Em outubro de 2016, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou inconstitucional (ADI 4983) uma lei cearense que tentava regulamentar e declarar a vaquejada como atividade desportiva e cultural do estado. A decisão foi apertada (6×5), sendo decidida pelo voto de minerva da então presidente Carmem Lúcia, prevalecendo o argumento de mérito que essa prática carregaria uma crueldade intrínseca aos animais, ferindo o artigo 225 da Constituição Federal de 1988.
Os ambientalistas levaram um grande susto, pois acreditavam que os precedentes da Rinha de Galo e da Farra do Boi não deixariam qualquer dúvida com relação à constitucionalidade do tema. Enganaram-se, pois o pior estava por vir. A partir desse julgado, iniciou-se uma manobra sem precedentes no campo dos direitos fundamentais, especialmente dos direitos culturais, com o objetivo de viabilizar novamente a vaquejada do ponto de vista jurídico.
Demandado por setores diretamente interessados nessa atividade, o Congresso Nacional traçou um drible de arrodeio no Supremo. (Para quem não está familiarizado com o termo, o drible de arrodeio seria o equivalente ao drible da vaca no Ceará).
Se a Vaquejada é inconstitucional, seja pela forma, seja pelo conteúdo, que se mude a Constituição, ora!
Dois meses depois do julgamento do STF, o Congresso aprovou uma lei (Lei 13.364/2016), sancionada pelo Presidente Temer, declarando a vaquejada como patrimônio cultural imaterial, mesmo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) posicionando-se contrário à declaração legislativa de patrimônio, pois isso seria competência dos órgãos de preservação, que fariam uma atribuição de valor segundo critérios técnico-científicos.
A declaração por via legislativa seria, portanto, inconstitucional. Essa estratégia de patrimonialização da vaquejada pela via legislativa federal seria precária do ponto de vista jurídico-constitucional, pois foi questão de tempo até que ela fosse julgada inconstitucional, tal como ocorreu com a lei cearense. Mas alguém teve a seguinte ideia: se a Vaquejada é inconstitucional, seja pela forma, seja pelo conteúdo, que se mude a Constituição, ora!
Eis que foi aprovada uma Emenda Constitucional, acrescentando um parágrafo ao art. 225 da CF/88, para não considerar como cruéis aquelas práticas culturais reconhecidas como patrimônio imaterial. Esse revide do Poder Legislativo agora é coroado com um novo projeto de lei que está indo à sanção presidencial, com vestes de constitucionalidade, regulamentando a vaquejada e outras manifestações culturais que subjugam os animais.
O Projeto de Lei 8240/17, aprovado nesta terça-feira, dia 21 de agosto, pela Câmara, consolida o status de patrimônio cultural imaterial da vaquejada (e outras práticas análogas) e estabelece parâmetros para sua regulamentação. O presidente Bolsonaro já deu indícios de que não vetará o PL, completando, assim, o drible de arrodeio do Congresso no Supremo.
Mário Pragmácio – Advogado, Doutor em Direito, professor da UFF e do mestrado profissional do IPHAN, autor do livro “Cultura e Direitos Culturais” e presidente do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult).
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