urca, mencionando a seguinte frase como fundamento:

“Estritamente do ponto de vista cultural paisagístico, no que tange à visibilidade e ambiência do Bem Tombado Nacional, bem como à proteção e conservação de seus atributos, considero que o projeto para instalações de tirolesa e de novos acessos desde a trilha existente na estação do Morro da Urca pode ser aprovado por esta Autarquia”.

A rocha é o objeto essencial do Monumento Natural Pão de Açúcar. Como é possível, então, dizer que cortá-la ou furá-la não interfere na sua proteção ou conservação? É espantoso!

Dois equívocos graves, a meu ver, neste abreviadíssimo “parecer”. O primeiro erro é que a apreciação do IPHAN para o caso nada tem a ver com “visibilidade e ambiência” do bem tombado. Não se trata de apreciação da intervenção na vizinhança de bem tombado (art.18 do DL 25/37), mas sim de intervenção no próprio bem, à luz do art.17 do DL 25/37, acima mencionado.

O segundo equívoco é a inexistência de análise ou demonstração de como ou por qual motivo furos e/ou cortes na rocha do Monumento Natural patrimônio Mundial não foram considerados mutilação do bem, e a razão da afirmação de que as obras da tirolesa não interferem na “proteção e conservação de seus atributos”! Ora, a rocha é o objeto essencial do Monumento Natural Pão de Açúcar. Como é possível, então, dizer que cortá-la ou furá-la não interfere na sua proteção ou conservação? É espantoso!
Registre-se que a simplória afirmação, no “parecer” nº 115/2022, de que as novas obras da Tirolesa, no cume do Monumento, não afetam a “proteção e conservação de seus atributos”, além de não fundamentar o porquê do que aparenta ser uma mera opinião, – o que seria essencial para validar tecnicamente o “parecer” -, a alegação também está completamente divorciada do que consta do processo de tombamento individual do Monumento Natural de 1973, onde os atributos do bem protegido estão referenciados. Ali, no processo de tombamento, é claro que:

1. O bem é o monolito de pedra a ser protegido em sua integralidade, como bem natural, eis que inscrito no Livro de Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico.

2. Que a proteção integral do monolito deve ser complementada com preservação da sua flora e da sua fauna, com amplo relatório (1983) da mesma, referenciado no processo de tombamento de 1973.

3. Que o tombamento veio complementar e reforçar, a nível federal, o que já dizia a Lei 3.800 de 1970 do então Estado da Guanabara que “vendo o perigo que corriam a flora e a fauna dos morros cariocas protegeu-os, proibindo qualquer modificação no status quo, a partir da cota 100” (parecer do Conselheiro Gilberto Ferrez, relator do tombamento, ao Conselho Consultivo, proc. 869-T-73).

Como admitir, então, que obras voluptuárias sejam feitas no seu cume, com mutilação do corpo de sua rocha?

Ainda se impõe destacar que a Constituição de 1988 deu uma amplitude muitíssimo maior aos atributos e valores a serem tutelados nos bens do patrimônio cultural. Em seu artigo 216, inciso V, refere-se aos “conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico”. Óbvio, portanto, que os atributos do Pão de Açúcar vão muito além do que é visto, de longe a olho nu, chamado de paisagem. Como monolito – monumento natural reconhecido internacionalmente como tal -, o seu atributo também é ecológico e científico, para efeitos da sua preservação integral.

Como admitir, então, que obras voluptuárias sejam feitas no seu cume, com mutilação do corpo de sua rocha? Como admitir que haja um retrocesso na preservação desse monumento natural de preservação cultural integral?

Em maio de 2022, ainda estávamos reclusos em pandemia, e o governo era outro. Certamente, os erros cometidos na análise deste projeto podem, talvez, ter como justificativa a dificuldade de funcionamento regular do órgão IPHAN à época, que não fez qualquer reunião de seu grupo técnico especializado na Superintendência, nem o divulgou para qualquer audiência ou consulta pública, o que poderia favorecer a contribuição de outros técnicos e da sociedade, para análise de projeto de tamanha complexidade e interesse público nacional e internacional.

Mas, uma vez identificado o equívoco, faz-se mister sua correção. Errar, compreende-se. Persistir no erro, não! Simples assim.

 

Sonia Rabello. Foto: Divulgação
Sonia Rabello. Foto: Divulgação

 

*Sonia Rabello, Jurista, Professora Colaboradora do Lincoln Institute of Land Policy (EUA), no Programa de Capacitação para América Latina, ex-Procuradora-Geral do Município do Rio de Janeiro e Professora Titular na FDir/UERJ (aposentada)

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